l      O PODER DAS MINORIAS  l

 

Texto extraído dos Exercícios Espirituais realizados pelo Arcebispo Nguyen van Thuan, por convite e na presença do Papa João Paulo II, no Vaticano, no ano 2000.

 

O mistério da minoria

 

Dirigimos a nossa atenção para a história do Povo de Deus, para a Sagrada Escritura, para descobrir nela narrativas e factos que possam iluminar a nossa situação de «minoria».

A Bíblia refere muitas situações em que Deus se serve dos fracos para derrotar os fortes. Numa condição de inferioridade, Moisés venceu o Faraó e libertou o seu povo. Judite derrotou Holofernes, Ester derrotou Aman.

Na história da Igreja não faltam exemplos, como o de Catarina de Sena que, sem ter nenhuma autoridade, conseguiu fazer voltar o Papa de Avinhão para Roma, ou o de D. Bosco ao qual pediram conselho o Papa e o rei.

Quando em cada Sexta-feira Santa no Coliseu vemos o Papa transportar a cruz, temos em frente dos nossos olhos o «mistério da minoria»: foi esta cruz que venceu aquele coliseu que era o Império Romano.

 

«De quantos batalhões dispõe o Papa?» (Frase de Napoleão Bonaparte quando tinha prisioneiro o Papa Pio VII)

 

Quanto à «minoria quantitativa» desejaria reflectir sobre a surpreendente história de Gedeão, chefe carismático de Israel, no século XII antes de Cristo.

O Livro dos Juizes, no cap. 7, conta como Gedeão se preparou para a batalha contra Madian. «São demasiado numerosos os homens que estão contigo, para que Eu entregue os madianitas nas tuas mãos», disse-lhe o Senhor. E explica: «Israel poderia glorificar-se à minha custa e dizer: “Foi a minha mão que me salvou”» (v. 2).

Segundo as indicações do Senhor, Gedeão reduz o exército de 32.000 homens para 10.000 e depois de 10.000 para apenas 300. Estes trezentos homens, armados somente de trombetas e cântaros vazios com tochas dentro, invadem o acampamento inimigo fazendo um grande alarido. Então, «enquanto soavam as trezentas trombetas, o Senhor fez com que, em todo o acampamento, cada um levantasse a espada contra o seu companheiro» (v. 22).

Espontaneamente, surgem algumas considerações:

— Como o povo da Antiga Aliança no tempo de Gedeão, também hoje o novo Israel deve confrontar-se com tantas forças que abrem caminho com prepotência. É preciso reagir. Mas como Israel, uma Igreja muito poderosa correria o risco de envaidecer-se, de cair no triunfalismo, de atribuir o sucesso a si própria.

— Dá que pensar como aquelas «armas», aparentemente bastante ridículas, de repente tenham podido produzir um efeito inimaginável. Do mesmo modo que Gedeão, uma Igreja que se abandona inteiramente ao mandato do Senhor, pode obter resultados importantes sem grandes meios. Pode bastar uma trombeta para anunciar a Palavra de Deus, e uma tocha, a luz de Deus, com a condição de sermos cântaros vazios.

— Como aconteceu então a Madian, pode também agora acontecer que seja o inimigo a destruir-se a si próprio e que a Igreja não tenha de fazer um grande esforço para sair de dificuldades. Os processos perversos e injustos acabam por ser autodestrutivos. Então, não é evidente que «o número reduzido» anule necessariamente a força do peso da Igreja.

 

«Não poderás ir lutar contra esse Filisteu» (Saúl)

 

A «minoria qualitativa faz-nos pensar no modo como o Senhor agiu em tempos bastante próximos de nós. Seja em Lourdes, em Fátima ou em La Salette, a Senhora não apareceu a pessoas preparadas e cultas mas a uma ou mais crianças, pastorinhos quase ignorantes. E sempre indicou os mesmos meios para fazer face às dificuldades e às ameaças: a oração e a conversão.

Mas voltemos à Escritura e meditemos sobre a figura de David como exemplo de um grande chefe bíblico que usa para a sua missão meios modestos e humanamente inadequados.

Todo sabemos como o acontecimento que o tornou subitamente conhecido e o projectou para a conquista da realeza, tenha sido a sua vitória contra os filisteus e particularmente o seu duelo com o gigante Golias (cf. 1 Sm 17).

Desejaria acentuar alguns detalhes que podem ajudar a descobrir a actualidade desta narrativa.

— O gigante que procurou meter a ridículo David, e que se esforça por nos meter a ridículo a nós representa o mal, ou seja, as ideologias e os valores anti-evangélicos. Golias é hostil, ameaça, provoca: «Vem, que eu darei a tua carne às aves do céu e aos animais da terra!» (v. 44).

— Ainda hoje a Igreja, defronte ao mal, embate em Golias, um gigante aterrador, que parece invencível. Em frente dele, num primeiro impacto, a Igreja, e com ela cada um de nós, experimenta urna forte sensação de impotência. E não faltam no mundo aqueles que sentem o dever de reforçar esta sensação, dizendo como Saúl: «Não poderás ir lutar contra esse Filisteu» (v. 33).

— No começo David toma o caminho errado. Reveste-se com a armadura do poder e da força, ou seja, segue o modelo de defesa do mundo (vv. 38-39). Mas isto paralisa a sua acção: «Não posso caminhar com esta armadura, pois não estou habituado», disse (v. 39). Tal como a Igreja quando recorre ao arsenal do mundo.

— O facto é que a Igreja tem as suas «armas» para combater. E essas são as únicas verdadeiras armas que contam. Entre estas brilha um princípio. Diz David: «Tu vens para mim de espada, lança e escudo; eu, porém, vou a ti em nome do Senhor do universo, do Deus dos esquadrões de Israel, a quem tu desafiaste» (v. 45). As outras armas são apenas acessórios (v. 40): «o cajado» (a violência) que David, porém, não usa na batalha. Depois, muito simplesmente, uma funda e cinco pedras lisas do regato. Todos os gigantes têm de facto o seu ponto fraco. Basta reparar com atenção. Uma pedrinha bem colocada derrotou o gigante e é a sua própria espada que é usada para lhe cortar a cabeça (vv. 4 1-54).

David é a imagem da Igreja de hoje. Em muitas situações nós somos urna minoria quanto aos números, as forças, as possibilidades e os meios. Mas, como David, vamos em frente in nomine Domini.

 

Jesus, o homem de pequenas quantias

 

Volvamos o olhar para Jesus.

Na Sagrada Escritura Moisés figura como o homem das grandes quantias. Quando os Israelitas partem do Egipto são «cerca de seiscentos mil a pé, só os homens fortes, sem contar as crianças». «Também — afirma ainda a Escritura — urna turba numerosa partiu com eles, junta mente com ovelhas, bois e gado em grande quantidade» (cf. Ex 12, 37-38).

Em comparação, Jesus aparece corno o homem de modestos números. A sua atenção volta-se sobretudo para os «pequenos», para os pecadores: para Zaqueu, para a Samaritana, para a pecadora arrependida, para a adúltera...

No seu ensinamento sobre o Reino de Deus não emergem figuras grandiosas, vistosas: «A que é semelhante o Reino de Deus e a que posso compará-lo? E semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e deitou no seu quintal. Cresceu, tomou-se árvore e as aves do céu vieram abrigar-se nos seus ramos» (Lc 13, 18-19).

E ainda: «A que posso comparar o Reino de Deus? E semelhante ao fermento que certa mulher tornou e misturou com três medidas de farinha, até ficar levedada toda a massa» (Lc 13, 20-2 1).

«Dizia: o reino de Deus é como um homem que lançou a semente à terra. Quer esteja a dormir, quer se levante, de noite e de dia, a semente germina e cresce, sem ele saber como» (Mc 4, 26-27).

Jesus não compara o punhado dos seus discípulos a uma tropa pronta para o combate ou exultante nas vitórias, mas diz:

«Não temais, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino» (Lc 12, 32).

E ainda:

«Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se corrompe com que se há-de salgar?» (Mt 5, 13).

«Vós sois a luz do mundo...» (Mt 5, 14).

«Ide! Envio-vos como cordeiros para o meio dos lobos» (Lc 10, 3), diz aos seus e exorta-os a ir sem dinheiro e sem poder: não leveis nem alforge nem cajado (cf. Mt 10, 9-10).

Nas suas parábolas e nas suas narrativas emergem de preferência os pequenos números e as coisas miúdas, que indicam a sua atenção às pessoas singulares, às coisas humildes e essenciais.

Fala das «duas moedinhas» (uns tostões), deitadas por uma viúva no tesouro do Templo (cf. Mc 12, 41, 42); do pastor que deixa as 99 ovelhas para ir à procura da que se tinha perdido (cf. Lc 15, 4-7); da mulher que, tendo dez dracmas, acende a candeia, varre a casa e procura cuidadosamente até encontrar a que se perdera.

Bastaram-lhe cinco pães e dois peixes para saciar uma multidão.

A Igreja como «minoria» é chamada a viver segundo este estilo do Evangelho, a fazer suas as prioridades e as preferências de Jesus.

 

Os muros da nova Jericó

 

No decorrer da História, a Igreja, seja na sua dimensão universal, seja na sua dimensão local, esteve em minoria defronte ao Império Romano e defronte às invasões dos bárbaros; na era moderna foi enfraquecida pelas divisões internas, sofreu durante a Revolução Francesa; sofreu, no século que acaba de findar, as prepotências do nazismo, do comunismo e agora do consumismo...

Mas defronte aos Golias de cada época, o Senhor mandou desarmados Davids: um Cirilo, um Atanásio, um Ilário de Poitiers, um Ambrósio e um Agostinho, um Francisco de Assis, um Domingos, uma Brígida e uma Catarina, um Inácio de Loyola, um Pedro Canísio e um Carlos Borromeu, uma Teresa e um Thomas More; e no nosso tempo, todos os grandes Papas do século XX e pastores como Wyszynski, Mindszenty, Beran, Stepinac, Tomasek, Gong Pin-Mei.

 

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