Crónicas de Marisa Bueloni

 

Rosas roxas

Marisa Bueloni2

Marisa Bueloni mora no Brasil, na cidade de Piracicaba, Estado de São Paulo

É formada em Pedagogia e Orientação Educacional

É membro da Academia Piracicabana de Letras

Facebook: https://www.facebook.com/MarisaBueloni/

Blog:  https://donavidablog.wordpress.com

Contacto:   marisabueloni@ig.com.br

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BÊNÇÃO ESPECIAL  

 

ÍNDICE DAS CRÓNICAS DAS TERÇAS-FEIRAS

A partir de agora, os textos habitualmente escritos pela Marisa Bueloni vão passar a estar publicados no seus blog:

https://donavidablog.wordpress.com

 

 

Data

Título

Htm

Pdf

2017-11-18

Amar – verbo da felicidade

 

2017-11-11

Para alegrar nossos dias

 

2017-11-6

A Copa e as críticas

 

2017-11-2

Viver a vida...

 

2017-10-30

Buganvílias

 

2017-10-16

Sem pensar...

 

2017-10-2

Mensagem de esperança

 

2017-9-28

Declaração de amor

 

2017-9-19

Inatingível futuro

 

2017-9-12

Paz e Bem! 

 

2017-9-5

Sem perder a ternura

 

2017-8-29

Vasto mundo - 2

 

2017-16-8

Rumores do vento

 

2017-8-8

Onde mora o sonho

 

2017-8-1

Quero de volta

 

2017-07-25

A vida deu certo?

 

2017-07-18

Para sempre

 

2017-07-11

Passará...

 

2017-06-26

Sonhar não custa nada

 

2017-06-20

O amor cura e salva

 

2017-06-13

Pela janela da vida

 

2017-06-6

Quando eu crescer...

 

2017-05-30

Daria um bom filme?

 

2017-05-23

De onde vem?

 

2017-05-16

Nem mais, nem menos

 

2017-05-9

No Céu não tem fogão

 

2017-04-25

A nós descei, divina luz

 

2017-03-28

As pedras do caminho

 

2017-03-28

A vida não espera

 

2017-03-14

Bendito sonho

 

2017-03-06

A Todas as Mulheres

 

2017-02-21

De outros carnavais...

 

2017-02-21

Até que a chama se apague

 

2017-02-14

O cheiro da vida

 

2017-01-31

Enquanto chove...

 

2017-01-23

Beira-mar

 

2017-01-17

Retrato falado

 

2017-01-01

Sabedoria de Ano Novo

 

2016-12-21

Uma noite destas

 

2016-12-13

Bilhetes de amor

 

2016-12-10

Neste Natal

 

2016-12-06

A beleza do Advento

 

2016-11-29

E se a noite chegar...

 

2016-11-22

Malabaristas das ruas

 

2016-11-15

Retalhos da vida

 

2016-10-31

Dia de Todos os Santos

 

2016-10-25

Dor de amor

 

2016-10-11

Tempo de dar graças

 

2016-10-11

Fazer as malas  

 

2016-10-05

Humores do mundo  

 

2016-09-27

Bendita música

 

2016-09-18

Santo dos Anjos

 

2016-09-13

Lá detrás daquele morro

 

2016-09-06

Nada é muito importante

 

2016-08-30

Quem não tem cão...

 

2016-08-23

Luzes que se apagam...

 

2016-08-18

O amor não tem idade

 

2016-08-09

No baile da vida

 

2016-08-02

Luar na cozinha

 

2016-07-19

Teoria da dor - 3

 

2016-07-19

Anjos, passarinho e rosa

 

2016-07-12

Sob as graças de Leão

 

2016-07-05

Recomeçar

 

2016-06-21

Fé e coragem

 

2016-06-08

Um sentido para a vida

 

2016-05-24

A parte que nos cabe

 

2016-05-17

Se o amor chegar...

 

2016-05-10

No meu governo

 

2016-05-03

Poema - NÃO É NADA 

 

2016-05-03

Poema - Declaração

 

2016-05-03

Pausa necessária

 

2016-04-27

Eu voto sim!

 

2016-04-19

APTIDÃO PARA O SONHO

 

2016-04-12

Gripe Lava Jato

 

2016-04-05

Roupa de ficar em casa

 

2016-03-29

Quando o outono chegar

 

2016-03-16

A poesia do cotidiano

 

2016-03-08

Madre Tereza e a noite escura

 

2016-03-01

O valor do respeito

 

2016-02-24

O som do universo

 

2016-02-16

Como uma onda...

 

2016-02-02

Procurando assunto...

 

2016-01-26

Salmos que me cativam

 

2016-01-20

Para onde vamos?

 

2016-01-12

Passagem secreta

 

2016-01-06

Começar de novo

 

2015-12-31

Ano novo, velhas profecias

 

2015-12-23

Um Rei vem vindo

 

2015-12-15

O poder de uma carta...

 

2015-12-9

Para os que dormem tarde

 

2015-12-2

Pouca gente feliz?

 

2015-11-25

E assim caminha a humanidade...

 

2015-10-28

No Facebook da vida

 

2015-10-21

As coisas simples e belas

 

2015-10-6

Atchim! (Soneto)

 

2015-10-3

Bênçãos para todos nós

 

2015-10-2

CORPO (Poema)

 

2015-10-2

SINO OU TAMBOR? (Poema)

 

2015-9-30

A boa palavra

 

2015-9-24

Nada de novo no front

 

2015-9-16

A crise vai bem...

 

2015-9-2

Descobri um novo planeta

 

2015-8-27

O tempo azul

 

2015-8-19

Piracicaba que eu adoro tanto!

 

2015-8-12

A grande viagem

 

2015-8-5

Palavra & Sonho

 

2015-7-29

Graça Feminina

 

2015-7-24

Começar de novo...

 

2015-7-15

Para guardar no coração

 

2015-7-10

Inspiradora vida

 

2015-6-23

Da matéria dos sonhos

 

2015-6-13

SINO OU TAMBOR?

 

2015-6-10

Memória

 

2015-6-4

Menos é mais...

 

2015-5-27

O mar e eu

 

2015-5-20

O planeta tem sede

 

2015-5-12

Crescendo com a vida...

 

2015-5-6

Minha mãe eu

 

2015-04-30

Bandeja de inox

 

2015-04-21

Inspirações de abril

 

2015-04-14

Livros & dores

 

2015-04-07

Uma Páscoa luminosa

 

2015-03-18

Tempo Pascal

 

2015-03-18

Teoria da Dor - 2

 

2015-03-18

Eu canto um salmo

 

2015-03-06

Fragmentos de um sábado

 

2015-03-02

Enquanto a chuva não vem

 

2015-02-25

Teoria da Dor

 

2015-02-21

Spazzio de La Pace

 

2015-02-14

Um olhar para o futuro

 

2015-02-05

Quando entardece

 

2015-01-26

Pobre mundo rico

 

2015-01-20

Um canto de paz

 

2015-01-13

Velho ano novo

 

2015-01-08

Deus sabe o que faz

 

2015-01-03

Sino ou Tambor

 

2014-12-25

Profecia

 

2014-12-17

As primeiras letras

 

2014-12-10

A força da fé

 

2014-12-4

Os cães não têm culpa

 

2014-11-25

Surto do bem

 

2014-11-20

A água nossa de cada dia

 

2014-11-13

Pobreza imoral

 

2014-11-8

O tempo de vida

 

2014-10-28

O país da esperança

 

2014-10-22

Sinfônica (Poema)

 

2014-10-21

Politicamente correto

 

2014-10-21

Poema pobre (Poema)

 

2014-10-21

Atchim! (Poema)

 

2014-10-21

Primavera anunciada (Poema)

 

2014-10-21

Visto(Poema)

 

2014-10-16

O mundo vai acabar

 

2014-10-16

O sabor das maçãs

 

2014-10-08

A alegria da esperança

 

2014-10-07

Infância(Poema)

 

2014-10-04

Espera(Poema)

 

2014-10-02

Integridade(Poema)

 

2014-10-01

A religião do amor

 

2014-09-28

Onde você estava?

 

2014-09-28

Meu Coração

 

2014-09-28

Pequenos Anúncios

 

2014-09-28

Cesta Básica

 

2014-09-27

Realidade e fantasia

 

2014-09-19

Vida Encantada

 

 

Saudade (Poema)

 

 

Força (Poema)

 

 

Trova (Poema)

 

 

A Dois (Poema)

 

 

Discurso Feminino (Poema)

 

 

Solidez (Poema)

 

 

Cotidiano (Poema)

 

2014-09-09

A vida é dura?

 

2014-09-03

Setembro

 

2014-09-02

Sonhando

 

2014-08-26

Em Tempo

 

2014-08-26

Vas

 

2014-08-26

Carta para um Príncipe

 

2014-08-26

Fenômenos de Aporte

 

2014-08-19

Vote em mim

 

2014-08-12

Essa febre…

 

2014-08-05

Meu reino por um travesseiro

 

2014-07-30

A sétima estrela

 

2014-07-29

Santo Elesbão

 

2014-07-24

Bola pra frente

 

2014-07-16

A glória pequenina

 

2014-07-16

Casar por amor

 

2014-07-16

Venceu o melhor

 

2014-07-16

Benquerenças

 

2014-07-16

Ataque do demo

 

2014-07-01

Conseguimos conquistar com braço forte

 

2014-06-24

Depois da Copa…

 

2014-06-14

Mulher entende de futebol?

 

2014-06-03

A Copa e as críticas

 

2014-27-05

Pessoa de Fé

 

 

Vasto mundo

 

 

Amorosa consciência

 

 

O bom combate

 

 

Em busca do tempo perdido

 

 

Esperança

 

 

No meu canto

 

 

Se o céu desabar...

 

 

Eis os tempos?

 

 

A vida é feita de escolhas

 

 

Luz para o mundo

 

 

Antenas da raça

 

 

Coisas que desaparecerão?

 

 

Num sábado à tarde...

 

 

Gosto demais...

 

 

Uma poeta à procura da poesia

 

 

O centro da alma

 

 

Ainda somos seis

 

 

Dona Vida

 

 

Não tenho medo de nada

 

 

No fundo do coração

 

 

Vária vida

 

 

Nem um dia sequer...

 

 

Guarde no cofre

 

 

 

3

=

 

 

 

Amar – verbo da felicidade

 

Marisa Bueloni

         Amor, um sentimento que não se explica. Por que nos apaixonamos por esta pessoa e não por aquela? As razões do coração são soberanas. Ignorar ou negar o sentimento também resulta em tristeza apenas. E, quando há desencontros, muita saudade...

            No amor, vejo duas pessoas tentando o sublime encontro de almas, a carícia da felicidade rondando suas vidas, a realização amorosa se completando, a química maravilhosa, um sentido biológico que vai além de qualquer explicação. Dos olhares iniciais à perpetuação da espécie.

            O encontro de dois corações será sempre motivo de grande celebração. Tema preferido dos poetas, o amor se mantém imbatível nas rimas da grande e imortal paixão. Sim, posto que é chama, será eterno enquanto dure. Vi meus pais se amarem um ao outro até o fim de suas vidas. Foram exemplo de um casamento cheio de companheirismo, respeito e profundo amor. À medida que ambos envelheciam mais se amavam.

            Sim, há momentos de desespero no amor, concordo. A partida súbita de um dos pares, tragédia irreparável. Há brigas no amor, há separações,  incertezas, inseguranças, medo de não ser correspondido. E há tanta espera!... Conheço pessoas que passaram uma vida inteira esperando pelo amor. Estão lá, sentadas à beira do caminho.

            Melhor não negar o amor, jamais. Sem medo dele. Nunca perder a alegria de viver por medo de amar. Amar é o verbo da felicidade. Amar faz o coração feliz e, se perdido, traz de volta o brilho aos olhos. Amar não deixa ninguém envelhecer. O amor rejuvenesce e devolve o frescor à face. Amar torna a pele bonita, os cabelos brilhantes e a alma leve. Há leveza no amor.  Não deve ser pesado e triste, ou não será amor.

            O fim de um amor se cura com outro? Acredito que sim. O coração fará uma grata surpresa a quem se abre para a vida: não se ama apenas uma vez. Uma das mais belas descobertas da alma humana será a de que é possível amar de novo e que o coração é inesgotável nesta capacidade maravilhosa.

            O amor propõe infinitas reflexões. Tentei, uma vez, enumerar cinco razões para amar. E me vi escrevendo dez, quinze, vinte. Deixei o texto de lado, porque ele dizia respeito somente a mim, era algo egocêntrico, cheio de subjetividade e, possivelmente, de valores um tanto radicais. Trato o amor de forma nobilíssima, supervalorizo sua essência divina e humana, dou ao amor um caráter que ele pode não ter. Não sei se todos ainda são românticos como eu. Da mesma forma como sou a última riponga, que ainda aprecia saia indiana, sandálias, pulseiras e colares, penso ser a última romântica neste mundo frio e calculista.

            E que o amor seja a nossa salvação.

 

Para alegrar nossos dias

 

Marisa Bueloni

         O mundo está desnorteado e confuso, as alterações climáticas dão claros sinais de que não são falácias, a humanidade padece de males estarrecedores, incluindo-se aí a corrupção generalizada. Por desgraça final, convivemos com a violência insana de quem atira para matar.

             O atirador dispara nas pessoas num concerto ao ar livre, nos fiéis dentro de uma igreja, em qualquer local, simplesmente atira. E depois se suicida. Um menino, cujos pais nunca o viram reclamando de bullying, leva uma arma na classe e mata dois colegas, ferindo outros tantos. Creio que muitos de nós fomos vítimas de brincadeiras infelizes na escola (ah, como sofri com minhas “orelhas de rato”!) e ninguém saiu atirando...

             Tais tragédias nos colocam em confronto com tantos valores, e com outras inúmeras questões, de como a família estaria cumprindo seu papel de educar, de amar e também ensinar a prática do amor. Sim, transtornos de personalidade existem e precisam de tratamento, mas nem sempre são detectados. A sequência terrível de mortes inocentes nos causa um profundo pesar e a sensação estranha de que o Mal (assim com M maiúsculo) parece rondar o planeta.

             Para alegrar estes dias sombrios, relatados com temor e angústia, venho propor o exercício da paz interior, da busca do equilíbrio pessoal, emocional e psíquico, por mais difíceis sejam as condições em que nos encontremos. Minha mãe costumava dizer “ninguém vive num mar de rosas”. Penso que não. Todos nós temos problemas, ansiedades e medos. Muitos suportam empregos detestáveis, rotinas desgastantes, dias sem graça e sem alegria. Costumo rezar para os que carregam cruzes pesadas. Há tanta gente neste caminho de dor.

             Para alegrar estes tempos de ódio, violência e desamor, proponho uma parada diária, um breve momento de reflexão sobre a nossa vida, nossa família e nossos amados. A casa abençoada, o carro necessário, nossa comida, nossa roupa e tudo o que nos cerca e de que dispomos, amorosamente. Demos graças. Graças pelo pão de cada dia. Graças por estarmos de pé, cumprindo a vida.

             Para enfrentar os terrores da noite, desviar a seta que voa durante o dia, livrar-nos da peste que ronda nossa morada, passar pelo vale de sombras e lágrimas, bendigamos ao Criador de todas as coisas. É do Alto que vem o nosso auxílio. Ore em voz alta: A nossa proteção está no nome do Senhor, que fez o céu e a terra.

             Para alegrar nossos dias, não percamos a fé e a esperança. Compreendamos o outro, o nosso amigo e o nosso inimigo. Rezemos por todos. Conforme bem o declarou o papa Francisco, “estamos todos em construção”. A paz!

 

A Copa e as críticas

 

Marisa Bueloni

         Logo mais, estaremos (estaremos?) todos envolvidos pelo espírito esportivo de mais um mundial. A “pátria de chuteiras”, como dizia o saudoso comentarista Armando Nogueira, com o povo torcendo pela nossa seleção.

     Mas, para chegar até aqui, neste pouco efervescente clima de Copa do Mundo, um longo caminho foi percorrido e o povo demonstrou uma sabedoria louvável. Entre protestos e manifestações, ficou claro que nem só de ufanismo nos gramados vive a nossa nação. Palmas para quem compreendeu que ainda temos gritantes injustiças sociais e problemas graves para resolver.

Há muito mais coisas entre o céu e a terra do que samba, praia, mulheres de biquíni, cerveja, cachaça, bola rolando, craques de brincos e cabelos espetados, cartolas comandando o show, e a onipresença de ex-jogadores que, segundo seus pares, seriam poetas se ficassem de boca fechada.

Quem havia dito que “Copa do Mundo não se faz com hospitais e sim com estádios” parece ter refletido melhor. Menos mal. O país carece de cabeças pensantes, de pessoas inteligentes, com luz e conhecimento acerca dos diferentes setores do cenário nacional.

     Mestre Zagallo não deixou por menos e botou a boca no trombone, revelando uma saudável lucidez política. Em anos idos, disse ao povo: “Vocês terão de me engolir”. E se foi humanamente indigesto, salvou-se de qualquer forma, por seus longos anos de serviços prestados ao futebol brasileiro.

Zagallo deu uma entrevista a um jornal carioca e saiu-se com estas palavras que percorrem a internet e incendeiam os “feicebuques” da vida: “As bandeiras não tremulam, apitos, camisetas estão encalhados nas lojas. O Brasil, às vésperas da Copa, não está vibrante em verde e amarelo. O Brasil está vermelho. Vermelho de vergonha. Vermelho de ver tanta corrupção. Vermelho de ver tanta maracutaia, tanta cara-de-pau dos governantes. Estamos vermelhos vendo grande parte de nossos políticos e poderosos sendo calados e comprados pela corrupção. O PT conseguiu tirar o brilho até do que o brasileiro mais gosta... É o vermelho tingindo de corrupção nosso verde e amarelo”.

Talvez o nosso coração esteja mesmo solidário com os milhões de brasileiros que esperam mais deste governo. Saúde, transporte, moradia, educação. Um povo que saiba ler e escrever, fazer as quatro operações, conforme sonhava Darcy Ribeiro.

Mas nem tudo está perdido. Ainda que as arenas não estejam prontas e algo fora de controle possa tirar o brilho da festa, resta-nos o esforço de passar ao mundo uma imagem de país hospitaleiro, sério e competente. Afinal, o evento da Copa tem sua importância, trata-se de uma modalidade esportiva que é a paixão do brasileiro e pode ter uma função social digna. Os campinhos de várzea se multiplicam em cada canto, atraem milhares de meninos que podem ter suas vidas transformadas para sempre.

     Mas, já se fala em recolher os mendigos de algumas capitais e vedar com tapumes os lugares feios, esgotos a céu aberto, obras inacabadas, aquela maquiagem de praxe.

     E la nave va...

 

 

Viver a vida…

 

Marisa Bueloni

         Deus terá preparado algo grandioso para cada um de nós. Ainda que muitos não acreditem, eu acredito. Creio firmemente que cada um carrega sua missão neste mundo e aqui está por alguma razão. Creio também que nada acontece por acaso. Há um sentido e um propósito em tudo o que nos acontece, sobretudo com relação às pessoas com as quais cruzamos. Ou que cruzam nosso caminho, feliz ou infelizmente.

Logo depois que fiquei viúva, fui a uma consulta médica e o doutor, muito gentil, sabendo do passamento do meu marido, disse: "Então, ele se foi. Mas você ficou porque sua missão aqui ainda não terminou". Deixei o consultório, entrei no meu carro e aquilo não saía da minha mente: minha missão aqui ainda não terminou. 

Nossa missão neste mundo é viver a vida. Nascemos, tivemos nossa infância querida (nem todos a tiveram assim...), passamos pela bela juventude dourada, que nos encheu de sonhos e um dia nos tornamos adultos para sempre. Vem a fase da maturidade, do casamento, dos filhos e depois os netos, num ciclo perfeito, que vamos cumprindo agradecidos e maravilhados. 

Viver a vida é também estar atentos à nossa volta e não perder um momento sequer onde possamos aprender algo e crescer como pessoas. Borges dizia que, se pudesse voltar atrás, teria dado mais voltas no seu quarteirão, pisado em folhas secas, visto mais vezes o pôr-do-sol, contemplado o céu...

O papa Francisco também diz coisas lindas, que se referem a uma vivência plena da nossa existência como seres humanos. Devemos amar mais, sorrir mais, perdoar mais. Não nos preocuparmos tanto com os problemas. Não dormir pensando nas nossas contas...

Ah, meu Deus, como tudo isso é importante! Não passar indiferente a um raro jardim com rosas. Onde estão as roseiras de antigamente? Não se vê mais a fachada das casas, a maioria com muros altíssimos e portões eletrônicos. Temos agora a arquitetura do medo e do aprisionamento. As casas são fortalezas para enfrentar um tempo violento. Quem vai se dar ao trabalho de cultivar um jardim? Bastam os muros e alguns pinheiros verdes para atenuar a dureza da pedra.

Talvez você sinta falta das rosas e dos jardins. Agora, eles existem secretamente, nos condomínios fechados. Minha casa da infância tinha um terraço gracioso, dois bancos de madeira com pés de ferro e uma trepadeira vistosa que dava florinhas cor-de-rosa, delicadas. Quem passava na rua parava pra olhar. Meu pai tinha orgulho do jardinzinho em frente à casa e eu, menina, varria as folhas vadias sob um céu arrebatador.

Viver a vida!... Ter a esperança de que alguém em particular atenda o meu pedido humilde e compre para o seu cão a coleira antilatido. Apenas isso, meu Deus! Para que tenhamos paz dentro da nossa casa, e nosso coração não passe por esta arritmia de fundo emocional, causada pelos anos de sofrimento e luta. Paz e Bem!

 

 

Buganvílias

 

Marisa Bueloni

         As bênçãos de Deus caem sobre nós como buganvílias roxas. Buganvílias são as coloridas “primaveras”.  Mas não custa nada dar a elas o ar culto da erudição. No Aurélio do computador, são conhecidas também como “trepadeira lenhosa, da família das nictagináceas”. A Bougainvillea spectabilis apresenta “flores insignificantes, mas incluídas em magnas brácteas membranáceas, inseridas três a três, e de cores fortes: alvas, róseas, vermelhas ou roxas. Não produz fruto.” São sinônimos: buganvília, cansarina, primavera três-marias e, no plural, sempre-lustrosas.

        Pronto! Qualquer um vira inteligente com uma informação deste naipe; qualquer fugido da escola consegue imprimir ao texto um verniz de sabedoria e cultura, se pode contar com a ajuda do “pai dos interessados”. Dos interessados em aprender e ampliar seu vocabulário.

        Como será o vocabulário das buganvílias? Sobretudo das que tingem os nossos olhos? Já viram aquelas roxas, misturadas às rosas e brancas, que emolduram os muros das casinhas graciosas e aparentemente solitárias, ou que espetam aos ares os seus galhos floridos, sussurrando versos pelos alpendres e varandas?

        E quando às buganvílias se juntam as flores tímidas da folhagem conhecida como “Lágrimas-de-Cristo”, tudo se explica na perfeição de quem as plantou juntas, para crescerem irmãs. Se uma tira a força da outra, pode não ser verdade, pois ambas florescem bonitas e viçosas e dão flores a não mais poder. Cachos carregados das “lágrimas” me fazem ver o Senhor carregando a cruz e derramando pingos de sangue pela Via-Sacra de pedregulhos.

Estas trepadeiras lenhosas têm o hábito de soltar flores e folhas e nos obrigam a varrer o chão. Mas embelezam como certas coisas maravilhosas que existem apenas para embelezar o mundo e pelas quais deveríamos ser gratos.

Algumas pessoas são assim. Vivem para tornar tudo mais belo, gracioso e gentil a sua volta. São delicadas, usam perfume, sabem dizer “obrigado”, “com licença” e “por favor”. Vestem-se com discrição e simplicidade. Elas próprias são a jóia da vestimenta, a alma da elegância e do comedimento. Parecem ter saído de um livro de Gloria Khalil. E por isso não vão a um velório de vermelho?

        Era uma vez um menino que brincava de guerra. E do seu tanque disparou uma flor. Nada de tiros. Somente flores. Ainda que insignificantes, as buganvílias são torpedos explosivos, coloridos, que se desfazem ao sabor do vento e enfeitam calçadas soluçantes. Quem for capaz de ouvir o gemido de uma calçada que soluça, toda vez que recebe a flor em seu colo, compreendeu o sentido da vida.

 

Sem pensar...

 

Marisa Bueloni

         Escrevo numa página de Cultura deste jornal e não abordo assuntos propriamente culturais. Dedico-me à crônica, este maravilhoso gênero literário e jornalístico, que tanto enriquece a cultura em geral. Espero contar com a simpatia do querido leitor.

        O cronista tem grande liberdade de expressão, e assim pretendo manifestar aqui meu desalento com o que fazemos sem pensar. Sem pensar... Quantos arrependimentos isso já nos causou? E quantas noites em claro ainda passaremos, por fazer ou dizer algo sem pensar?

        Refiro-me, também, aos assuntos do coração, mas incluo aqui todas as demais turbulências do relacionamento humano, ousadias da juventude,  inseguranças da idade adulta e, depois, as escorregadelas do tempo provecto, quando cabelos brancos não querem dizer absolutamente nada.

        Os fios de prata por baixo da cabeleira loira apontam apenas para uma tempestade hormonal que teima em percorrer corpo e alma, como se neles pedisse moradia fixa. Sem querer, magoamos quem mais amamos. Tem volta? Depende.

        Pedir perdão é um gesto da mais pura nobreza. Pedir perdão e saber perdoar. Duas mãos, dois tesouros. Desejo de restabelecer a harmonia comprometida, a amizade desfeita. De minha parte, luto para não ofender ninguém. Contudo, numa situação inesperada, onde nos sentimos atingidos em nossa dignidade, podemos, sim, cometer o grave deslize da ofensa.

        Quem não viveu algo parecido? Quem já se sentiu perdido e desnorteado perante o outro, sabe como é. Há equívocos, desentendimento, confusão. Sentimo-nos humilhados e, por um segundo de irreflexão, perdemos a paciência, vindo a nos arrepender pelo resto da vida.

        Mas, ah! E quando o outro entende que foi o causador da confusão! Quando percebe que, sim, foi ele mesmo o autor do desatino e nos perdoa pela nossa destemperança. E então, vem um e-mail doce e compreensivo. Uma mensagem de bandeira branca, acenando a reconciliação. O coração pula de alegria e até o sono da noite se recupera.

        Temos de ficar atentos a esta trama diabólica que é a emissão da palavra, seja dita ou escrita. Uma vírgula mal colocada pode dar início a algo bem tempestuoso.  Felizmente, um final feliz e pacífico surge no horizonte, quase sempre, e a vitória do bom entendimento reina de volta.

        Certamente, caro leitor, você também já fez das suas, num momento de precipitação. Todos nós fazemos. E a desculpa está justamente neste fato: foi sem pensar. Dizem que de pensar morreu um burro, mas pensar muito nunca será considerado excessivo, quando a questão é a boa palavra, o bom relacionamento, a bonança entre tudo e todos.

        Sem pensar? Nunca mais!...

         

 

Mensagem de esperança

 

Marisa Bueloni

         Se os tempos são sombrios, existe um contraponto feito da coragem que brota em muitos corações. Precioso é encontrar gente de boa vontade, com força para construir um mundo mais humano. Por mais utópico pareça, devemos crer na vitória do bem contra o mal.          

            Refiro-me à fé, à esperança, ao amor fraternal que une homens e mulheres em torno de um mesmo ideal, de um sonho a ser vivido e partilhado. A construção de uma sociedade justa, onde os direitos sejam respeitados. Por vezes, nos sentimos desesperados diante de tanta corrupção e violência. É quase natural a sensação de desamparo e de abandono, como se cada um de nós tivéssemos de nos impor perante nosso semelhante, cuidando cada qual da própria sorte, uma vez que a ordem parece abolida em toda parte.

            Que ninguém se deixe intimidar pelo medo. Por mais tenebrosos sejam estes dias, a esperança deve imperar em nossas almas. Ela nos ajudará a superar as dificuldades do dia-a-dia, para enfrentarmos com coragem a própria insegurança de sair às ruas, de viajar, de abrir os horizontes da vida, sempre tão fascinantes e tão novos.

             As trevas avançam, mas a luta em favor do bem comum deve prevalecer. Entendo que a harmonia da paz e da bonança vem de uma pronta colaboração de todos para com as normas e regras vigentes que dão suporte à vida de todos nós, gostemos ou não. Do convívio dentro de um condomínio até a participação efetiva na vida pública.

            Há quem não se adapte ao ritmo trepidante das cidades e prefira se refugiar no campo, em busca de tranquilidade. Neste tempo atribulado, em que se digladia contra tantos males e perturbação do sossego público, o homem voltou a sonhar com uma vida de mais simplicidade e mais pureza.       Sim, talvez o coração humano tenha se cansado da abundância de bens de consumo à sua disposição, voltando-se para interesses que dizem respeito à qualidade de vida.

            Que o espírito humano não perca jamais a curiosidade, o ânimo e a alegria. Vivemos uma batalha, é verdade. Todo homem, hoje, é um soldado de si mesmo.            Mas pode-se empreender combates que não signifiquem carnificina, perdas, mortes. Há guerras santas e limpas, como as que se travam em favor da igualdade de direitos e da justiça.

            Há um combate espiritual maravilhoso que podemos exercer o tempo todo. Cada um de nós pode se revestir da divina armadura e com ela resistir. Trata-se de um revestimento que blinda a criatura humana, preservando-a dos mais terríveis ataques. Que seja colocada em nós a couraça da justiça, o capacete da salvação, o cinturão da verdade, o escudo da fé e que se tome da espada do Espírito, para se lutar como lutaram os santos de Deus.

 

Declaração de amor

 

Marisa Bueloni

         Para que não pairem dúvidas, digo que estou comprometida com minha fé, minha esperança, minha crença na vida, nas pessoas queridas, aquelas que amamos no mais fundo do nosso coração. Tão bom querer bem, amar, ser amado, encontrar gente linda e risonha, quando os abraços se multiplicam e os corações batem juntos. 

          

            Estar apaixonado pela vida é um exercício de profunda beleza, apesar de toda a luta, sofrimento e dificuldades que tenhamos pela frente. Quem não os tem? Problemas não faltarão em nosso caminho. Note que mal vencemos um aparece outro. Costumo ouvir e acabo dizendo também: a gente não tem sossego. Minha mãe falava assim: se não é uma coisa, é outra.

 

            Mas o amor pelo belo mistério da Criação nos extasia os sentidos e nos eleva o espírito. Orar em silêncio e louvar o dia que nasce! Uma manhã de céu azul e um pouco de vento me convidam a sentar nas cadeiras brancas do quintal, secar os cabelos ao sol de um setembro tão quente como os meses do verão.

 

            É setembro no tempo e eu nem percebi. Porque estou apaixonada pela vida e seus humores. Aceito de coração o que Deus me mandar, seja lágrima, seja riso, porque assim é possível compreender melhor a razão de nossa existência, a doçura e a graça que nos cercam. Não, nem sempre é só doçura. Há muita coisa pela qual lutamos, pela paz e silêncio à nossa volta.

 

            Costumo dizer que tudo é graça. A graça divina. Estar de pé todos os dias é uma bênção inenarrável. O ato de viver é vário e apaixonante, sempre. Despertar, preparar a primeira refeição da manhã. Há dias em que até as frutas acabaram,  ficamos no abençoado pão com manteiga e uma xícara de café com leite. E como é bom, Pai de amor!

 

            Ligar o rádio e ouvir “all you need is love”. Sim, tudo o que você precisa é de amor. Basta o amor para um ser humano sobreviver. O amor entre as pessoas é como a água para uma planta. É algo vital e imprescindível. Sem água uma flor morre. Sem amor, uma pessoa pode morrer também. Ou se matar.

 

            Minha declaração de amor é ampla, geral e irrestrita. Ela abraça a tudo e a todos, sobretudo as pessoas que conheci ao longo da vida, os amigos da escola, do primário à faculdade, os professores tão queridos, mestres inesquecíveis, as irmãs de São José do Colégio Assunção, todos tão presentes na memória do afeto, da lembrança que não morre jamais.

 

            E assim existimos, neste amor universal que nos une a todos, na face de uma Terra que parece viver os estertores finais. Furacões tremendos, terremotos, tsunamis, inundações, secas, incêndios, em claros sinais de que o homem deve repensar sua ação no planeta. Será tarde demais? Tomara que não.

 

 

Inatingível futuro

 

Marisa Bueloni

         Quando se é criança, a vida não apresenta preocupações. Nem mesmo com o futuro. A infância é um período maravilhoso, sagrado, e toda pedagogia a ela dirigida deveria vir de um único elemento: o amor. Criança necessita tão somente ser amada. Precisa da proteção dos pais e de quem dela cuida.

            Quando jovens, somos chamados ao estudo, à busca de uma profissão que nos garanta um futuro. Pais se desesperam com as notas baixas e a falta de interesse dos filhos. Trata-se daquela fase em que os adolescentes se tornam seres humaninhos um tanto indóceis.

            A vida prossegue e chega-se à vida adulta. Aí reside o busílis.    Se já tenho um diploma, vou batalhar pelo emprego e este talvez nem seja na área da minha especialização. Vocação é o que menos conta nessa hora e, com a crise atual, agarra-se o que primeiro vier pela frente, é preciso sobreviver.

            A vida é feita de escolhas, dizem, e nem sempre isso é verdade. Reparou como há situações em que nem há o que escolher? É pegar ou largar. Decisão crucial, mas terá de ser feita com o coração nas mãos. Depois, se aparecer algo do nosso gosto ou inclinação, então talvez mudemos de profissão.

            Tudo é feito pensando no futuro. Mas ouso afirmar que o futuro é cada dia vivido. Cheguei à quântica conclusão de que o futuro não existe, meus amados! Trata-se de uma ilusão de ótica das mais perversas ou das mais interessantes, depende do ponto de vista com o qual se olha para ele.

            Notou que o futuro nos pega em cada momento, em cada esquina da vida? Ele estava lá atrás, nos bancos do grupo escolar e depois nos viu de saia pregueada, meias três quartos e gravata colegial. Ficou do nosso lado descendo a rua para ir à faculdade. Esteve conosco em cada turma da qual fizemos parte, das músicas que cantamos, dos amigos e       das ideias partilhadas acerca do futuro que nos salvaria de todas as dores. Ou de nós mesmos.

            Ouso afirmar que o futuro é o momento presente, um reverso de sucessivos anos e meses. Ali estava o germe da nova manhã, ou seja, o dia seguinte. Este também se configura como futuro. Amanhã começo um regime. Amanhã.

            O futuro é a cenoura pendurada na frente do burrinho?  Ele puxa a carroça, ela balança para ele, o burro quer pegá-la, mas ambos avançam e nunca que ele a alcança. Inatingível futuro.

            Ouso afirmar que o futuro é hoje e que se esconde na dobra do tempo. Na nossa alma pequenina. Em cada vitória ou fracasso. Em cada vergonha ou em cada orgulho. O futuro está na palma das nossas mãos, no pão sagrado da nossa mesa, nos sonhos do nosso coração. Meu pai dizia sempre que “o futuro a Deus pertence” e esta é a mais bela premissa da vida.

 

Paz e Bem!

 

Marisa Bueloni

         Necessito da paz como do ar que respiro.  Quietude e silêncio são dons do Espírito, que nos acalmam e nos dão a sensação benfazeja de plenitude em todos os sentidos, sobretudo em nosso íntimo. É lá, no fundo do coração, que tudo se processa. Nossos sentimentos e emoções, nossas angústias e medos, nossa coragem e nossa esperança.

        Leio sempre que a paz é fruto da justiça e isso se aplica também ao sentido social, a uma situação em que todos os cidadãos podem desfrutar dos mesmos benefícios e direitos concedidos em igualdade de condições, de forma que ninguém se sinta lesado ou prejudicado. Mas, penso, trata-se de uma paz utópica, pois o mundo está mergulhado nas mais cruéis formas de injustiça, corrupção e violência.                   

        Contudo, se Deus nos permite, e se somos merecemos dela, devemos lutar pela paz em nossas vidas, no lugar onde moramos, no cantinho sagrado onde repousamos nosso corpo físico, digno descanso. Para mim, usufruir horas de silêncio para ouvir música, ler, escrever, meditar, é um luxo maravilhoso e absolutamente necessário. Sobretudo, poder dormir o abençoado sono da noite, que nos faz acordar inteiros e dispostos.

        Li, recentemente, o desabafo e o apelo de um colega jornalista, acerca de um galo que cantava num terreno próximo ao prédio onde mora.  Ele e muitos vizinhos estavam sem dormir. Parece que o problema foi resolvido. Ah, Meu Deus! Sou solidária, entendo perfeitamente a situação, pois andei passando por algo parecido e luto pelo direito de ter silêncio ao meu redor.

        Todos em busca da paz! Sei de casos em que a pessoa foi, simplesmente, forçada a vender o apartamento, premida por quem, de propósito, sapateava no andar de cima, ou arrastava móveis. Há quem precisou se mudar de casa, por não aguentar o rádio do vizinho. Quanto mais se pedia para baixar, mais alto era o som.         

        A consciência de que vivemos em comunidade e o dever de respeito ao próximo têm a ver com a alma, a formação moral e o caráter de cada um. O mundo é feroz, há muita gente insensível, e a humanidade se digladia na falta de entendimento e de amor. Não é difícil resolver os conflitos do convívio diário. Basta boa vontade, educação, civilidade, e entendimento de que não sou uma ilha, há pessoas a minha volta e não devo perturbar o sossego público.

         Enquanto uns lutam pelo silêncio, de dia ou durante a noite, pelo direito de estar na sua casa, de morar nela sem suportar ruídos e som alto, latidos de cachorros, canto de galo na madrugada, etc, de outro lado existem os síndicos, os administradores de condomínios que aplicam multas, os órgãos e entidades ambientais que fazem cumprir a lei e protegem os cidadãos. Deus os abençoe.

 

Sem perder a ternura

 

Marisa Bueloni

         A poesia pede passagem. Concedo-lhe. Amar o perdido também deixa confundido este pobre coração. As coisas tangíveis, disse o grande poeta, tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas / muito mais que lindas / estas ficarão. Eterno Drummond.

          O livro do Eclesiastes, da Bíblia, vem em meu socorro: “Tudo é vaidade e vento que passa”. E a vaidade do homem enredado na internet? Cheguei aonde queria. O computador, os aipedes da vida e tudo o que nos conecta com o mundo num piscar de olhos.

          Houve um tempo em que abominei esta tecnologia, beijando os indicadores em cruz, jurando jamais sucumbir ao frio apelo da modernidade. Máquinas e eu somos de uma incompatibilidade mortal.  Até para operações no caixa eletrônico me atrapalho toda e acabo pedindo ajuda à moça do banco.

          Maravilha era ter uma Olivetti Lettera 32 cor-de-rosa, julgando que um texto saído da máquina de escrever tinha mais alma? Penso em nossos pais, avós e bisavós, que não tiveram computadores em suas casas e viveram tão bem. Ora, conheço pessoas que ainda sobrevivem sem celular.

          Enfim, as exigências da vida moderna nos obrigaram a capitular e a sucumbir.  Cérebros eletrônicos constituem uma concepção destinada a quê? A melhorar a vida das pessoas, certamente. A comunicação de hoje é algo fantástico, embora se questione se esta tecnologia teria eliminado de nós a emoção. E se a nossa solidão não seria ainda maior...

          Mas um e-mail de amor, ou de amizade, vem recheado de beijos, corações e flores. Rendo toda a minha mais profunda admiração ao carinho virtual, à nova linguagem, às cifras e formas de expressão, às mensagens e sua arroba indefectível.

          Sim, enterramos a máquina de escrever, a caneta-tinteiro, o bonde, o leiteiro das manhãs. O dinheiro virou um cartão de plástico, cuja senha não pode ser esquecida e o que mais temos na vida hoje é isso: senhas para decorar. Haja memória!

          Vejo multidões digitando uma maquininha, as expressões absortas, perdidas, distantes. O mundo pode acabar e eles estarão ali, sérios ou rindo, mas concentrados, passando com o dedo indicador sobre a tela, arrastando imagem após imagem, num gestual que tomou conta do mundo, dos pequeninos até os mais idosos. A humanidade se encantou com esse brinquedinho.

          A crônica ainda se espreme. Passou por um processador de texto e chegou até aqui. Não parece exausta, tampouco perplexa. Apenas viu como  as palavras fluem rápidas no teclado ágil e necessário.

O que é necessário, meus caros? Que não se percam o sentimento e a emoção. Que ainda reste um pouco do romantismo e do lirismo de outros tempos, embora embalados na tecnologia do assombro.

 

Vasto mundo - 2

 

Marisa Bueloni

         Ocorre-me, frequentemente, pensar no sentido da vida e no significado do mundo. A velha e boa pergunta: de onde viemos, para onde vamos e o que estamos fazendo aqui, no planeta azul. Acontecem coisas boas e coisas ruins a todos nós, não temos controle sobre a maior parte destes fatos e aceitamos sua sequência cósmica sem reclamar.

            Neste vasto mundo de tragédias e espetáculos, de países atormentados pelo terrorismo, pela seca ou pela fome, nesta terra de tantas faces, neste solo onde fincamos nossa esperança, buscamos o equilíbrio necessário para enfrentar de tudo.  Alegria, mágoa, dor, luta, sofrimento e o imponderável da vida, qual seja sua forma de ação.

            A vida apresenta-nos a bondade diária do sol. Minha mãe costumava dizer que “o sol Deus dá”, e o resto cabe a nós fazermos, realizar, dar conta de tudo, pois o dia é comprido e nele cabem todas as nossas tarefas. Se Deus nos dá a graça cotidiana do astro-rei, descontemos os dias nublados em que nos pomos, quietos, a refletir sobre o vasto mundo à nossa frente e dentro de nós.

            A vastidão física do mundo se confunde, às vezes, com nosso universo interior, quando nos julgamos pequenos demais ou muito irrelevantes. Fazemos, então, a dolorosa comparação da nossa vida, da nossa realidade individual com a aparente felicidade do que acontece lá fora, com as luzes da ribalta que não se apagam nunca, as redes sociais onde parece reinar todo tipo de sucesso e de uma festa interminável.

            Neste vasto mundo, sobretudo no mundo real, toda celebração tem hora para começar e acabar. As luzes do salão se apagam e voltamos para a nossa rotina nem sempre esfuziante. Com o passar do tempo, e com a chegada da maturidade, compreendemos melhor esta vastidão interna que tem ressonância na nossa vida afetiva.

            Voltando ao arroz com feijão do trivial cotidiano, tudo se acalma. Temos nossa casa, nosso cantinho neste mundo, nossa cama aconchegante, nosso quarto bem arrumado, nossas coisas amadas, nosso reino pessoal, tudo nos devidos lugares e a paz nos assegura o bem. Sentimo-nos abençoados, se tudo está de acordo com a sensação íntima e avassaladora de certas horas.

            São muitas as sensibilidades terrenas, desde que nascemos. Do primeiro vagido até a mais recente emoção. E no intervalo desta epopeia, passa um filme na nossa cabeça, como se costuma dizer. Da alegria de subir num palco, aos 18 anos, para cantar num festival de música, até o último adeus à pessoa amada, vai um longo tempo de sensações, de vastas horas vividas sob o céu que nos protege.

             Vasto mundo! Se eu me chamasse Raimundo...

 

Rumores do vento

 

Marisa Bueloni

         Se o céu se abrir, direi que ainda estou nocauteada de sonho. Mas também indignada. As coisas dão uma volta muito longa para chegar onde desejam. Dona Vida é cheia de nove horas, reparou? Ela se adianta, se atrasa, chega bem no meio da festa e, às vezes, sai de fininho. Ninguém pode abrir a boca. Resta um caixão tristíssimo, flores de um perfume estranho, uma cova na terra, a conta maior que tiveste em vida.

        Se o céu desabar, não haverá como sair de baixo. Feliz de quem construiu seu próprio refúgio dentro do coração. É coisa espiritual, que não se compra com dinheiro do mundo. Não é algo físico, tipo uma construção segura, senhores.

        Na vertigem da vida, quero a exatidão do que não acontece. Do sonho não realizado. Da sorte que nunca tivemos. Do concurso que não ganhamos. Do encontro jamais tido. Do beijo não dado. Dá para entender? É como digo: melhor o mistério eterno que a revelação absoluta.

        Neste combate diário, a luta de viver é quase insana. Só não vamos à loucura completa, porque nos protegemos o tempo todo. Cuidamos das coisas importantes, das situações delicadas, dos afagos aos litígios.

        As coisas da terra são sempre muito sombrias. Devem ser mais belas e mais alegres as do Céu. Buscai as coisas do Alto. É para as alturas que dirijo meu olhar solene, à espera de solenidades. E assim, durante a confissão, num momento inspirado, em que os santos nos altares pararam para ouvi-lo, o frei me disse: “Minha filha, Deus conhece o barro de que somos feitos”.

        Neste inverno da vida, encanta-me o senso das folhas secas. Alisa-me a rosa dos ventos. Acordo do sono dos séculos. Abraça-me a força de que todos nós precisamos para ir em frente. Aposto sempre na esperança e evito os presságios. Pego o atalho mais curto que leva ao equilíbrio, à prudência e a um pouco de juízo. Só o necessário.

        O necessário da vida é tão pouco! Basta-me meia dúzia de coisas para ser feliz. Minha bioquímica é alegre, o ânimo acorda comigo a cada manhã.  Ainda dou conta de limpar a casa, podar o jardim, lavar minha roupa e fazer a comida. A exasperação do cotidiano fica por conta da violência e da corrupção do nosso mundo.

        Olho as frutas nas bancas e a floração de algumas coisas imperecíveis à minha volta. Adivinho um perigoso fragor de astros em colisão. O rumor das folhagens ao vento, o coração da Terra pulsando. O Sol se move entre as palavras. Perdida de amor, pergunto: Deus, por que fizestes tudo isso, assim, sem ao menos nos avisar?

        Homens de boa vontade! Seremos eternos, se construirmos o novo Éden perdido na memória. Saudade da pátria celestial? E as lágrimas não respondem à minha pergunta...

 

Onde mora o sonho

 

Marisa Bueloni

         Quero estar lá, onde mora o sonho. A algumas léguas da vilinha de pescadores, para comprar arroz, feijão, óleo, açúcar, farinha, peixe fresco, frutas e legumes. Que na casa tenha água potável à vontade, e por perto alguma cachoeira para banhos inesquecíveis.

        Perto do mar mora o sonho. Não me cansarei de sonhar e repelir qualquer imagem de oceanos subindo, invadindo ruas, inundando cidades. Esta visão é incompatível com meu sonho. E se o adiei até agora foi pensando nisso.

        Será que um dia crio coragem? Não, é apenas um sonho. E alguns deles, melhor nunca realizar, ou já não teremos com o que sonhar... Realizar um sonho pode dar um baita medo. E se a casinha na praia deserta existe e espera por mim?

        Não. Ainda não a vi. Em geral, tenho uma “visão no espírito”, tal qual tive da casa onde moro. Estava vendendo a chácara no Campestre e comprando casa na cidade. A corretora ia me mostrar imóveis num condomínio fechado. Enquanto me arrumava, “vi” esta casa que comprei. Os balcões de granito da cozinha, as pastilhas vitrificadas decorando parte dos azulejos.

        A casa onde moro foi a primeira de cinco que visitei naquele dia. Estando nela uma segunda vez, para me certificar da compra, tive uma “visão” de mim mesma escovando os dentes no banheiro da suíte. Tudo isso foi me dando certeza de que era esta a casa a ser comprada. Fechei o negócio.

        Ainda não tive a “visão” de uma casinha solitária, num local de paz, onde habitar em segurança. Não avistei a varanda e a rede, o luar e as estrelas; não ouvi o sussurro do coqueiral ao vento e a música marinha chamando minha alma eternamente.

         Lá onde mora o sonho quero estar. Por entre as brisas quentes, as tardes sem destino, sem horário, sem cansaço. Apenas um corpo refletindo o merecimento de estar vivo entre os vivos. Para comer o abençoado peixe, os frutos da terra e da Criação.

        Penso em Deus e de como Ele tem conduzido minha vida. Do quanto me enganei toda vez que O impedi de agir, quando tomei a frente e errei. Sua bondade corrigiu o desvio, apontou a rota, e me salvou para sempre. Deus é fiel.

        Tenho contado com Ele para a realização deste sonho. Daqui a alguns anos, talvez. Quando sentir que chegou a hora. Espero ter sabedoria suficiente para reconhecê-la. Momento inspirado. Vender minha casa, juntar o suficiente para encarar uma casinha à beira-mar e deixar o sonho acontecer.

        Alguém quer ir comigo? Tem gente disposta a viver esta aventura marinha? Visitar praia por praia de um litoral bonito e procurar pela casinha final. Tem missa na capela? E a cidade, fica muito longe, moço? Não, dona, é logo ali.

        Logo ali é o sonho.

 

 

Quero de volta

 

Marisa Bueloni

         Houve um tempo de sonho em nossas vidas? Sim, houve. Por mais jovem alguém seja sempre terá algo a recordar, mesmo da recente infância, das brincadeiras que não se brincam mais, porque o celular roubou todas as imagens, todas as conversas ao vivo, toda a ventura, todo o... Paremos por aqui.

        Para que criticar o celular, se dependemos tanto dele? Estamos aprisionados a um sistema irreversível. Algumas coisas ficariam totalmente esquisitas no contexto atual.  Ah, senhora dona Sancha, coberta de ouro e prata! Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar. Para o meu amor passar.

        Quero de volta a minha Piracicaba de antigamente, de pouco trânsito e muita beleza, um convívio maravilhoso entre as pessoas.  Tudo evolui, as coisas mudam. Mas, hoje a Noiva aniversaria e celebro a cidade que amo de todo o meu coração.

        Quero de volta, se possível, a barraquinha de doces que ficava parada na porta do Grupo Barão. O “baião” de coco queimado, que incendiava nossa alma e nossa alegria.  O amendoim torrado, os bijus. Posso ver a face serena do vendedor, “seu” Guido, que povoa a saudade e a memória.

        Era um tempo de realejos e serenatas, de pular corda e jogar bola na rua com os primos, até a lua nos mostrar a face primitiva de Deus. “Entra, menina e, antes de dormir, vai lavar o pé”. São dois, mas a ordem era “lavar o pé”. Para pular da cama na manhã seguinte, na ânsia bela de viver.

        Minhas irmãs mais velhas ganhavam serenatas. Acordava achando que estava no céu de todos os céus, uma sensação sublime. A ganhadora da seresta acendendo a luz do terraço, meu pai apagando, e a briga deliciosa entre os dois. “Pai, é de bom tom acender a luz”. E as cordas plangentes do violão ressoavam pela noite infinita.

        Os filmes bobinhos com Rock Hudson e Doris Day, a beleza de se arrumar para ir ao cinema! A expectativa do sábado e toda a sua magia encantadora. Os rapazes esperando a saída da sessão, as moças na paquera, o começo dos namoros.

        Recordo o terraço florido da casa da infância. Os dois bancos de madeira, com pés de ferro, cavalos bem firmes, suportando o peso das ripas nas extremidades. Ali nos reuníamos para conversar, para pegar as florinhas cor-de-rosa da trepadeira que fazia sombra na leitura. Passava um conhecido do meu pai e a pessoa fazia menção de tirar levemente o chapéu da cabeça. “Tarde!”.

        Aqui nasci, cresci e jamais saí desta pequena cidade maravilhosa. Piracicaba que eu adoro tanto!

 

A vida deu certo?

 

Marisa Bueloni

         Li uma frase assim: “É com amor e com afeto que a vida vai dando certo...”. Será que vai mesmo? A vida deu certo pra você, meu anjo? Às vezes fico meditando nisso, se segui a minha estrela, ou se ela continua me seguindo até hoje.

            Espero ter visto o astro logo depois de nascer e percebido qual seria o meu verdadeiro destino. Se isso é possível. Aquela história de que um Serafim nos visitou e disse algo sobre nós... Enfim. Que o Anjo amado permaneça conosco, pois avançamos no tempo. Sobretudo quando já se completou 67 voltas em torno do Sol.

            Sim, aniversariei domingo. As pessoas costumam dizer “mais uma primavera”. Mas eu completo primaveras no inverno, no mês das férias escolares. E ficávamos sem os parabéns, a classe toda cantando para o aniversariante. Mas, alguém sabe o que são férias de julho na infância querida, na aurora da nossa vida?

            Vivi este tempo amorosamente, os casaquinhos de flanela feitos pela minha zelosa mãe, a semana feliz passada no sítio dos tios. Varais sob o céu de puro azul, guardanapos alvíssimos secando ao sol.  Milho verde assado na brasa.  O pão feito em casa da tia Filomena, as noites estreladas no terreiro da casa. O sonho de ser uma menina em julho.

            Tudo deu certo? Não sei. Fiz três faculdades, estudei muito. Creio que me casei com a pessoa certa, fui felicíssima num casamento de 36 anos, até que a morte nos separou. Duas filhas de ouro, e netos para esta fase em que somos chamados a um recolhimento natural. Então, estar com eles é um presente do céu.

            Ao longo da vida, onze intervenções cirúrgicas, sendo nove com anestesia geral. O Serafim teria previsto tudo isso? Mas não havia alternativa e lá ia eu para o centro cirúrgico, de onde acordava cheia de esperança: está será a última. A última foi em 2005. Estou celebrando 12 anos sem cirurgias.

            Algo deu errado?  Sim, tanta coisa sai errada na vida da gente. Umas têm conserto, outras exigem tempo. Ou resignação. Mas penso na moça linda, a atleta Laís Souza, que treinava na neve, em 2014, sofreu uma queda e está tetraplégica. Nos meus terços, rezo para os que têm de passar a vida numa cadeira de rodas. Rezo para os que carregam cruzes pesadas, pelos que lutam com a dor. Pelos coroados com o sofrimento.

            “Ninguém quer a morte / só saúde e sorte”, diz a letra de uma música de Gonzaguinha. A vida é bonita quando tudo vai dando certo, quando sonhos são realizados, quando se consegue ser feliz. Saúde e sorte. Mas, Dona Vida nos causa surpresas duras pelo caminho. Sabedoria e paciência para conviver com elas. Deus nos abençoe e proteja. Amen.

 

Para sempre

 

Marisa Bueloni

         Há coisas belas demais e que não podem nunca ser descartadas. São caixas cheias de saudades, guardados que dizem respeito somente a nós e ali permanecerão, até que, depois da nossa partida, os filhos ou um irmão querido venham a nossa casa fazer a limpeza de praxe... Temo por este momento. Assim, mantenho tudo em rigorosa arrumação, pois quero que encontrem ordem e organização nos meus armários e gavetas.        

    Há muito a ser preservado enquanto vivemos. A mesa da sala de jantar e sua história de décadas. A abençoada bandeja de inox que serviu tanto e continua tendo sua utilidade no universo doméstico. Todos os retratos na parede, todas as fotos em branco e preto, ainda não emolduradas. Estão ali, testemunhando um passado de sonho.

    Guardei os lenços do meu lindo. Guardei a carteira com os documentos e até a carteirinha do plano de saúde. Guardo algumas coisas essenciais. Para tocar e sentir na pele a saudade, a força de um tempo que, se não volta mais, pelo menos é revivido na memória como pequenas joias de afeto e beleza.

    Onde mais guardar, senão no coração, estes tesouros que cada um conhece muito bem? O coração é a casa do amor, a profunda morada do bem e da bondade. É nele que repousam as nossas relíquias mais importantes, tesouro inestimável.

     Ao longo da vida, algumas coisas vão se despedindo de nós, deixando de existir, por diferentes motivos. Um dia, tivemos um bem material que nos foi muito caro. Uma bicicleta com marchas, com a qual nos divertimos; uma casa muito bem decorada e cheia de quadros; livros, livros e mais livros; colchas bordadas, porcelanas, muitas malas, bolsas e sapatos.

    O tempo passa e já não precisamos de muita coisa. Diminuímos visivelmente os objetos à nossa volta. A casa passa a se chamar “aconchego” e nela cabe o necessário. Tudo o mais está guardado no coração. Mas a cristaleira majestosa que a sogra deu de presente ainda compõe a sala, alvo de lindos suspiros e comentários.

    Assim é a vida. Tempo de juntar e tempo de lançar fora. Tempo de rir e tempo de chorar. Tempo de compreender que as lembranças são nossa maior riqueza, sobretudo se a sorte de uma vida bonita foi o mais belo presente de Deus.

    Então, guardemos essa vida no coração. Guardemos os anos 60, a margarida, os festivais de música, as guitarras agudas e os hinos libertários dos nossos ídolos. Com respeito e amor, guardemos.

    Guardemos a pantalona colorida, o chinelo de couro, a blusa de gola rulê canelada e os livros da faculdade. Guardemos o início da vida profissional, o primeiro emprego, o noivado, o casamento, os filhos e a dívida de viver. Honradamente, guardemos no coração.

 

Passará

 

Marisa Bueloni

         Por que choras, passarinho? Por que estás longe do ninho? Ora, linda avezinha, vem aqui ficar na minha. Vamos juntos de passeio, como quem a nada veio. Dá-me tua asa penada, que a longa madrugada será o nosso recreio.

            Tu te calas porque é noite, e eu te acolho com carinho. Porque emites sons tranquilos, não competes com os grilos no teu canto de mansinho. Lua alta se derrama no granito da cozinha. Um luar que vejo torto quando a noite se avizinha.

            Passará a mágoa, o pranto. Passará a dor da espera, como a luz de uma quimera, como sublime acalanto. Vem pra perto, amiguinho. Tu te achegas no meu braço, que será o teu regaço para onde te aninho.

            Passarão todas as horas, passarão todas as dores. E meus olhos nesta espera é uma esfera toda em cores. Por que rimo, passarinho, por que rimo assim à toa? Não te espantes com meus versos, pois a rima nem é boa...

            Reconheço, passarinho, que sou frágil como és. Temos esta natureza de nascer, viver, morrer. Mas se podes, vem comigo, vive sempre ao meu redor. Tua vida pequenina, junto a minha, meu amigo, torna tudo tão melhor!

            Quem me dera, passarinho, quintanares Deus me desse! Para ouvir a voz do vento nas ruazinhas tão nuas. Onde lá no fim do mundo, há dores minhas e tuas. Quem me dera, quintanares! De Quintana a prosa bela, numa noite insone e triste ver estrelas na janela.

            Passará, meu passarinho, esta dor de esperar. Para ver de novo o certo, como o certo há de ser. Para que haja sentido em nascer, viver, morrer. Ou senão, minha avezinha, de que vale o que se vive? O que tenho, o que terei, ou mesmo o que nunca tive?

            Tu tiveste, passarinho, meu jardim de moradia. Vi quando vieste esperto beber água à luz do dia. Pois bebeste desta água que é tão tua e é tão minha. Que me mata a sede e a fome, onde poso de rainha. Sem um cetro, nem coroa, sem um reino pra reinar. Realeza é minha casa, como vida é tua asa, para que possas voar.

            Se me entendes, passarinho, passa aqui sempre que podes. Passarei nas tuas penas o meu lenço ensopado. E enquanto te socorro, tu te apressas e me acodes. Fica assim bem combinado nosso pacto sagrado. Gente e ave se entendendo, num momento abençoado.

            Passará, meu passarinho, esta dor sem medição. Tu não sabes quanto sofro na visual confusão. Quem  deixou assim confusa a minha vista, assim? Ah, vida de tantos brados! Há enredos bem traçados, como amores bem flechados. Ai de mim.

            Vem te despedir, amigo, nesta noite mansa e clara. Faz um frio siberiano, mas meu corpo nem repara. Pois me aquece a esperança e uma lembrança rara. Passará, meu passarinho, toda dor, toda tristeza. E verei teu voo ao longe – que beleza, que beleza!...

 

Sonhar não custa nada

 

Marisa Bueloni

         De sonho em sonho, ela flutua. Não sabe mais que dia é hoje, que horas são, quando é a próxima dose do medicamento, já se cansou de exames e de tudo isso, e acha que envelhecer é maravilhoso, a vida poderia dispensar o remédio amargo de vez em quando.

    De sonho em sonho, aparecem na moldura do tempo a sandália de couro, a pantalona estampada, o colar de riponga, os brincos e pulseiras. Descer a pé a rua Governador, para ir à faculdade no centro, era caminhar nas nuvens. Como num filme, a vida transcorria, as cenas se fechando cheias de mistério.

    De sonho em sonho, remexe nos guardados, abre a caixa com as fotos amadas, outra com alguns postais, guardados zelosamente. De novo, inspeciona as gavetas onde as toalhas lindas estão perfumadas e plenas das digitais, os almoços festivos, o ruído das taças natalinas, brindes e risos.

    De sonho em sonho, aparecem os rostos de uma nitidez encantadora, mas a sépia da saudade a impede de continuar. As lágrimas lhe toldam os olhos. Melhor apagar a visão do passado. Ele costumava dizer: “Sonhar não custa nada”.

    E assim, de sonho em sonho, que é de graça,  atravessa as paredes das casas habitadas, as filhas pequenas, a vida dando seus primeiros passos e o futuro lá na frente, acenando gentil. Ah, tempo implacável, que corrói parte de nossas vidas.

    De sonho em sonho, a vistoria pela casa amada, uma oração para que Deus lhe dê o silêncio tão necessário, sem latidos de cachorros, por favor, Senhor! Prece diária, fervorosa, suplicante! É bom demais sonhar com a paz!

    De sonho em sonho, ela projeta a casinha mil vezes desenhada. Já a aperfeiçoou tanto, melhorou a passagem para a parte íntima, corrigiu janelas e entradas de luz importantes e, depois de tanta correção, agora a planta lhe parece perfeita. Só falta encontrar o terreno no bairro amado e construir. Haverá tempo?

    De sonho em sonho, ela pede tempo a Deus. Para conhecer parte desta felicidade terrena, o gosto de conceber a casa sonhada, no seu conceito de moradia, onde habitar um imóvel se torne algo absolutamente salutar, encantador, humano. Do ponto de vista da arquitetura e na visão benfazeja de morar com amor.

    Mas o sonho não cessa jamais. Se a casa não se concretizar, restará a graça da esperança. Há de haver em algum reino celeste a morada eterna do regozijo, da paz e da alegria infinitas, no etéreo mundo onde o corpo glorioso flutuará pelas alamedas e jardins floridos.

    De sonho em sonho, ela tenta esquecer um amor que, apesar de tudo, aquece seu pobre coração. Por um triz! Foi quase feliz. Mas, tem consciência de que a felicidade completa não existe nesta terra...

 

 

O amor cura e salva

 

Marisa Bueloni

          Um querido amigo escritor afirmou num texto que “o amor é o aconchego mais presente na receita da felicidade. É o ar, a água e o alimento da vida. A alegria e a vontade de viver dependem dele.” Concordo plenamente. Serei uma insistente trovadora do amor, em todas as suas instâncias.

           Penso que amar é algo tão divino e arrebatador, a ponto de não exigir correspondência. O amor basta em si mesmo. Saber-se amando (a algo ou a alguém) é tão profundamente belo e enriquecedor, que se o outro não corresponder ou não souber que é amado, não faz mal. O coração vive da graça espontânea que brota independente da nossa vontade.       

           Amar não deixa ninguém envelhecer. O amor é o antídoto para a suposta velhice, o elixir milagroso da juventude eterna. O amor é o remédio ideal que combate todas as dores, as do corpo e as da alma. É a grande descoberta para os seres “que passam”. E estamos todos de passagem.

           Ah, que o tempo não passe sem que tenhamos amado o necessário e o suficiente. Que a inexorável marcha dos ponteiros não nos encontre apáticos e insensíveis, quando ainda há tempo para dar e receber amor, todo tipo de amor. Amar pode deter a passagem do tempo: esta é a minha teoria. Abraçar o outro, saber expressar o afeto, beijar a barriga da filha que espera um menino, dizer “pai, eu te amo”, “mãe, você é maravilhosa”, fazer um elogio, tudo isso faz parar o tempo.

           É este o tempo precioso, inestimável, digno. O tempo que passamos amando, o tempo gasto no amor. Nada neste mundo  concorrerá com as horas vividas na plenitude desta beleza. O amor é tudo o que precisamos nesta vida. “All you need is love” , diz uma canção dos Beatles.

             Na contagem das lembranças, o passado de cada um é algo bem íntimo, nos fundamentos do coração. Quanto eu amei? Quanto me doei? Quanto abracei, beijei e disse “eu amo você”? Quantas vezes eu soube expressar meu amor, minha fé, minha esperança, não apenas para mim, mas principalmente para o outro?

           Como explicar o nobre sentimento, sobretudo entre homem e mulher? Esta bênção sublime há de ser eternamente celebrada, ainda que o mundo venha a ser habitado por máquinas e robôs. Em alguma placa metálica, num pedaço de fibra ótica, no estilhaço perdido de um chip sobreviverá a memória do amor.

           Que mundo árido, se não existisse o gesto generoso de estender a mão, o abraço caloroso, o beijo, a palavra acolhedora e sábia! De quantos elementos se compõe este sentimento, para que aconteça a bela revolução.

           Amor! É o céu na alma! Delicadíssimo. Cristal puríssimo. Portanto, cuidado. Cuidado ao transportar a preciosa caixa do amor!...

 

 

Pela janela da vida

 

Marisa Bueloni

Vejo o mundo por muitas janelas, sobretudo por meio da internet. Nela viajo distâncias incríveis, conheço lugares paradisíacos diante da tela do computador. Vou selecionando sites, procuro praias desertas e cidades costeiras onde habitar com segurança. Encontrei lugares lindos, tanto mar, tanto mar. E um céu azul de cortar a carne. Cenário de peixes inspirando as janelas interiores.

          Mas, recebo um PPS lindo da Groenlândia e desisto de morar à beira-mar. Apaixonei-me pela paisagem de neve e de sonho lá quase perto do Oceano Glacial Ártico. Mas é preciso coragem para viver em meio a tanto gelo e frio. Brincadeira, não trocaria uma praia linda e deserta por nenhum outro lugar neste mundo. 

          Pela janela da vida, do alto de seis décadas, já vi algumas coisas, guardadas nas retinas impregnadas de sonho. A infância e os quintais, os domingos pelos sítios, os pés de frutas nos quais sempre elegi o galho mais alto de onde avistava a lonjura que me esperava sempre.

          Cada horizonte visto de um rústico mirante era o êxtase da alma pequenina. Alma consciente de sua dignidade para arrancar da vida o que fosse nobre e necessário. Tirar somente a parte que nos cabe, lançando para o derredor um olhar de respeito e afeto.

          Estas coisas lindas foram aprendidas com meus pais. Eles nos ensinaram a usar até o fim o que tínhamos comprado. Não descartar facilmente. Não comprar algo novo só para ter mais um. E um professor de Matemática me deu esta lição: lembrar que as coisas tidas já foram desejadas. Seu Sebastião de números bordados com o giz e muita sabedoria.

          As janelas da vida se abrem para mim todos os dias. Tudo é um acontecimento quando se tem uma chama acesa no peito, a atenção amorosa para o que nos cerca e nos solicita de instante a instante. Podar o jardim, arrumar uma gaveta, escrever um texto. Uma saída de carro, a chegada ao destino agendado, uma parada na Igreja dos Frades para um momento de Adoração e, no final do dia, a aula de Pilates. Que dia! Tudo isso constitui um movimento de riqueza infinita, conectando mente e corpo.

          De volta para casa, um banho quente, o cabelo lavado e perfumado de creme. A cozinha reluz e cheira tão bem. Dá até pena tirar dela este brilho silencioso. Lembro de alguém que, para não sujar a cozinha à noite, comia sempre uma maçã... Bolacha água e sal nem pensar, os farelos poderiam cair no chão.

          Ah, abençoada casa, abençoadas janelas da vida, por onde vemos tudo passar, acontecer. Os amores, as paixões, os sonhos, as esperanças. A sala de jantar que já reuniu os amados. Tantos já partiram, mas deixaram em sua memória as digitais da saudade e do amor.

 

Quando eu crescer... 

 

Marisa Bueloni

Quando eu crescer, quero ser igual à Madre Tereza de Calcutá. Apaixonei-me para sempre por esta religiosa que enfrentou o mundo e as autoridades eclesiásticas para ser quem foi, para construir o Reino aqui na terra, vivendo junto dos mais pobres entre os pobres.

          Assisti, recentemente, ao filme de sua vida e foi algo arrebatador. Aquele fogo na alma nunca a fez desistir, mesmo diante de tantos obstáculos e incompreensões. Nada para si, nem dinheiro, nem honrarias ou glórias. Comparar sua humildade e sua pobreza com os políticos de hoje, tão indecentes, gananciosos, obscenos!...

          Quando eu crescer, quero ser inspirada por pessoas como Mandela, Zilda Arns, Betinho, São Francisco de Assis, Martin Luther King, São Felipe Nery, Madre Cecília do Coração de Maria, e por pessoas como meus queridos pais que lutaram a vida inteira sem jamais se aposentar do trabalho, da doação, do serviço e do amor ao próximo.

          Quando eu crescer, quero ser como a plantinha anônima de qualquer cerrado ou campina, de um abismo ou de um rochedo altíssimo, inalcançável e belo. Florescer, vicejar, oferecer as frágeis pétalas ao sol, ao sabor de cada hora, refrescada pelo vento, banhada pela chuva, cuidada por Aquele que vela por nós. Não valeis mais que passarinhos?

          Quando eu crescer, quero aprender a Bondade, assim com B maiúsculo. Julgamos que somos bons. Não, não somos. Guardamos tanta má vontade e egoísmo em nosso íntimo! Temos de destruir estas montanhas de prepotência e de orgulho que nos enterram todos os dias. E sair para respirar o ar puro da manhã terapêutica.

          Quando eu crescer, quero aprender a escrever direito. Sim, a gente pensa que sabe redigir um texto, mas falhamos aqui e ali e a sintaxe da vida nem sempre sai correta... Quando eu crescer, quero entender de Física Quântica e da mecânica do universo, fascínio eterno. Menina cientista, vasculhando o céu de fora e o céu interior, abismada com os mistérios da Criação. 

           Ah, quando eu crescer, se Deus me der esta graça, quero ser a Tirsa do Cântico dos Cânticos, ornada como as mulheres bíblicas, bela entre as belas, para as Núpcias do Cordeiro. A Noiva nas delícias eternas junto do Senhor, nosso Esposo incansável, Aquele que nos corteja sem cessar.

 Quando eu crescer, quero ser como aquela estrela que vejo da minha janela, ao anoitecer. Deve ser a Alva que precede a Aurora. Ela me infunde uma esperança nova, um infinito sentimento de amor e de bondade. A estrela brilha distante, como distante está o meu coração.

 Quando eu crescer, quero voltar a ser a criança que fui um dia. Passa, passa, bom barqueiro, e leva contigo as mágoas dos anos e das saudades...

 

 

Daria um bom filme? 

 

Marisa Bueloni

Está muito em moda delatar. Delatar quer dizer denunciar, revelar (crime ou delito), acusar.  A história dos delatores nunca é muito boa, mas agora a delação ganhou prestígio em nosso país, pois, no momento político, quem delata não só tem a pena diminuída, mas ainda goza o direito de cumpri-la nas mansões praianas ou em casas e apartamentos de metros quadrados a perder de vista.

Ser delator tem sido algo muito promissor. E ainda vem coisa pela frente. Estamos estarrecidos com o desenrolar dos fatos. Em plena Lava Jato, políticos de envergadura continuam praticando crimes. É uma desfaçatez vergonhosa. Nosso assombro tenta recusar o escabroso volume de informações.

E tem as mulheres dos políticos, as cenas mais inacreditáveis, as caras-de-pau desta trágica história brasileira, as supostas madames em excesso, num tempo em que ser simplesmente madame ficou tão fora de moda. A que gastou dinheiro de monte, achando a vida bela, sem nunca se preocupar com a origem do mesmo. Meu marido pagava e pronto. Tem a outra, que resolveu revelar a conta do e-mail junto com a presidenta. Onde já se viu isso? É de abalar a República!

Tem a senhora Batista, com ares ainda de senhorita, que dá uma entrevista expondo a vida luxuosíssima, olha, vivo assim, dá pra reformar a casa sempre, viajar, ter empregados, chego em casa e meu carro está abastecido, não sei quanto custa o litro da gasolina,  eu podia comprar uma bolsa por dia, mas não faço isso. Tadinha. Compra! E era jornalista, dividia a bancada com o Boechat, na Band, até pouco tempo. Uma alienação de dar pena. Não, de dar engulhos, raiva, ódio!

E quanto às propinas, ninguém mais pede 100 mil, 200 mil, 500 mil. É tudo na base dos milhões. Vai logo pedindo dois milhões, não seja bobo. Todo brasileiro já sabe como pedir propina neste país. Quanto é? Uns cinco milhões, tá bom. Simples assim. Tem quem pague. E depois cobra o preço lá na frente. Entrega tudo. Dá uma banana pro Brasil e foge para os Esteites da vida.

A história dos irmãos Batista é algo que escapa​​​​ à nossa vã compreensão. A gente lê, lê, lê e continua incrédulo. Riquíssimos, donos de uma fortuna incalculável, vão sair dessa rindo da nossa cara. Consta que se beneficiaram de bancos estatais, receberam dinheiro a rodo. Cineastas, quem será o primeiro a rodar o filme “Os irmãos Batista”?

Vivemos numa democracia, e isso não tem ajudado muito. A alma da nação sangra e a brava gente brasileira está confusa. Falta aqui uma política do bem. 

 

De onde vem? 

 

Marisa Bueloni

   Há tardes em que sou capaz de ver o invisível. Não sei o que é, nem de onde vem. Apenas aparece na minha frente como algo que flui, escapa pelo ar, volátil matéria do nada. Enfrento abismada a beleza do momento, tão efêmero e tão misterioso.

   Não dá tempo de olhar para ele, já sumiu. Não se fixa nem por um átimo, não se pode imaginar o que seja, some da vista tão rápido quanto apareceu. Dirigindo meu carro, penso em parar, estacionar em algum lugar seguro para assimilar o que acabou de acontecer.

   É como se fosse uma graça divina tentando fazer contato, a qualquer hora do dia ou da noite. Logo após a fugaz visão, assalta-me a certeza absoluta de todas as coisas, da origem do universo à nossa antiga ancestralidade. Vejo lá atrás seres que representam a nossa estirpe e tudo se apaga num piscar de olhos.

   Ando ouvindo um som suavíssimo no entardecer do dia. Bem naquela sublime passagem em que os desmaiados raios do sol entregam-nos para a noite. Algo soa delicadíssimo, enquanto quero pegar com as mãos as últimas cores do céu. Aprisiono em meu peito a doce poesia da hora que se acaba.

   Tudo se acaba, penso tristíssima. Amores começam e terminam, às vezes sem ao menos um adeus. Acabam de forma abrupta, brutal e sem palavras. Então, repito como na canção: o que fazer, se eu tenho só palavras para te conquistar?

   Não tenho mais nada, meu amor, além das palavras. E quanto a elas, não sei de onde vêm. Olha que vírgula mais bonita a frase pediu agora. Se não colocar a vírgula, a frase sobrevive. Para que uma sentença gramatical tenha dignidade, é necessário clareza e limpidez. A vida é assim: afirmação, tenacidade, garra e luta. E que ninguém pense em desistir dela.

   De onde vêm as nossas razões, os nossos motivos? As orações que rezamos, desfiando as contas do nosso terço amado? De onde vem a fé, os poemas, os desejos? De algum secreto lugar da nossa alma pequenina, enquanto lá fora as frases e as palavras não têm fim. Um amor tem fim. Uma saudade não. Diz a letra de uma canção lindíssima: “Tristeza não tem fim / felicidade sim”.

   O coração deseja filosofar, retomando aos poucos o tema da crônica: de onde vem a súbita visão do invisível? De onde vem a luz fugidia e veloz, sem dar tempo de conhecê-la? Seria possível tocar seu substrato, a flor da sua essência? Nem estacionando o carro, nem fechando os olhos, em momento algum a visão se completa. Trata-se de um fragmento, uma parte de um todo que não se revela. Um véu que se ergue muito timidamente, só uma pontinha dele.

   Somos feitos de um sopro divinal que nos abraça sem cessar. Ouso afirmar que somos feitos de sonhos e de estrelas. E dos poemas de amor.

 

Nem mais, nem menos 

 

Marisa Bueloni

   Em todos os momentos da vida, bom é manter o equilíbrio. Se possível. Minha mãe batia nesta bendita tecla, que tínhamos de ser ponderados em tudo, apontando exatamente o ponto crucial de cada situação. Amava os ditos de minha mãe, linda pessoa de pouco estudo e muita sabedoria.

 

    Tenho um poema assim: “Nem tanto ao mar/ nem tanto a terra / E na busca do meio-termo/ Quanto se erra...”. Sim, cometemos muitos erros e, se não podem ser apagados, aprendamos com eles. Tiremos deles as necessárias lições. Mas é constrangedor para nós mesmos, algumas vezes, notar que repetimos novos deslizes ao longo da vida.

 

    Uma palavra bem dita é uma graça abençoada. A boa palavra ilumina, acalma a tempestade ao redor, restitui o ânimo e a coragem a quem deles precisa. Mas uma frase impensada ou dita no calor da contenda pode resultar numa tragédia sem fim.

 

    Uma de minhas irmãs, a que herdou a sabedoria de minha mãe, costuma dizer: “a gente vai, a gente volta”, quando se refere a tomar partido numa determinada questão, numa situação difícil de ser julgada ou compreendida. Mas o que resta de mais positivo em nossos vaticínios é a moderação, aquela filosofia de não esticar demais a corda, não forçar o ponto de tensão, para que não venha a se romper. E rompendo-se, leve com ela algo precioso demais. Um amor. Ou uma amizade, por exemplo.

 

     Tristeza sem nome é perder um amor, ou perder o amigo devido a um desatino, pela falta de esclarecer um problema, uma dúvida. Por questões ideológicas, estando o amigo em lado oposto, politicamente. Vimos como o país se dividiu no recente episódio do impeachment da presidente Dilma. Amizades de anos se romperam, algumas pessoas tomaram atitudes drásticas, chegando a eliminar de seus contatos nas mídias sociais quem estava “do outro lado”.

 

    Nem mais, nem menos. A medida certa. E qual será ela? Cada um sabe, no seu íntimo, onde se encontra. Toda pessoa equilibrada conhece a fragilidade de uma situação, onde é que temos de ir com calma, ponderação, comedimento. Ninguém jamais lamentará o fato de ter sido cauteloso, buscando justamente não ultrapassar a linha desta abençoada harmonia.

 

    Discernimento e bom senso valem para tudo e para todos, em qualquer tempo e lugar. Para quem precisou chamar a polícia uma vez na vida. Para quem se senta à mesa e para os que apreciam um bom vinho. A sobriedade jamais será repreendida. Uma pessoa de bem conhece o valor da imagem de integridade.

 

    Nem mais, nem menos. A medida correta, precisa. O gesto pensado, refletido. Peço a Deus sabedoria e a lucidez necessária para encontrar o delicado meio-termo. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra...

 

No Céu não tem fogão 

 

Marisa Bueloni

   Conheço uma pessoa maravilhosa, que cozinha todos os dias, o almoço e também o jantar. Faz sobremesas, assa bolos divinos e, embora esteja há algumas décadas com a mão na massa, não reclama de nada, está sempre feliz, pondo na comida o tempero do amor, do carinho e da bondade. Sua família agradece.

Mas como tudo tem um limite nesta vida, cozinhar por anos a fio também cansa. E um dia, eu a ouvi dizer: “Olha, se no céu tiver fogão, não é o céu...”. Ah, minha querida, eu concordo! Sim, no céu não pode ter fogão e, tampouco, aspirador de pó, rodos, baldes, panos de chão, casa para limpar, ou não será o lugar do repouso eterno.

Muitos de nós não queremos fogão no céu. Até porque nossa cota de cozinhar já foi honrosamente cumprida. E então, desejaremos estender nossas mãos e apanhar os frutos do Paraíso. Caminhar por uma alameda de sonho e, de repente, avistar um jardim com mesas postas e finíssimos pratos a nossa espera.

Alguém rebateu que seremos puro espírito e não sentiremos fome. Que pena! Quando falei da túnica alvíssima e nupcial (é simbólica, eu sei), para participar do Banquete do Cordeiro, fui advertida de que espíritos não precisam de roupa. Mas eu fico com a visão de quem teve uma EQM (Experiência de Quase Morte) e viu seus amados do outro lado, andando com longas vestes brancas, em meio a flores que não existem em nosso mundo.

Para quem lavou muita roupa nesta vida, a visão de um tanque no céu será desoladora. Quem foi varredor de rua pulará de alegria, ao ver longas avenidas celestes cheias de folhas para varrer? Quem trabalhou na enxada de sol a sol, exultará se encontrar um campo extenso para cultivar? Bem, dependendo da alma, fará tudo com grande gosto e presteza. Afinal, está no céu!

Minha querida, se no céu houver fogão, será para preparar algo bem fácil e simples, na etérea cozinha dos anjos. Não será obrigação diária, lá não existe tempo. Quando sonho com as “moradas” que o Senhor preparou para os santos, imagino amplas casas que se mantêm sozinhas, com janelas baixas e cortinas fluidas. Luz, brisa, paz e descanso eternos! Para louvar o Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis.

O céu deve ser lugar de inimaginável beleza e grandes espaços para a alma habitar. O dia eterno, a plena visão. Felicidade que jamais alguém conheceu na terra.

Então, Senhor, vede que ela não deseja encontrar fogão no céu. Acho que eu também não. Bom será que avistemos redes, varandas sem fim, imensos sofás e almofadas, tapetes de florinhas do campo, banquetes mágicos, uma bebida revigorante para o lanche e um pãozinho feito por mãos angélicas.

Será que no céu tem café?

 

A nós descei, divina luz 

 

Marisa Bueloni

   Tenho por norma de vida trilhar na sinceridade e no reto caminho. Se deles me afastei em alguns períodos, hoje me penitencio e entendo que temos esta dicotomia a nos reger. Não somos totalmente bons e nem totalmente maus. Nem anjos e nem demônios, mas criaturas frágeis, equilibrando-se na luta entre o Bem e o Mal.

   Quem treinou seu espírito, abrindo-se à Luz Maior, identifica os sinais de uma batalha feroz. Estaremos mais seguros se pudermos manter acesa aquela tocha que clareia a escuridão. Que nunca se apague em nós o fogo da inteligência, da sabedoria e do amor.

   A nós descei, divina luz. Que esteja permanentemente aceso o brilho da fé, da esperança e da coragem. Ousar com prudência, não importa em que tempo ou idade, é sempre salutar e revigorante. Prezo a ousadia, quero sentir-me viva e com o coração receptivo às coisas novas, ao debate das ideias, ao conhecimento. O saber me atrai de forma quase dolorosa. Aprender algo novo me faz sofrer. Minha alma se rende ante a grandeza das galáxias e das campinas, mares e ares, universo em flor.

   Não se apague jamais esta luz bendita que nos guia dia e noite, sem cessar. Este facho precioso a nos indicar o rumo da nossa casa, do nosso trabalho, da nossa vida. Que atitude tomar, como agir, como proceder em determinadas situações, onde precisamos de razão, sentimento e espírito crítico.

   Permaneça viva em nós a luz da acuidade mental, do equilíbrio e da prontidão. Guardiões e sentinelas de um tempo sombrio. Feliz de quem se sente conectado com a divina luz plena de revelações. Exista em nós a alegria de viver cada momento com determinação e verdadeiro empenho.

   Perfeita alegria, meu caro frei Leão. Perfeita alegria. Se puderes perdoar. Felicidade do perdão concedido, pedido, praticado. Felicidade do dever cumprido, da casa arrumada ao coração cheio de paz, descansando na reta intenção. Convicção de ter dado o melhor de nós, em tudo e a todos, com a certeza de que ainda há muito a ser feito.

   Não, o sonho não acabou. Que não se apague a nossa memória, as palavras, as paixões, os sonhos. Sejam iluminados os nossos desejos, as mais belas e íntimas inspirações, serenas ou loucas, tanto faz. Cada um conhece a própria história e carrega em si a capacidade de ser feliz.

   Não se apague jamais em nós a vontade de abraçar, de dizer “eu amo você”, de estender nossas mãos para acolher o amigo distante. Chorar com os que choram e rir com os que riem.

   Luz para combater a baleia azul, luz para combater as trevas. Para nos levar e nos trazer sãos e salvos à porta da nossa casa. Deus nos dê a necessária lucidez e que a Sua Palavra seja lâmpada para os nossos pés.

 

 

As pedras do caminho 

 

Marisa Bueloni

   Todos já passamos por elas, as pedras difíceis da caminhada. Há uma frase assim: “Com as pedras que me atiram construirei um castelo”. Um bom aproveitamento dos projéteis. Vingançazinha benigna, de ótimo astral.

   Mas me refiro aos percalços, aos obstáculos, às pedras duras que temos de transpor, feito rochas que nos impedem a marcha rumo ao supremo destino, seja ele qual for. Todos nós temos metas, sonhos, projetos. Emagrecer, parar de fumar, conhecer Israel, trocar de carro, ter tempo pra ouvir música, comprar uma casa no bairro amado, pagar as dívidas. Ouvi na tevê que existem 40 milhões de brasileiros com os nomes no Serasa. Sintoma de um país em extrema crise?

   Enfim, que barreiras duras temos de ultrapassar, na trilha diária, na luta e na dor. Alguns possuem força suficiente para retirá-las com as próprias mãos e manter o passo. Outros precisam de ajuda, vinda do céu, vinda da terra.

   Ah, quantos bons Cireneus encontramos ao longo da estrada! Que grande graça é contar com o apoio de gente amiga, almas generosas. Como é bom repetir o gesto, fazer nossa parte, oferecer as mãos e o coração a quem passa por alguma necessidade. Não há sentimento mais belo do que ter feito o bem, ter prestado auxílio.

   É fatal: iremos encontrar nossas pedras necessárias ao longo da vida. Sábio é aquele que as contorna, encontra um atalho perfeito e retoma seu rumo. Mais sábio, dizem, é quem consegue se elevar acima da pedra e, da altura dela, vislumbrar tudo a sua volta. Até mesmo a resolução dos problemas e dificuldades.

   Quem já tentou subir em cima de sua pedra sabe como é. Para começar, precisa de equilíbrio. Uma queda pode ser dolorosa demais. Alguém me disse que conseguiu a proeza, mas nada avistou lá de cima. Desiludiu-se e desceu... Eu não. No dia em que eu puder subir em minha própria pedra, usarei um binóculo de grande alcance, ou um telescópio astronômico, para enxergar o infinito.

   Há de haver uma gentil poesia para a nossa livre passagem neste vasto mundo. Quando era estudante, meu trauma era a Matemática. Ah, pedra dura de carregar! Depois, Física e Química. Mas fui passando estas matérias, embora pouco delas passasse por mim.

   Somente mais tarde se compreende a beleza dos números e cálculos, o trabalho dos físicos e seus estudos sobre as leis cósmicas e a estética do universo. Com o tempo, vemos sentido e harmonia no Teorema de Pitágoras e seu enunciado místico.

    As pedras do caminho podem ser contornadas com o aprofundamento deste belo Teorema e sua ressonância em nossa vida. O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Lição para o resto da vida.

 

A vida não espera

 

Marisa Bueloni

   O que tenhamos de fazer, façamos hoje. Vivamos o “agora”, o momento presente, sem desperdiçar um minuto sequer. Precioso é o tempo que nos rege. A vida urge.

   É noite. Abro a porta da sala e vou até a rua. Madrugada, hora de ver anjos noturnos vigiando o casario. Nem sempre aparecem. Mas vigio e rezo. Algo vai acontecer. E acontece.

   É dia. Ao abrir todas as janelas, sinto a abençoada aragem entrando pela casa. Dia de trocar a roupa de cama. Tirar da máquina de lavar e deixar a alma pendurada no varal.

   Um poeta disse que antigamente havia galos, noites e quintais. Pois insisto que haja ainda. Não quero perder uma só destas relíquias sublimes. Ouvir um galo cantar me reporta à infância e às férias passadas no sítio dos tios. Lá morava a doçura do mundo, mas eu não sabia.

   Hoje há tanta agitação, tantas urgências. As pessoas mal se ouvem. Agora, pela moderna tecnologia, conversamos teclando, não ouvimos mais a voz do outro. Faz falta aquela fonética troca de afeto. Seja lá como for, junto com nossa ansiedade, o tempo se acomoda no banco de trás do nosso carro e diz: em frente!

   Vou sempre pela avenida do sonho, onde posso sonhar com mais largueza, apesar das placas de limite de velocidade entre 40 e 60 km. Nunca ultrapasso, sou tão obediente, acato as leis, mas já recebi duas multas. Bem eu que respeito e amo o trânsito. Andei a 45? Tenho vontade de não pagar, senhores.

   A vida não espera. Então, li num cartaz assim: “Ame agora. Demonstre agora. Fale agora. Abrace agora. Responda agora. A vida é um sopro”. Sim, por que entalar na garganta aquela declaração de amor? Talvez saiamos machucados mortalmente. Mesmo que o outro não corresponda. Paciência. Pelo menos não vamos morrer nos roendo por dentro.

   Por que não desenterrar do fundo do coração aquele segredo, partilhando-o com alguém de nossa confiança e que nos fará respirar melhor? Por que não pedir o perdão necessário? Eu sei reconhecer quando erro e sei pedir perdão. Também sei perdoar, graças a Deus.

   Não espere para se reconciliar com alguém da sua família, ou para falar junto ao caixão. Estenda a mão, demonstre amizade, respeito, consideração. Por mínimo que seja o gesto irá facilitar todo o resto.

   A vida não espera. Nós temos de correr atrás dela feito uns loucos, porque a Terra continuará girando em torno do Sol. Até quando? Não sei. Quanto mais leio, estudo e pesquiso, mais sou obrigada a admitir minha ignorância. E a vastidão do universo me deslumbra sempre que penetro nestes mistérios.

   Então, ó Deus, se posso partir amanhã, me perdoe a ousadia. Não devemos nos calar, mas declarar nosso sentimento, nosso amor. Amo você.

 

Bendito sonho

 

Marisa Bueloni

   Sonho com um paraíso. Beira-mar, uma praia deserta, casinha com varanda, rede, violão e estrelas profundas no céu. Viver de peixe, frutas, roupas leves, chinelo de dedo, brisa e fé. Ter o suficiente, o necessário, o básico dos básicos. Não falte um creme para o corpo, óleo para os cabelos, hidratante para a face, brinco, batom e saúde. Uma saia indiana longuinha para a missa de domingo.

        Ando sonhando com isso ultimamente, ouço o chamado de um mar distante que me quer perto dele. Mas, se irei até lá, não sei. Enquanto não vou, devaneio. Sou movida a sonho, já confessei aqui despudoradamente.

        Sonho com uma vida cada vez mais simples, mais descomplicada. Será? Pé no chão, junto da natureza. À noite, conciliando o sono, rezando antes de dormir, é fatal fantasiar um pouco.

        Estou lá. A praia é deserta, mas nem tanto. Há algumas casas próximas, vizinhos bons, gente educada que dá tchau de longe, alguém até joga um beijo. Há privacidade, respeito e gentileza.

        A areia da praia é branca e fina, um ouro que piso em silêncio e devoção. Os pés afundam naquela maciez benfazeja e fundeio meu coração no porto azul da felicidade.

        Estou lá, ando pelos lugares vadiando o quanto posso, haurindo cada momento, sob o céu que nos protege. Vaguear o pensamento, a aragem da maresia transpassando o corpo e a alma, em direção ao atlântico sentimento de amor.

        Passa um barco pesqueiro, que mais tarde virá trazer o peixe fresco, para fazer com tomate e cebola em rodelas, pimentão de três cores, cheiro-verde, azeitonas, alcaparras. Termina com batatas cobrindo tudo, cortadas grossas e temperadas com um pouco de sal rosa do Himalaia. Está pronta a peixada. Quem gostar pode pôr leite de coco.

        Estou lá. O mar escreve na areia um poema de palavras devoradoras, de metáforas abissais. Leio em êxtase os versos oceânicos da vida em prantos.

        Chora meu peito errante. Chora minha alma saudosa do que não vivi. Saudade de um passado que não tive, do que não fiz e nunca farei. Faltou tempo? Não. Faltou a ousadia que destaca alguém nesta vida, coragem, valentia, força, determinação. 

         Belo é o que se conquista com garra e luta, assim como quem trabalha arduamente para pôr na mesa o pão de cada dia. Êxito alcançado com horas abençoadas de estudo, de renúncia aos prazeres, buscando primeiro o dever, a obrigação.

        Mas estou lá, na beleza misteriosa das conchas e das pedras. Depois das ocupações do dia, repousar numa cama doce, e dormir ouvindo a música marinha cujo canto não cessa.

        Estou lá. Enquanto caminho pela praia, na manhã de todas as manhãs, peixes ovulam debaixo d´água nas profundezas que jamais desbravarei, porque sou térrea, terrena e solar.

        Bendito sonho. Como viver sem ele? Embala meu sono todas as noites. Peço ao meu Anjo da Guarda que vele comigo. Confessou-me que também sonha e me acompanhará na extrema aventura, se um dia a lucidez permitir. Meu Anjo promete ser meu par fiel nesta derradeira morada, âncora final.

        Estou lá. Moro no sonho. Durmo e acordo nele. Vivo com ele no coração. Quero morrer no sonho e depois seja o que Deus quiser.

 

A Todas as Mulheres

 

Marisa Bueloni

   Esta é uma semana especial: no dia 8 de março comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Não posso deixar passar em branco, quero abrir uma garrafa de festas e brindar. São tantas as mulheres dignas deste brinde, mas quero escrever a mulher envolta em poesia e inquietação. À maneira da vida.

    A mulher, em puro enlevo, diz: há quatro coisas a mais em mim do que há em ti. Dois seios, dois ovários, quatro calvários. E se atinges da vida a matriz, fico por nove meses ostentando a cicatriz. Os dois ovários são cúmplices do amor e acolhem o ser que me sugará os seios quando a luz for vista.

    São quatro coisas a mais e não são opcionais.  Porque sou fêmea e pacifista. Não trago os seios como quem carrega faixas de protesto, mas amamento em favor da vida. São quatro, mas uma só a ferida. Dos ovários que não tens ao simulacro de seios que em teu peito se desenha, o retrato biológico de uma senha: és homem. Mas, quatro calvários, dois seios e dois ovários, não se têm porque se quer. Na força bruta do fato, o ultimato: sou mulher.

    Não. Não são calvários os fatores da condição feminina, mas bens preciosos na evolução da vida. Porque é possível fazer um acerto de contas. Tu guardas as meias, eu arrumo a cama. Eu faço o suco de laranja, dobras teu pijama. Pões a mesa e eu faço o café. Eu lavo a louça, tu guardas tudo em seus lugares e, juntos, vivemos a fé.

    Mas as mulheres são seres que, quando não abatidas a tiros, deixam-se matar pelo domínio daqueles que as executam no silêncio perigoso. Na opressão, no jugo, no medo, sub-repticiamente, inocentemente, paulatinamente, socialmente.

    Tem Georgina, que é morena, está barriguda, espera um filho. Num pé-de-vento, a poeira se levanta do asfalto. Apóia-se na vassoura, vira o rosto, tosse o pó. “Qual o que, dona, a gente não sonha com vida de varredora; nunca vou virar doutora, mas um dia inda me arranjo”. E num momento de graça, Deus vem do céu e a abraça: sabe que ela espera um anjo.

    Tem Eufrosina, sem dentes, sorriso frouxo. Palavras como farofa, fofa e felicidade saem sopradas, sibilantes e atônitas de sua boca. Quase sempre, volta para casa frustrada, fanha, faminta. Saúde fraca, sem forças, vai tocando a vida banguela, debruçando seu sorriso na janela.

    No estoque de lembranças, dona Júlia era sábia com seu lápis de ponta vermelha, no primeiro ano da vida escolar. Seu batom, seu perfume, seu anel de professora. O tempo era tabuada pura, ó tempo feliz! O livro, uma doçura de letras que iam se escoando pelo pó do giz.

    Neste estoque de saudades, eu deveria ter, num refil, para quando acabasse e eu precisasse do teu perfil. Uma foto que fosse do teu sorriso, uma camisa xadrez, um cinto de couro, abotoadura de ouro, papel de seda dobrado, pétala de rosa amassada dentro de um livro. Estas coisas tolas e admiráveis que fazem o delírio de uma mulher numa tarde de chuva.

    São tantas as mulheres dignas do brinde. Para celebrar, bastam as palavras. E a vida, este poema respiratório, louva a mulher todos os dias. Assim, transcrevo de mim: passamos da Idade Média. Mulheres pensam.

 

De outros carnavais...

 

Marisa Bueloni

   Ah, quisera eu me revestir da glória dos carnavais passados e arrastar pelo salão do tempo uma fantasia antiga. Uma saia rodada de mágoa, esta que a todos nos machuca de alguma forma e jeito.

        Quisera eu cantar as marchinhas de outrora, dos primeiros bailes juvenis, regados a confete e serpentina. Saudades das letras engraçadas, maliciosas, gaiatas, românticas. Vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é Carnaval. Era uma marcha-rancho que a orquestra tocava para dar uma pausa, um descanso nas pernas dos foliões. Todos meneavam o corpo lentamente, esperando pelo frevo “Vassourinha”. Trepidante.

        Quisera eu, por alguns momentos, entrar numa máquina do tempo. Ala la ô ô ô ô ô ô ô. Mas que calô ô ô ô ô ô or! E cantando a gente atravessava o deserto do Saara. Já visitamos desertos em nossos sonhos tecidos de esperança. Se a canoa não virá, olê, olê, olá, eu chego lá. Rema, rema, rema, remador. Quero ver depressa o meu amor.

        Por onde anda o amor? Quem sabe, resolveu usar aquela máscara dourada e sedutora, para atacar incautos corações. Ou saiu atrás do trio elétrico. Só não vai quem já morreu.  Ainda não morri.  Permita Deus que eu não morra sem ter visto a beleza. Sem ter contemplado o mistério.          

        E a estrela-d´alva no céu desponta. Eu a vejo todas as noites, a primeira que aparece. Digo a um amigo querido que é um sinal para nós. Ela representa a Alva que precede a Aurora. Quem lê, entenda. Não combina ser escatológico no chamado tríduo momesco? Pois acabo de fundar o Bloco do Apocalipse. Pronto. Aceito sócios, foliões interessados em saber como tudo acabará e dou carteirinha de afiliação. Sem taxa de inscrição e sem mensalidade. Eu quero é botar meu bloco na rua.

        Então, as marchinhas. Com essa crise danada rondando a vida de todos nós, não custa ser criativo, corajoso e aproveitar o momento para pedir: ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí.

        Ó, jardineira, por que estás tão triste?  Não fazes ideia, meu anjo. Tristeza  não tem fim, felicidade sim. Foi a camélia que caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu. Mas a graça era cantar eu mato, eu mato, quem roubou minha cueca pra fazer pano de prato.

        Menina vai, com jeito vai, senão um dia, a casa cai. Ah, menina, isso vale para qualquer idade, em qualquer situação. Tem de ir com jeito, senhores, ou a casa cai. Desmorona fragorosamente. A casa caiu para muita gente, num lava-jato da vida... Da casa, passaram para o presídio. O país a tudo assiste boquiaberto. Mas não é que estão fazendo justiça?

        Quisera eu encontrar numa curva do caminho aquele Pierrô apaixonado, que vivia só cantando. Que eu faça par com ele, e nos sentemos juntos numa mesa de bar para celebrar o amor, a saudade, a vida. Esta coisa danada de bonita, que só enfeita a gente na saúde. Ó que fortes e belos temos de ser, se almejamos enfrentar a longevidade.

        Feliz mesmo é a Chiquita Bacana lá da Martinica. A gente se preocupa tanto e ela se veste com uma casca de banana nanica...

 

 

Até que a chama se apague

 

Marisa Bueloni

   Viver é um ato de heroísmo, vou repetir sempre. Num dia estamos bem, dispostos e animados, prontos para podar o jardim, arrumar armários e cozinhar. No outro, sem motivo algum, acordamos cansados, com dores no corpo, debilitados. Ontem, seríamos capazes de subir uma montanha; hoje, um abatimento mortal nos prostra o corpo e a alma.

          Não entendemos que distúrbio é esse a nos jogar nesta alternância, sem uma causa conhecida. Nos dias de alto-astral, temos de aproveitar e fazer o impensável, pois no dia seguinte poderemos não estar com o mesmo pique.

          E assim será até que a chama se apague.  Dia após dia, cumprindo a vida e suas solicitações, de forma amorosa, gentil e generosa. Ou de modo um tanto contrariado, sem vontade de fazer determinadas coisas, mas fazendo-as por obrigação, dever e necessidade.

          Lemos por aí que a maioria de nós apenas “existe”, e poucos “vivem”. Sim, existir é diferente de viver. Uma pedra existe e é inanimada. Uma pedra não possui alma, não reage, não sente. Os seres vivos são sensíveis ao ambiente em que vivem. Nós, seres humanos, carregamos a capacidade vital e biológica de sentir, de reagir, de amar, de construir uma vida cheia de interesses e descobertas.

          De todas as descobertas, a mais bela é o amor. Descobrir o amor, e que este amor é dirigido a alguém ou a alguma área de nosso interesse é algo sublime. Ter paixão pelo que se faz: eis a fórmula da felicidade nesta terra. Amar e ser amado: a mais maravilhosa das dádivas concedidas a uma pessoa neste mundo.

          E assim será até que a chama se apague. Uma multidão procurando pelo amor, sem o encontrar; e alguns privilegiados dando de cara com ele, sem a sofreguidão da procura. A vida tem suas sinuosidades, seus mistérios e surpresas. Mas tem também as agruras, os dissabores e, sobretudo, os desencontros.

          Triste é desencontrar-se nesta vida. Principalmente depois que se encontrou. Triste é perder a mão da pessoa amada no meio do baile, quando a luz se apagou e a vista escureceu. Nada pode ser mais sombrio do que a tristeza de quem perdeu o amor.

          Vinícius de Moraes disse que “o câncer é a tristeza das células”. Sim, quando nossas células se entristecem demais, é perigoso. Ninguém deveria sofrer desta tristeza cruel, a ponto de adoecer. Um luto pode ser fatal. Uma perda importante pode matar uma pessoa saudável, de tanto desgosto e amargura.

          E até que a chama se apague será assim. Perdas e ganhos. Vitórias e fracassos. Entusiasmo e incerteza. Saúde e doença. Dias de muita energia e vontade, mesclados com momentos de prostração e desesperança.

          Minha mãe repetia sem cessar o tal “não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe”. Citei corretamente? Note que os substantivos “bem” e “mal” podem ser invertidos e a frase continua com seu insofismável sentido.

          Até que a chama se apague viveremos entre a cruz e a espada, entre a rosa e o espinho. Deus nos dê o devido discernimento, a preciosa lucidez para escolher e decidir. Para a chama se apagar com dignidade, doçura e poesia.

 

O cheiro da vida

 

Marisa Bueloni

   Desde sempre, me ligo em cheiros. Tocam-me a alma profundamente. Um perfume marcante me faz seguir a pessoa, abordá-la e perguntar que marca é aquela, onde comprou. Uma vez, na igreja, sentou-se perto de mim uma moça de cabelos lavados. Ela tinha todo o jeito de quem acabara de tomar banho. Havia nela dois cheiros que se misturavam harmoniosamente: o do sabonete e o do perfume.

               Louvando aos céus, assisti à missa sentindo aquele aroma suave e penetrante.  Era algo sublime. Terminado o santo ofício, ela passou por mim, para deixar o folheto na caixa e eu não resisti: moça, que perfume você está usando? Ela disse o nome, mas eu esqueci. Não tinha caneta na hora pra marcar e acabei esquecendo.

               Cheiros me comovem. Aromas entram na minha alma de forma arrebatadora, como o perfume de rosas, por exemplo.  Amo o cheiro de rosas! Os diferentes odores chegam até mim e cada um, na sua essência e particularidade, causa-me um tipo de reação.  Identifico logo se o gás está vazando, se tem comida queimando no fogão, se há algo no ar que incomoda ou dá prazer.

                A par desta sensibilidade em relação aos aromas, sou alérgica a certos perfumes que me dão dor de cabeça. Que tristeza ir ao cinema, à missa, a algum evento desse tipo, quando se acomoda próximo de nós alguém exalando algo extremamente enjoativo ou adocicado. Se há como mudar de lugar, mudemos.

               O cheiro do nosso carro, depois de mandar lavar. Ou higienizar o ar condicionado. O cheiro do nosso cabelo, ao sair do banho, perfumado de creme. O cheiro da nossa pele, depois de passar o hidratante de ameixa. O cheiro do mar. O cheiro do café. O cheiro do incenso.

               Ah, quando vai chegando a hora do almoço, é um deleite a comida sendo feita em casas próximas da minha.  O cheiro de alho e cebola refogados, certamente para o abençoado arroz e feijão de cada dia, invade os ares amorosamente. Carnes assadas também exalam um aroma maravilhoso no ar. Mas nada se compara aos assados natalinos. O cheiro deles me faz levitar.

               Cheiro da casa limpa, depois da faxina. Não é extasiante? Aquele cheirinho bom do desinfetante no banheiro, o perfume do que se usou para passar no chão, para limpar a cozinha. E o cheiro da roupa recolhida do varal, que secou na manhã inundada de sol? Os lençóis dobrados e guardados com carinho. E depois, quando estendemos na nossa cama, o perfume escapando pelas fronhas? Ah, quanta gratidão tenho por tudo isso.

               O cheiro da pessoa amada!... Que lembranças temos dela? Sim, o cheiro do corpo, cheiro da roupa, cheiro do perfume usado a vida toda. Uma mistura inesquecível, amálgama impregnado de infinita saudade.

               Mas há um cheiro inconfundível: o cheiro da vida. Aquele aroma sentido em cada momento na casa onde moramos. Destaco alguns: o das nossas toalhas de mesa, do armário onde guardamos o pão, as bolachas e as guloseimas. O cheiro do sabonete preferido e o cheiro que emana das gavetas arrumadas.

               Peço a Deus que eu seja uma velhinha bem cuidada e cheirosa. Que eu tenha sempre um perfume de rosas exalando de minhas mãos...

 

Enquanto chove...

 

Marisa Bueloni

   Quando esta crônica for publicada, o céu pode estar azul celeste, claro e límpido. Mas escrevo ouvindo o barulho da chuva, os trovões sugerindo o ruidoso caos em toda parte. Estas águas de janeiro parecem limpar e varrer a sujeira do mundo...

 

    Chover é verbo intransitivo, de poucos modos de conjugação, está visto. Não há como dizer “eu chovo, tu choves, ele chove”. Mas há frases lindas como “chovia a cântaros naquela noite”.

 

    A chuva é profundamente poética para quem a aprecia e entende a natureza das coisas. Quando morava no campo, amava o cheiro de terra molhada, a grama úmida, as plantas pingando em suas folhas e palmas, o céu estrelado de novo, os grilos e rãs agradecendo.

 

    Uma vez, escrevi uma crônica sobre como aproveitar um dia de chuva dentro de casa. Da aflição que bate no peito, se temos uma tarde só para nós e começa a chover. Fazer um chá? Oh, sim, ou passar um café fresco. Pão com manteiga, o lanche dos deuses.

 

    Pegar aquele livro maravilhoso, deitar no sofá e continuar a leitura? Também é algo precioso de se fazer. Ver um bom filme? Quem sabe. Rezar? Sim, rezar o terço meditado, conta por conta, e terminar com a Salve-Rainha.

 

     Enquanto chove, meu coração dispara. Tento aquietar meu espírito, porque é preciso estar serena numa tarde de chuva, ouvir os seus rumores e sonhar. Belo é o som sobre o telhado, sobre o casario todo, meu pequeno jardim recebendo esta bênção divina.

 

    Vou pegar o violão e compor nesta tarde de chuva. Talvez da inspiração brote uma digna melodia, uma canção de qualidade com versos de alguma poesia. A chuva será as pautas sonoras da minha música interior.

 

    Já passei o café fresco. O pão integral com manteiga e uma fruta compõem a bela refeição da tarde chuvosa. Mas é preciso mais. O coração quer mais, e vou desenhar a planta de uma casa que estou projetando aos poucos, imaginando construí-la num lugarzinho de sonho.

 

    Tomo o café, guardo o projeto e ligo o computador. Há tanta coisa para fazer ali numa tarde de chuva. Escrever, pesquisar assuntos, responder e-mails, encontrar os amigos queridos, todo mundo conectado porque a maioria está em casa, curtindo o mau tempo.

 

    O que é bom tempo? Bom tempo é quando estamos em paz, o espírito leve, a consciência limpa. Quando já pedimos perdão a quem foi preciso pedir e carregamos a esperança nos braços. Bom tempo é quando estamos com saúde e a vida segue no seu trilho de sempre. Bendita rotina!

 

    Nada melhor que uma tarde de chuva para olhar velhas fotos. (Ah, como eu era magrinha quando jovem. Mas até que hoje estou bem). A família na praia, meu lindo, as filhas pequenas, baldinhos, pás, peneiras para a areia, e lá no fundo aquela beleza atlântica, eterno chamado que ouço sem cessar.

 

    Dizem que praia e chuva não combinam. Pode ser. Quem nunca se abrigou dos pingos num quiosque à beira-mar, comendo peixe frito? É maravilhoso. Tem gente que não sai da água por nada. Pode chover, a pessoa está lá pulando as ondas, feliz da vida.

 

    Ao som da chuva, rezo e aproveito para fazer meus pedidos a Deus. Depois, agradeço por todas as graças recebidas. Enquanto chove...

 

Beira-mar

 

Marisa Bueloni

   Tenho mais a vos contar das exaltações marinhas. Toda vez é assim: os céus desabam sobre o mar o vaidoso azul de suas transparências. Espelho vítreo, incêndio de águas e puro fascínio inspiram-me o canto da poesia marinha.

 

    Poema fértil de naturezas, de embates sedutores e místicas evoluções. Peço licença para entrar em tua casa atlântica.  Timidamente, piso em tuas areias e ouso imitar tua música. Avanço-te, onda por onda, cautelosa. Gosto de ti, mar, de teus símbolos, de tudo que te nomeia, feito âncora, vela, cavalo marinho, peixe, o que te representa é o de menos.

 

 

    Mar, ó mar, sofro a interpretação de tuas vozes, teu chamado lento, intermitente. Emoção de pertencer-te por um verão e frequentar teu profundo mistério.

 

    O que me contas é água, sal, sol, vento oceânico, vela branca. Palavras mínimas descrever-te-iam. E o sofrimento dos que nunca te viram? A eles cabe o desenho de tua paisagem movediça, iluminada e funda.

 

    Tua lenda é o feitiço. Tua lua é esta poça prateada, entrevista em teu leito ondulante. Os que morreram em luta contigo, permaneçam inteiros na memória da água. Ah, o cansaço dos salvos! Braços para o mar de areia, pés para a vida dos coqueirais. Que toda valentia tome jeito e redobre cuidados aos teus respingos. Ao teu rugido selvagem. O mar é do signo de Leão.

 

    Do continente, tuas ilhas resplandecem, insinuando tesouros. Vem de teus arquipélagos a parte fragmentada que te representa. Não há barra sem perdida praia brava. Em ressaca, esmerilhas em mil pontas minhas pedras interiores.

 

    Quem te avista, graciosa península, ao aportar, helênico, singrando mares? Antigas naus no remo e na força. Solícito, ofereces porto às chegadas. Recolhes-te tímido e altivo, precavido, recusando convivas.

 

    Que sei eu dos teus lamentos em fúria? Sei do navio que te mancha de óleo, dos petroleiros cortando e poluindo tuas entranhas puríssimas. Choras os peixes que morrem em teu ventre, afogados em venenos e plásticos. Quantos se voltarão para tuas origens, apressados em salvar-te? Pois uma paz oceânica haverá de agradecer toda carícia, toda generosidade, todo afeto.

 

    Não ficará pedra sobre pedra: a Terra, gentil, teme e espera pela inundação. Um planalto digno apaziguará a loucura dos elementos e a terra seca anunciará o novo mundo. Uma arca solitária será vista, equilibrando-se sobre a rocha dura e uma pomba sobrevoará tua face oculta. Depois, que lugar caberá a ti no planeta?

 

    Enquanto não te decides, acredito em correntezas e vigio. Tua profecia é minha crença. Temor às fossas abissais, para onde não vou nem em sonho. Guardo em segredo legítimo o que não conheço de ti.

 

    Chego e parto cheia de presságios. Antes mesmo de lançar-te um último suspiro, mergulho até onde vai o amor que te dedico. E ali, fundeio meu desejo de retornar aos teus braços.

 

    Que triste deixar-te, mar! Voltar mil vezes o olhar, o tráfego ocultando tua explosão. Roubar uma parte de ti nas retinas e impregná-las de saudades, estas que fazem de mim eterna aprendiz do teu convívio.

 

Retrato falado

 

Marisa Bueloni

   Havia nela um precioso universo de coisas e  delicadezas. Cabia em seu semblante uma coleção completa de xícaras caipiras em relevo de rosas e casinhas do campo. De seus braços pendiam caminhos de mesa rendados e blusas bordadas com a beleza do sol. Cada ponto, uma cruzinha detalhada em ouro.

    Havia nela algo que conspirava, transpirava suavemente, um arfar de anseios em favor de coisas como ética, justiça, esperança. Com a fronte abaixada, inspirava um quê de anunciação. O anjo a espiar-lhe de longe, invejando sua humanidade.

    Quem a olhasse de repente, não a veria. Diáfana, exaurida de tanto suspirar. O coração arrancado do peito, a alma dilacerada de sonho. Cansaço de quem tenta o acerto possível. Se falasse, desejaria ser a voz do tempo no ouvido da Terra. Se calasse, almejava competir com o silêncio mais longo e doloroso de todos. Talvez aquele diante da morte.

    Todo o Natal estava dentro dela, e de suas palavras brotou um doce presépio, esperando o nascimento do Menino. Um pouco antes de o Menino nascer, uma pedra pesadíssima desabou sobre ela. Não a esmagou por Deus.

    Contornou a pedra com graça, esperou pelo sino da manhã, e sorriu para a montanha que pairava ameaçadora. De lá, deslizaria uma segunda pedra, um pouco antes da noite de Ano Novo. Recebeu o impacto com lágrimas e perguntou: por quê?

    Não há resposta para quem no coração cultiva algumas emoções como o primeiro ano escolar, a marcha das formigas até o pedaço de bolo, o compartilhamento de um segredo, a compreensão do Teorema de Pitágoras, a chuva, as estrelas, café, o pão com manteiga e todo o resto. E a dor.

    A dor, velha amiga. Seu retrato mais precioso. Nas lembranças, a superação da dor. Cenas se misturando no corredor escuro da memória. Era preciso um esforço sobre-humano para entender o que estava acontecendo. Sim. Não.

    Numa noite de chuva, abraçada ao travesseiro perfumado, era a princesa de um conto de fadas sem o previsível final: ninguém jamais saberia se foram felizes para sempre. Envelhecer era parte de uma aventura maravilhosa, o corpo pedindo paciência. Para que pressa, afinal?

    Sonhou que haveria um passeio de mãos dadas à beira-mar. Uma carta de amor. Um olhar. Uma rosa jogada na soleira da porta. Um brinde a dois. Todo um outono em cânticos. Um piano. Uma música para dançar. A visão do céu.

    Acordou. Ó que retrato digno o espelho lhe mostrava todas as manhãs. Imagem de força, integridade, honra. A idade revelada, claro, não havia nada a esconder. Havia nela uma bondade moral, nenhuma preguiça e a graciosa luta para sobreviver bem.

    Uma vastidão de doçura e carinho a cobria dos pés à cabeça. Emanava dela a maresia do verão.  Tanto mar, tanto mar! E se afogou em lágrimas, as pedras se diluindo no champanhe sem álcool.

    Havia nela o amor. Meio fora de moda? Abrira a porta para ele, deixara entrar o canto do rouxinol, da cotovia, do sabiá. Inda há de ouvir cantar.

    Sim, havia algo nela. Mas ele não viu.

 

 

Sabedoria de Ano Novo

 

Marisa Bueloni

   Quem me dera elaborar um manual para 2017, um receituário bem detalhado, com itens preciosos e importantes, na tentativa de propor algo semelhante a uma sabedoria invulgar, regras de bem viver, de bem amar e sonhar. Quem me dera!

    Vivemos hoje num ambiente altamente tecnológico, virtual e digital, correndo o risco de nos distanciar cada vez mais da realidade, do mundo natural e real, para cair perigosamente numa rede de complexidades que nem sempre corresponde aos anseios do nosso coração.

    Se isso é assustador, é também atraente e fascinante. Com espírito crítico e discernimento, faça-se bom uso de tudo o que dispomos hoje em dia. São novidades que surgem de instante a instante, abrindo inúmeras portas para a comunicação, a informação e o conhecimento.

    Vivemos a era do conhecimento e quem o detém está em posição privilegiada. Trata-se de matéria inquestionável. Pelo conhecimento é possível mudar nossa realidade. Utilizando as ferramentas corretas, tanto intelectuais quanto técnicas, alguém habilidoso descobre como superar as dificuldades de uma região árida. Esta pessoa saberá como produzir água de forma sustentável.

    Segundo o físico Marcelo Gleiser, somos “a consciência cósmica, somos como o Universo reflete sobre si mesmo”. E pela profunda conseqüência desta revelação, acredito que podemos encontrar nela o principal fundamento da vida. Cada um trate de descobri-lo, antes que seja tarde.

    Nunca é tarde para começar um novo tempo. Depois do ano velho marcado por desastres de toda ordem, corrupção a perder de vista, atropelos políticos e prisões impensáveis, tragédias que nos fizeram chorar um luto desesperador, queremos pedir a Deus um pouco de trégua.

    Venho pedindo isso há muito tempo. E não apenas na passagem de um ano para outro, momento que muitos acreditam ser particularmente mágico ou místico, onde nossos desejos podem se realizar se pedidos com força e fé. Sim, talvez, se soubermos simplesmente rezar baixinho, para falar com Deus.

    Deus sabe que um ano de graças depende mais de nós do que d´Ele. Nós precisamos de Deus todos os dias e cabe ao homem transformar este mundo num lugar habitável, onde além de leite e mel, jorrem as fontes da justiça, do amor e da paz. A construção desta cidadela é tarefa humana.

    Se existe uma sabedoria a ser escrita com humildade e entendimento, acredito ser ainda aquela que diz respeito à simplicidade. Viver de modo a tirar da natureza o necessário, sem exauri-la. Respeitar toda forma de vida e agir com gratidão. Ter atitudes éticas, pensando no próximo, em como melhorar a qualidade do nosso meio, da nossa comunidade.

    Frei Saul, numa célebre homilia em missa de Ano Novo, anunciava: “Gente, não muda nada, apenas a data na folhinha”. Sim, não se iluda. A vida continua. Enquanto existir Aleppo e outras insanidades, é impossível pensar num feliz ano novo.

    Nas mensagens proféticas, Nossa Senhora diz que a oração tem o poder de transformar situações. Nesta hora especial, de renovação e de sonhos, a grande sabedoria é orar. Seja a fé a nossa lúcida salvação.

 

Uma noite destas…

 

Marisa Bueloni

   Uma noite destas será Natal. Para mim, para você, para os que sonham. Para os construtores da aurora, para os autores da luz.    

    Uma noite destas pode ser a hora, pode ser agora, me dê a sua mão. Numa noite destas, haverá festas sem fim. Faço parte da cena, a mais bela que já vi. Eu estive nela e nunca mais saí.

    A verdade é que, numa noite destas, cravarei no meu peito mais um poema de saudade, aquela dos anos sessenta, a juventude saindo pelos poros, a vida e seu futuro.

     Então, envolta em névoas, penetro mansamente no sonho do passado, a calça boca de sino e o colar de couro. Ainda hoje, uso e abuso das saias indianas, pulseiras, brincos, uma releitura riponga que me renova o corpo e a alma.

    A alma precisa de tempo, tempo de dizer que você me inspira a lua mais bela, a noite sem medos e a canção infinita. O mundo trepidava. Do you wanna dance? E num baile cuba-libre, éramos livres para praticar a esperança.

    Você me tomou em seus braços e éramos feitos da mesma matéria dos sonhos. Matéria frágil. Este lado virado para cima. Cuidado! Soltei a sua mão e me perdi pelo salão. Eu queria plantar uma árvore, escrever um livro, ter um filho. A árvore não vingou, meu livro encalhou por aí. Só as filhas brilham. Envelheci na cidade. Feliz aniversário para mim que já não tenho idade.

    Dá para ver que se trata de uma poesia recorrente, mística e arrebatadora? É que meu coração pequenino, num átimo de temor, ouve o badalo de um sino. Um sino ou um tambor? Seria o rufar do destino, a luta, o desatino, o som confuso da dor? Tambor ou sino, sino ou tambor?   Que som é esse, Senhor? Badala o sino grandioso, troa o tambor furioso, são anjos justiceiros, suponho, em terror. Trazem as taças divinas, abrem os livros lacrados, vestem-se de dourados, que terrível, que esplendor!    

Que dias, que dias! Ao som destas melodias, batidas no bronze e no surdo das algaravias. Desperta minha alma curiosa, desperta uma rosa. Dorme, flor jardineira, que a Hora não é chegada. Não é dia ainda, é madrugada. Dorme, rosa do tempo, e deixa que rufem tambores, que sonhem os sonhadores, que badalem os sinos, eloquentes. Cuida, rosa querida, que despertem as gentes.

    Meu coração pequenino, às vezes, ouve um sino que badala nas alturas, que se ouve nas lonjuras, pentagrama de ternuras. Ah, que sino, Senhor! Meu coração pequenino, às vezes, ouve um tambor, que soa como um estrondo, que bate um bumbo redondo e para ele respondo: Eis, vem chegado o Amor!

    Numa noite destas, será Natal. Buscarei seu olhar cúmplice, a beleza do que existe agora, do que nasce a cada instante. Nossas mãos se tocarão à meia-noite, na distância que também fala e diz as afetuosas e benditas palavras. Já não são frases de praxe, mas de um significado novo.

    Eu sonho o Natal, canto o Natal de Jesus, quero anunciar do alto dos telhados a boa nova do Salvador. Faço isso todos os anos, querido leitor. E para você desejo um santo e feliz Natal.

 

Bilhetes de amor

 

Marisa Bueloni

   Hoje, eu quero a rosa mais linda que houver / e a primeira estrela que vier/ para enfeitar a noite do meu bem.

   Ah, meu bem! Como enfeitar a tua noite, se já tens nos olhos as estrelas necessárias? Elas me apontam um horizonte possível, entremeado de sonhos. Penso em chegar lá, talvez, habitar o chão feito de areia e poesia, para morar definitivamente na terra da felicidade.

   Queixo-me às rosas / mas que bobagem, as rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti.

   De ti, vem um perfume bom do abraço. Do café descafeinado, a mesa posta e perfumada de gentilezas. Vejo as rosas se abrindo em cada canto da tua alma inquieta. Inquieto-me. Por que rosas nos dizem tanto?

   Você é isso, estrela matutina / luz que descortina um mundo encantador / Você é isso: é parto de ternura/ lágrima que é pura / paz do meu amor.

   Que amor nos dá paz? Que tipo de paz é reservado aos que amam, apaixonam-se, e sofrem? Depois que um poeta escreveu versos deste calibre, tudo será redundante na tentativa de cantar a mesma beleza. Apago meu poema noturno, considero o estro duvidoso e permito que a noite anuncie o parto da ternura.

   Ah, meu amor, não vás embora / vê a vida como chora / vê que triste esta canção.

   Sim, meu amor, há algumas tristezas profundas neste chão que trilhamos espantados. Não pisamos nos astros, distraídos: estes pertencem à outra canção. Mas o universo nos acolhe em átomos e quando nos perdemos, nossas mãos tateiam o rastro do que chamamos mundo. Vasto mundo.

   Eu sem você não tenho por que / porque sem você não sei nem chorar / Sou chama sem luz, jardim sem luar/ Luar sem amor, amor sem se dar.

   Às vezes, a vida se completa. Basta uma só pessoa. Aquela. E quando estamos em seus braços, o mundo pode acabar lá fora, nada mais importa.  A plenitude é perfeita e límpida. O coração não cabe dentro do peito, diante de um olhar sereno que nos contempla em silêncio. A respiração fica suspensa entre o céu e a terra.

   Vem que eu te quero fraco / vem que eu te quero tolo/ vem que eu te quero todo meu.

   Mas se não puder vir, mande uma mensagem, passe um whats, estarei conectada, assentindo que a tecnologia jamais irá suplantar as palavras ditas ao telefone de Graham Bell. Leitor! Imagine o efeito, se pronunciadas ao vivo! Você teria coragem?

   Ah, se eu te pudesse fazer entender / sem seu amor eu não posso viver / E sem nós dois o que resta sou eu/ Eu assim, tão só/ Mas eu preciso aprender a ser só.

   Bendita solidão solidária nas horas mais fundas da agonia existencial, nos momentos em que não há rosas, nem anjos ou passarinhos para escoltar nossa passagem por aí. Contudo, há batalhas belas para lutar, sonhos para viver e saudades para chorar.

   É preciso amor pra poder pulsar / é preciso paz pra poder sorrir/ é preciso a chuva para florir.

   Diria o grande, belo e saudoso Ariano Suassuna: Deus sabe o que faz!

 

Neste Natal

 

Marisa Bueloni

   Neste Natal, procurei os olhos do meu amor e eles não estavam lá... Não estava em parte alguma o olhar capaz de transmitir tanta poesia. Não havia nada em seu lugar, a não ser uma profunda névoa, na tarde da despedida. Os olhos se fecharam, as pálpebras se uniram, coladas pelo peso da finitude humana.

     Neste Natal procurei um carinho à beira da cama, num gesto de quem dá a última colherada de comida – e ele estava lá -, escondido por entre as dobras de um tempo que pareceu uma eternidade, mas passou voando. O Natal chegou e ninguém viu, nem os olhos do meu amor que se fecharam para sempre.

     Neste Natal, procurei uma flor, uma vermelha, como o meu amado gostava. Uma flor que simbolizasse a beleza da vida, o fogo da paixão, a força das lutas, o sangue dos mártires, o coração pulsando o vigor da saúde, o tapete vermelho por onde passam as celebridades. A legitimidade das intenções, a coragem, a ousadia, a fé - a certeza do que se está fazendo.

     Neste Natal, procurei pelo prodígio, capaz de reverter a dor do nome agora gravado numa placa reluzente – memória de quem existiu. Chamei o meu Anjo, pedi ajuda, e tive de aceitar a representação da ausência, a insondável certeza de um adeus, passagem secreta nas mansões do pensamento.

     Neste Natal, procurei um presente para o meu amado, mas ele já não está entre nós e não pode recebê-lo. Contudo, o presente está dentro do meu coração, no juramento de amor eterno, até que a morte nos separe, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Um amor que se eterniza a cada dia que passa, guardado numa caixa embrulhada com papel de estrelas e flores, que termina num laço dourado - o sonho de viver e de amar.

     Neste Natal, procurei algo que eu não sabia o que era e era de uma beleza imensa. Fragmentos de impressões voláteis, visões do nunca mais, de olhar e não ver, de ver e não enxergar. Onde está? Por onde andou? Vai voltar? Ah, esta permanência com cheiro de perfume masculino, a indefinição devoradora. De onde vem o sentimento etéreo de que ainda há algo a ser dito, a ser feito, a ser cumprido? Falta a viagem a uma ilha encantada, a um lugar inesquecível, onde a vida seja eterna.

     Neste Natal, procuro por respostas e minhas perguntas ficam suspensas entre o céu e a terra. Espanto, delírio, fraqueza. Mas, o espírito está firme e forte, porque meu amado era assim. Era uma fortaleza onde a gente podia se abrigar.

Neste Natal, procuro por objetos no criado-mudo que ainda é dele. Pelas gavetas, bem guardados, seus óculos de grau. O ray-ban dentro do estojo original. A carteira de couro preto, com o CIC e o RG, algumas fotos 3x4, onde seus olhos me perguntam: tudo bem? Sim, eu vou bem, estou aqui acariciando seus pertences, os papéis com sua letra, sua coleção de moedas antigas, seu relógio, suas coisas, que preservo para beijá-las sempre, meu anjo.

     Encontro nossa foto, juntos, eu recostada em seu ombro, era a festa do Natal de 2007.  Você começava a emagrecer, a roupa estava ficando larga em seu corpo e eu te abraçava para reter em meus braços a sua doçura.

     Neste Natal, celebro a sua vida. Dou graças por nossos momentos. Pelas missas de Natal a que assistimos juntos.  Revejo nossas fotos. Numa delas, especialmente carismática, você está sorrindo, antevendo a delícia do rocambole recheado de chocolate. Brindo a nós dois, na taça que transborda de saudade. Ainda estou aqui para celebrar. Você no retrato; eu na esperança.

     Neste Natal, o que sinto não tem nome. E assim será a cada dezembro - o infausto mês da sua partida. Tento acompanhar seu trajeto para a glória, vasculhando o vazio que habita os cantos da nossa casa. E minha alma bate de frente com a sua. É você que procuro neste Natal.

 

A beleza do Advento

 

Marisa Bueloni

   Estamos vivendo aquele tempo inconfundível. Digo sempre que o Advento natalino traz para nossa vida um hálito novo. Basta começar dezembro e vemos anjos pairando no ar, uma emoção encantadora e pura se acende em nosso peito.

   Esta época bendita me reporta à infância, à escola primária, às férias compridas e às mangas. Com uma mangueira no fundo do quintal, a sétima maravilha era esperar a data magnífica, sentada no galho mais alto, de onde a menina governava o mundo.

   Naquele tempo, todas as verdades eram absolutas. Havia poucas dúvidas no coração. A casa era sagrada, o pai e a mãe onipresentes, regendo a ordem para tudo e para todos. Meus irmãos e eu convivíamos em grande harmonia e era um sonho ficar acordada até tarde para ir à Missa do Galo na Igreja dos Frades.

   Durante aquele santo ofício, que coisas se passavam em minha alma? Quase não me lembro. Mas hoje tenho certeza de que era um Natal vivido com fervor. Um Natal feito de novenas, cantos, celebrações e abraços. E havia a chegada de parentes, os tios e primos de São Paulo, a madrinha adorada, a casa sempre cheia para a completa confraternização.

   O Advento é uma preparação sem igual para a nossa fé. Trata-se de um tempo de graças para os crentes. Talvez os agnósticos e os não crentes, enfim, também se deixem tocar por este espírito de bondade e de paz que se espalha em toda parte.

   Para os cristãos, é a data máxima, o nascimento de Jesus Cristo, o Filho de Deus feito Homem. Ele está ali, em cada presépio e sua concepção do que tenha sido aquela noite santa e feliz. Jesus, Maria e José,  a caminha de palhas, carneirinhos, ovelhas, pastores, uma noite estrelada, a estrela de Belém.

   A cena humilde e majestosa se repete na montagem do que foi o nascimento do Menino. Quão aflito estaria o jovem casal, ao perceber que era chegada a hora da  mulher dar à luz? Como as coisas aconteceram?

   A grandeza e o mistério daquela noite estão reproduzidos no presépio encantador, conforme a imaginação de cada um, buscando representar o mais belo cenário concebido pelo amor.

   Para mim, Advento é amor. Contudo, um amor sofrido, marcado por lembranças, as da infância e as da juventude, quando o Natal não pesava tanto no coração como agora. Já não sei mais que tempos vivi, algumas cenas se apagaram das retinas e as semanas que antecedem o Natal me inspiram profunda tristeza, um abatimento confuso e indefinido.

   São sentimentos contraditórios, pois também sentimos alegria, vontade de contatar quem está longe, desejar felicidades, escrever uma crônica onde se derrama a alma e se fica de joelhos diante da vida.

   E assim, é chegado o Advento deste ano da graça de 2016. Lembro dos presságios para o ano 2000, quando se profetizava que o mundo iria acabar. Não acabou e aqui estamos na festiva espera do Rei.

   Que as santas velas do Advento acendam em nós um pouco mais de esperança. Tivemos a bravura de derrubar a presidente e contamos com um novo governo. Mas ainda esperamos as mudanças necessárias.

   É fatal a pergunta: mudou o Natal ou mudei eu?

 

E se a noite chegar...

 

Marisa Bueloni

   E se a noite chegar sem nenhum sonho em nosso coração, nenhum alento em nosso peito, não demos o dia como perdido. Ó não. Busquemos o sonho onde ele costuma vicejar. Tentemos encontrar alento onde brotam esperanças. Onde?

   Também quero descobrir a morada dos sonhos. Lá vivem as lutas apaixonadas, a grandeza das atitudes, as rosas vermelhas, as fábulas e as ilusões. Alguém me escreve afirmando que “a vida não passa de uma ilusão.” Pode ser uma inferência precipitada, fruto de alguma decepção. Solidária, respondo que, a despeito de tudo, a vida guarda coisas preciosas.

   Não sei o que é mais onírico: a esperança ou a ilusão. Ambas são denunciadoras de um estado de felicidade incompreensível para quem não as vive com a devida intensidade. Embora “felicidade” seja algo muito particular, com diferentes definições que variam de pessoa para pessoa, há um conceito geral do que seja ser feliz.

   Mesmo nesta geral constituição do estado de felicidade, vemos que se pode ser feliz com pouco. Li uma frase recentemente, a respeito de quem tem tudo, mas sente falta de algo maior, de paz interior, de uma riqueza imaterial. Do outro lado da vida, há os que têm tão pouco, tão pouco e, no entanto, nada lhes falta, nem mesmo o sorriso no rosto, a paz e a alegria da alma.

   Mas se a noite chegar sem que estejamos em paz, sentindo-nos devedores de algo a alguém, seja uma palavra, um gesto, uma visita, guardemos a falha em nosso coração. A própria noite nos revelará como agir, o que fazer e o que pensar.

   Pensar com o coração, eis o segredo de tudo. Rezar com o coração, eis a oração mais bela. Agir com o coração, eis o ato mais humano e mais legítimo, que dificilmente causará algum tipo de engano. Ninguém se sentirá mal, ninguém achará que magoou alguém, se agiu com a retidão da alma e do afeto.

   Penso que ilusões e esperanças sempre povoarão nosso ilustre sonho. Por mais utópico se configure, por mais distante seja a praia deserta onde gostaríamos de aportar. Para ali habitar com o movimento das ondas e das marés, a paz das conchas, a ovulação dos peixes, o vento maravilhoso para secar o cabelo ao sol. A terra da felicidade.

   Mas para tanto é preciso saúde. Saúde do corpo, uma coluna forte e pés para caminhar pelo mundo. Quem tem um sonho tem toda a vida pela frente. Quem tem um sonho viverá eternamente. Se a noite chegar sem nenhuma doçura, lutemos para encontrá-la, ainda que debaixo do nosso amado e santo travesseiro.

   Não há hora melhor para sonhar e mexer com a fantasia que nos habita deste sempre. Antes de conciliar o sono, as imagens maravilhosas se formam diante dos nossos olhos fechados. Desta forma, sem enxergar nada, vislumbramos a beleza. E assim, adormecemos sonhando a vida.

   Se a noite chegar sem nenhum sonho, eu sinto muito, e sofro ao escrever isso. Porque é triste demais ir dormir sem um sonho. Sem uma esperança. Sem uma ilusão.

   Por mais humilde seja, não deixemos morrer no peito aquele anseio pequenino, a graça da vida, a razão da nossa luta. Às vezes, não ter um sonho dói tanto, tanto, que é preciso tê-lo, só para não sofrer.

 

Malabaristas das ruas

 

Marisa Bueloni

   A cidade toda já viu e certamente assiste com simpatia aos artistas de rua que invadiram os cruzamentos de determinadas vias de trânsito, sobretudo onde os faróis são mais demorados, permitindo que se exibam como verdadeiros astros circenses.

   São moços muito simpáticos, alguns falando uma língua que parece ser um castelhano. No cruzamento da Avenida Dr. Paulo de Moraes com a Rua Benjamim Constant, um destes artistas coloca até mesmo uma corda entre um poste e outro, fechando a passagem. E ali, o talentoso equilibrista faz o seu show de graça em plena luz do dia.

   Como negar um trocado a quem está tentando driblar a crise que nos assolou de norte a sul? Ah, se não dá para escapar da corda bamba da vida, se não é mais possível equilibrar-se nas despesas e nas contas, se há filhos para criar e se todos têm direito a um sagrado prato de comida, o jeito é ir à luta.

   Sim, os equilibristas e malabaristas estão entre nós e os nossos veículos, em alguns pontos da cidade. Não olhemos para eles com desdém, reprovação ou ira. Oferece um dinheirinho quem quer e quem pode. Ninguém é obrigado a dar nada. Eles não estão atrapalhando o trânsito, uma vez que se apresentam exatamente no tempo em que o farol está fechado. Sabem perfeitamente a hora de parar o show e ir de carro em carro, estendendo o chapéu coco.

   Contudo, dia destes, vi um moço bem jovem fazendo malabarismo com fogo, igual ao número visto nas arenas de circos. O rapaz se apresentava num cruzamento onde há um posto de combustíveis. Havia certa distância dos malabares com fogo até as bombas, mas o risco era evidente. Fiquei esperando o semáforo abrir e assisti ao belo show. Mas, se uma daquelas peças voasse da mão do moço e fosse em direção ao posto, esta não seria uma situação segura.

   Então, é bom prevenir, tomar cuidado e evitar este tipo de exibição pirotécnica perto de postos de combustível. Não sabemos que tipo de licença ou de alvará é concedido a estes artistas para atuarem pelas ruas da cidade, se estão preparados para esse gênero de atividade que sempre envolve algum tipo de perigo. De minha parte, fico filosofando e sofismando dentro do meu abençoado carrinho quando os vejo fazendo os seus números nos cruzamentos.

   Que tipo de situação os levou a amarrar a corda de um poste a outro, para equilibrar-se e desnudar-se assim, estou precisando ganhar a vida, senhores, e aqui estou fazendo o que sei fazer. Se gostar do meu espetáculo e me der uma nota ou uma moeda, ficarei grato.

   Ao moço que fazia malabarismo com fogo, cumprimentei e dei-lhe os parabéns. Ele não deixou nenhuma peça cair, teve um desempenho artístico perfeito e depois foi de carro em carro, agradecendo com um sorriso, recebesse ou não a gratificação esperada.

   Talvez nos ajude a refletir. Como nos comportamos nos cruzamentos da vida, diante de uma dura decisão? E o malabarismo para sobreviver? Depois da nossa luta, do nosso show particular, dando conta de todos os compromissos, qual a recompensa pela estafa nossa de cada dia?

   Que Deus nos pague!

 

Retalhos da vida

 

Marisa Bueloni

   E assim é. Nesta espécie de agonia quando o dia acaba, no entardecer que é uma metáfora da nossa vida, a finitude de todas as coisas. Lá se foi o sol, vem a noite e este manto escuro obscurece algo dentro de nós.

   Um tio querido me confessou tudo isso. O quanto sofria no anoitecer. A sombria passagem do dia para a noite era um ritual funéreo, rasgando-lhe a alma. E aos domingos, ao ouvir a música do “Fantástico” na tevê, sentia ímpetos de se atirar da janela do apartamento.

   O horário de verão faz o sol brilhar mais tempo e isso nos confunde um pouco. Os ponteiros do relógio avançam e a claridade prolongada altera nossa percepção. De qualquer forma, a vida avança mais do que o relógio e ninguém a detém por nada. Passo a passo, a vida vai em frente, independente do quanto conseguimos alcançá-la.

   Acompanhar até onde ela avança é tarefa hercúlea. Está sempre a muitas léguas de nós e penso que daí se originou a expressão “correr atrás do prejuízo”. Correr atrás da vida é algo estressante e infrutífero. Ou andamos com ela, a cada passada, no tempo e no espaço, ou estaremos eternamente defasados.

   A vida tem um compasso rítmico, uma sintonia própria, a regência correta e harmônica de cada momento e cada ação. Tudo nela se encaixa com perfeição absoluta e bíblica. Há tempo para rir e para chorar. Tempo para juntar e tempo de lançar fora. Tempo de odiar e de amar. Tempo para tudo.

   Tempo de ser criança, de ser jovem, de ser adulto. Tempo de casar e ter filhos. Ser pai e ser mãe, educar, deixar que os filhos sigam seus caminhos e façam suas vidas também. Mas não se afastem muito, por favor. Tempo de sermos avós, de brincar com os netos, pequenas e apaixonantes criaturas que povoam a nossa gentil velhice.

   Netos são o entardecer da vida e o alvorecer da esperança. Vendo netos florescerem em nossos braços, temos uma compreensão perfeita deste compasso, desta rítmica dança do tempo. Podemos pegar com nossas mãos a magia e a beleza do que criamos um dia. É de nossa linhagem e aí estão.

   Tudo isso representa retalhos lindos unidos por um fio de ouro, pedaços de sonhos, viagens, festas, família reunida em volta de uma abençoada mesa, brindes, risos, gente amada que já partiu e novos que chegam. As fotos estão pelas paredes e não nos deixam mentir. A vida passa, a vida passou. Um dia, aquele momento existiu para nós e para o outro.

   São estas peças em sépia que hoje se juntam novamente e se apresentam como um lindo quadro. Não apenas na memória, mas vívido para meus olhos, um eterno movimento de beleza e solidez que não cessa jamais.

   Estão por toda parte, sobretudo dentro do meu coração. Toda uma vida se foi e está impregnada de saudade, de gavetas arrumadas, de fotografias. Aquele sonho que não devemos perder dentro de nós, seja qual for. Viver numa praia, mudar de país, comprar um barco e morar nele, construir a casa mil vezes planejada, voltar a estudar.

   A faculdade da vida nos espera. Somos todos alunos, eternos aprendizes desta professora muito qualificada para ensinar. Nota dez.

 

Dia de Todos os Santos

 

Marisa Bueloni

   No ano 835 D.C., a Igreja Católica romana instituiu a data de 1º de novembro como um feriado para homenagear todos os santos, conhecidos e desconhecidos. Seria uma forma de celebrar os santos e mártires que porventura ficassem esquecidos durante o ano.

   Hoje, dia 1º de novembro, é o Dia de Todos os Santos, uma festa em que se celebram os homens e mulheres cujas vidas foram reconhecidamente santas e dignas dos altares. Na Igreja Católica, celebra-se também a comunhão dos santos, não somente pelo seu exemplo de vida e de santidade, mas também pelo sentido de união fraternal e da caridade a que todos somos inspirados a viver.

   Para os católicos e demais crentes, esta data significa um lindo chamado à santidade. Somos todos convidados a ser santos, de acordo com a condição de vida de cada pessoa. Eu quero ser santa, você talvez deseje ser santo, todos nós gostaríamos de ser santos e não somos. Porque a carne é fraca e caímos em desgraça em todo momento.

   Não é fácil ser santo no mundo de hoje,  embora se reconheça a existência dos chamados “santos modernos”, pessoas que se doam, se gastam e se entregam ao serviço de Deus e da fé que professam, muitas vezes no anonimato, realizando um trabalho de amor ao próximo, buscando construir um mundo mais humano e mais justo. Santa Madre Tereza de Calcutá é um exemplo desta beleza de vida devotada ao amor fraternal e à caridade.

   Recentemente, fui destratada numa mensagem pela internet. Foi-me dito que nós, católicos, fazemos “barganha” com Deus. Nossas orações, novenas e promessas aos santos seriam meras “negociações” para obtenção de benefícios particulares e especiais.

   Então, ao ler que os católicos “pedem coisas” aos que morreram em santidade, veio-me à lembrança uma entrevista que vi na tevê, de um estudioso especialista em vida de santos. O entrevistado sugeriu não fazer pedidos aos santos de praxe, como a Santo Antonio, por exemplo, tido como um grande casamenteiro. Rindo gentilmente, opinou que se façam os pedidos aos santos “menos ocupados”, àqueles de quem ninguém quase se lembra.

   Um destes pouco requisitados seria Santo Elesbão. Eu o desconhecia e comecei a investigar sua vida. Elesbão foi um rei católico do século VI, um negro etíope, estimado pelos seus súditos e seu reino propagava a fé cristã. Mas o reino vizinho era chefiado por Dunaan, que promoveu um massacre no qual morreram cerca de quatro mil cristãos. Elesbão declarou guerra a Dunaan e liderou o seu povo, saindo-se vencedor.

   Mais tarde, sentindo o chamado de Deus, Elesbão entregou o trono ao seu filho e dividiu seus tesouros com os súditos pobres. Partiu para Jerusalém, onde depositou a coroa real na Igreja do Santo Sepulcro. Retirou-se para o deserto, vivendo como monge contemplativo até sua morte no ano de 555. Sua festa se celebra no dia 27 de outubro.

   Que os anjos e santos nos protejam. De forma invisível, trava-se hoje uma batalha da luz contra as trevas. Só os que lutam arduamente pela santidade conseguem entender esta terrível luta. Todos os santos roguem por nós! Amen.

 

Dor de amor

 

Marisa Bueloni

   Ela me escreve tarde da noite. Há algumas semanas, vem me contando que vive o drama de uma paixão avassaladora, ama sem ser amada, tragédia grega. Fel e mel misturados em proporções desiguais e loucas. Sem rodeios, sem pudores, infeliz, ela tenta resumir sua mágoa. Vejo que tornamo-nos todos forçosamente objetivos, explícitos e categóricos, até por falta de tempo.

   Apaixonou-se perdidamente numa idade em que se supõe o adormecimento dos sentidos, a acomodação da libido. Sente-se ridícula, desprezível e senil. Perdeu a vontade de viver, já visitou o terapeuta e um antidepressivo leve foi acrescentado a uma já respeitável lista de medicamentos diários.

   “Quero morrer, amiga, que dor insuportável!”. Suas frases são de agonia e êxtase, vejo verterem lágrimas do seu teclado em cada letra, em cada toque de amor. Uma dor “sem originalidade”, segundo ela, sem diagnóstico, sem esperança de cura. Dor generalizada, “fibromialgia da alma”, ela romantiza.

   Um pouco dramática, compara-se à Demi Moore, quando esta foi abandonada pelo marido, Ashton Kutcher, ocasião em que a atriz ficou pele e osso. Mas ela me acalma e conta dos seus ainda sessenta quilos, ótimos para a sua idade. (Ele será mesmo digno de tanto sofrimento?).

   Parou de rezar, diz viver um deserto espiritual. Pede a Deus uma trégua. Precisa de descanso. Uma dor que ainda não sentira, ela que sempre fora tão amada, tão correspondida em seus amores. Tento consolá-la com minhas mais produtivas palavras, as de praxe e as criadas pelo vocabulário da vida. Mando um poema e ela responde “pelo amor de Deus”, que eu tenha piedade dela.

   Pede-me conselhos, digo que fique quieta no seu canto. Silêncio no Broocklyn, meu anjo. Conta que gasta muito em roupas e joias. Rebato que se conquista alguém com um rosto alegre, verdadeiro e afetuoso, com uma alma pura e generosa. Um comportamento limpo, honesto, justo. Já não crê nestes valores, está confusa, ausente, perdida.

    Juntas, reconhecemos a trágica verdade: o corpo envelhece, mas a alma não. Juntas, concordamos com todas as premissas acerca do amor. Ela afirma que amar sem ser amada é uma espécie de desonra, de inglória, de desumanidade. Sobretudo depois que entregou o coração, se declarou. E ele disse: “Passar bem”.

   Ela é tão frágil, tão doce, tão linda. Sofre a rejeição dolorosa, a desesperada dor da saudade fisgando o coração. Minha amiga doce e amorosa! Agora mais amorosa do que nunca! O que fazer? Se quiser vir até aqui, prometo abraçá-la profundamente e cozinhar uma canja curativa, fazer um chá consolador. Faço massagem com um creme de cânfora onde a dor corporal se instalou junto com a outra, nas suas costas dobradas.  E iremos rezar um terço à Virgem Maria.

   Pelo Messenger, me pergunta se enlouqueceu. Respondo que é a bela loucura do amor. São duas da manhã, ouvindo estrelas, ora direis, quando nos despedimos. Ela dá boa noite e manda um coração vermelho. Respondo que já é bom dia. Ela manda um sol luminoso.

   Ó desgraça de vida! Ó céus, ó terra! Ó coração vermelho, ó sol inflamado! O que é este dardo, meu bardo?

 

Tempo de dar graças

 

Marisa Bueloni

   Dia destes, uma amiga querida e eu conversávamos solenemente sobre isso: agradecer por tudo o que nos cerca e nos facilita a vida. Ela disse que se senta na varanda, a casa em obras, medita e agradece. Contei que louvo a sagrada mesa onde faço minha refeição e até mesmo os eletrodomésticos, auxiliares preciosos na nossa cozinha. Mas, sobretudo, dou graças pela água, tão somente pela água.

    A bênção da água chega até a nossa casa, feito um milagre maravilhoso! A água do nosso uso diário, a água que deixa a nossa roupa tão boa de usar novamente, limpa, fresca e perfumada. Esta água benfazeja nos cura e nos salva sempre, quando nosso maior desejo é um banho quente e a cama com lençóis aconchegantes.

    Ao cozinhar, vou lavando a louça e me lembro das cenas na tevê, as pobres mulheres que caminham por quilômetros equilibrando um balde na cabeça, levando para a casa e para os filhos uma água suja e perigosa. A imagem nos comove, ficamos indignados, mas para nós, basta abrir a torneira e a água está ali, um presente do céu.

    Então, evoco a música celestial e eterna, um salmo encantador. A comida vai sendo feita, os utensílios lavados e penso na humilde “casinha de Nazaré”. A pobreza da Sagrada Família foi descrita no livro de uma mística que teve muitas visões. Maria cultivava uma horta, havia algumas árvores frutíferas no fundo do quintal, criação de aves, ela apanhava uma fruta para o Filho, guardava alguns ovos, colhia verduras. E quando estavam juntos, comiam em silêncio. A mesa e os bancos simples feitos por José. Tudo era paz.

    Tanto já sonhei com uma casinha pequenina, onde o nosso amor nasceu. Mil vezes construí em pensamento uma gentil morada num terreninho em local aprazível, lá no campo. Eu colocaria uma placa: “Senhor ladrão, não perca seu tempo. Sou uma aposentada e pensionista do INSS, o senhor deve ganhar mais do que eu. Tudo o que tenho é esta casinha e o carrinho na garagem. Lá dentro, o bem mais preciso é um velho computador. E dois relógios que foram do meu lindo. Por favor, não estrague nem a maçaneta e a porta de entrada. Muito grata”.

    Na engenharia do meu sonho, louvo as coisas pequeninas, aparentemente insignificantes, mas sem as quais a vida se tornaria mais difícil. A agulha e a linha. A faca de cortar o pão. Um sofá bom. Um chuveiro novo. Minha mãe dizia que temos de valorizar tudo, usar o que compramos até acabar, pois cada coisa tem sua utilidade e sua sagrada presença entre nós.

    Um canto ecoa pelos ares, ressoando no topo das colinas e dos rochedos, no alto dos telhados. Que toda a terra exulte e dê glórias ao Senhor. As aves do céu cantam em louvor ao Pai que as alimenta. As montanhas reverberam a glória divina, em esplendor e majestade. Um coração pequenino, cujo corpo começa a ser vencido pelos anos, comprime-se em sua miséria terrena, adorando timidamente o Senhor dos exércitos.

    Minha alma glorifica o Senhor. Meu espírito exulta em Deus, meu Salvador. Louvor e glória a Vós, ó Deus do Universo.

 

Fazer as malas 

 

Marisa Bueloni

   Já tive paixão por fazer malas. Capricho, organização, ordem, peças separadas por tamanho, cor, uso, enfim, nunca precisei destes manuais que explicam como fazer malas. Fazia a minha e as das duas filhas, quando pequenas. Meu lindo fazia a dele, na qual eu dava uma vistoria, porque costumava levar bem pouca coisa. E ficava pronta num minuto.

            Em qualquer viagem curta, queremos nos precaver com calor, frio ou chuva, mesmo sabendo da previsão do tempo. Acabamos nos perdendo na quantidade de roupa e a mala fica um chumbo de tão pesada. Tudo bem, hoje tem as rodinhas, mas houve um tempo em que malas eram carregadas pelas alças. E como pesavam!

            Daí a expressão “mala sem alça”... Imagine carregar, transportar mala sem a alça. Outra coisa terrível de lidar é colchão desprovido daquela alcinha lateral. O fabricante tem de pensar no consumidor. É preciso colocar uma alça auxiliar na lateral do colchão, para transporte ou quando se deseja mudá-lo de posição na cama e isso deve ser feito regularmente.

            Viagem nos remete a um lugar onde a cama e o quarto não serão os nossos. O banheiro, as toalhas, algumas coisas tão familiares e tão intensamente amadas! Enfim, minha paixão por fazer malas acabou. Hoje, sofro com a arrumação de uma simples maleta para passar o final de semana fora de casa.

            Tenho profunda admiração por quem viaja sem parar. A pessoa mal chega de um país, já está pensando em outro. Acabou de desfazer as malas e está fazendo de novo. Perdi este pique, este ânimo. Uma simples viagem à praia costuma me deixar pelo menos uma noite sem dormir de tanto pensar. Pensar na mala. Pode rir.

            Viagem à praia exige um ritual de preparação. Eu que o diga! Depende muito do local onde nos hospedamos, é claro. Se for numa casa alugada, é preciso levar desde roupa de cama, banho e também de mesa, porque pelo menos o café da manhã será lá. E para quem gosta de começar o dia com pães, torradas, frutas, geléias, queijos, café, leite, sucos, é preciso fazer uma compra inicial e também abastecer a geladeira com coisas para ir beliscando quando bate a fome. Ou seja, férias na praia, mas com supermercado. Inclua todo o material de limpeza e higiene da casa também. Ufa!

            Ainda que a hospedagem seja num hotel ou pousada, com toda a boa estrutura de hotelaria, temos de pensar na nossa mala. Além do arsenal de filtros, xampus, cremes, cosméticos e apetrechos de toda ordem, a mala de praia é sempre especial. Sem contar que é preciso uma sacola à parte só para as bolsas de palha, sandálias e chinelos.

            Depois de certa idade, não podem faltar os remédios. Tem o da pressão, a aspirina, a vitamina E e D, a atorvastatina e o alendronato de sódio. Lexotan, pois pode pintar insônia brava à beira-mar. E protetor auricular, nunca se sabe do barulho à noite. Não se pode esquecer o paracetamol, porque a dor não avisa quando chega.

            Sim, sua tonta, tem farmácia lá, mas a gente cresceu ouvindo a mãe dizer que é melhor prevenir do que remediar. Sábio conselho, de eterna eficiência. Saudades, mãe querida!

 

Humores do mundo 

 

Marisa Bueloni

   O mundo tem seus ruídos, seus humores e seus mistérios. Quando me refiro a humores, contemplo a abrangência de grande parte do que é criado, do que nos pertence, nos caracteriza e nos individualiza. Tal cada um dos quatro tipos de matéria líquida ou semilíquida que existiriam no nosso organismo. No ser humano sadio estes quatro elementos se encontrariam em equilíbrio e formariam o temperamento. Já a falta deste equilíbrio determinaria o aparecimento de doenças. Seriam eles: o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra.

   Juro que não entrarei em detalhes orgânicos e físico-químicos destas substâncias, até porque os nomes me impressionam. Uma vez, mandei um livro com meus poemas de presente para um editor. A secretária dele me devolveu, agradecendo. Escrevi ao editor, comunicando o fato e ele respondeu: “Ah, Marisa, se raiva seca matasse, eu estaria morto”. Pediu mil desculpas e para eu mandar o livro de novo.

   Então, raiva seca, assim como bílis negra, me parece uma nomenclatura de nervosa e irada significância. De qualquer forma, a cronista deseja se confraternizar com todos os vocábulos existentes, em todas as línguas, porque ama a palavra e a respeita, fervorosamente.

   Assim, à semelhança dos humores que regem nosso corpo e nosso estado de espírito, penso nos humores nas entranhas da Terra, o magma profundo expelido pelos vulcões; os vapores dos gêiseres; os atritos entre as placas tectônicas; as correntes marinhas e todo tipo de movimento desconhecido, plasmado na Criação.

   Deseja a cronista, em primaveril êxtase, exaltar os humores do mundo, tal os que no corpo humano precisam estar equilibrados para que seja formada a têmpera da alma. Teorias à parte, que ruídos são esses, que humores se enterram no seio do planeta, para que pressintamos algo maior vindo em nossa direção?

   Confesso que também não sei. Mas já me debrucei em livros, estudei muito quando o livro era o nosso material de pesquisa. Agora, temos o Google, a bíblia da informação. Contudo, a resposta e a descoberta não repousam apenas na enciclopédia virtual, mas percorrem um longo caminho até serem processadas em nossa mente.

     À nossa volta, há ruídos de toda espécie. Há dias em que ando com o vidro do carro fechado para não ouvir o barulho do lado de fora e dos demais veículos circulando, pois quero me concentrar na música do rádio.

      Há tantos humores e sons fluindo através do dia e do tempo, poluindo nossa lucidez! Mas há um humor especial, algo que sobe dos abismos, das profundezas abissais e nos atinge por inteiro. Há outro, etéreo, que vem das alturas e nos alveja o peito como um dardo flamejante.  Seja em forma de pensamento, de presságio, ou de uma luta concreta, tensão permanente com força transformadora.

   Peçamos a Deus que nos livre do terror das trevas e da flecha que voa durante o dia. Que a epidemia passe longe da nossa casa. Calcaremos aos pés leões e dragões e nenhum mal nos acontecerá, porque conhecemos o Seu nome e seremos honrados com a Sua salvação.

 

Bendita música

 

Marisa Bueloni

   Não sei viver sem música. Melodias buscam abrigo em minha alma sem cessar. A alma desesperando-se. Digo: música linda, pare só um instante. Mas ela se recusa a obedecer. Atormenta-me com sua beleza sonora. Quero ser profundamente atormentada.

   No aparelho de som, reinicio o CD para meditar e relaxar. Era um dos preferidos do meu lindo, já acamado e fraco, pedindo para ouvir música. Guardei todos os que ele amava. Ouço quando preciso de paz. As notas suaves penetram em cada canto da casa e pousam solenes nas lembranças.

   A música e o canto me embalam desde menina. Penso que me saí bem quando fui aluna do professor Benedito Dutra, no Colégio Assunção, embora temesse as provas de solfejo. Depois, as aulas do professor Egildo Rizzi. Como esquecer a lousa com as cinco linhas amarelas do pentagrama?

   Ainda me lembro do Hino do Colégio, que terminava com versos deste calibre: ”Desta casa também que é um templo / Onde a crença mantém-se de pé / Seguiremos com a força do exemplo / da justiça, do amor e da fé”. Procurei no Google a letra toda e não achei. Quem tiver me mande por e-mail. Muito grata.

   Ah, o Orfeão da Escola Normal! Fui aluna do professor Rossini, na turma da segunda voz e muito assídua nas aulas. Não perdia por nada. Felicidade era cantar o Hino Nacional nas datas cívicas em solenidades da escola. Que orgulho pertencer ao Canto Orfeônico.

   Sempre tive ritmo, boa voz, afinada, o que me levou a aprender violão, por volta dos meus 10 anos. Participei de um grupo de amigas que também tocavam e progredi muito com elas. Autodidata, fui estudando e descobrindo as sequências musicais, as posições e os acordes dos tons naturais.

   A música encheu minha juventude de alegria e de sonho. Apresentei-me em festivais da cidade, cantei com orquestra, com banda, cantei com amigos cantores que também sonhavam em cantar como eu sonhei. Aprendi a compor minha própria harmonia para as músicas e até hoje tenho este abençoado dom. Sabia de cor o repertório dos Beatles, da turma da Jovem Guarda, dos ídolos da minha época. Um amigo músico elogiou meu arranjo para “I can´t take my eyes of you”.

   Amo a música clássica e o canto gregoriano. Mas minha paixão são as guarânias em castelhano. Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui, Violeta Parra e tantos outros, o dedilhado nas cordas e a força das letras revolucionárias. “Yo tengo tantos hermanos / que no los puedo contar/ Y una hermana muy hermosa/ que se llama libertad”.

   Desde sempre, a música embala a minha vida. Hoje, canto com os meus netos, ensino tanta coisa, tocamos xilofone, compro violinha, pandeiro, para marcar o ritmo das canções. Guilherme gosta desta: “Agora eu era o herói / e o meu cavalo só falava inglês”. Vitor não se cansa de cantar “A canoa virou / foi deixar ela virar...”.

   A música nos ensina muito e traz o sonho a cada momento do dia. “Cantar, e cantar, e cantar / a beleza de ser um eterno aprendiz”. Contudo, vemos nos programas de calouros como é difícil cantar. Ninguém se atreva se não nasceu com esse dom supremo.

    Deus Pai! Eu Vos agradeço pelo dom da música!

 

Santo dos Anjos

 

Marisa Bueloni

   Nada foi tão doloroso para o Brasil, na quinta- feira, como a morte do ator Domingos Montagner, que deu vida ao fundador da Cooperativa Agro-Grotas, na novela de Benedito Rui Barbosa, da Rede Globo. Benedito chorou dando entrevista. Santo dos Anjos brilhou e encantou. Ó, Velho Chico! Tragaste o corpo e a vida de um dos mais promissores atores da dramaturgia brasileira.

   O público espera o final da novela, o desfecho que promete ser justo e feliz, unindo pares e punindo criminosos. Consta que os atores da primeira fase voltarão para encenar os últimos capítulos, poupando Camila Pitanga do sofrimento. Santo e Maria Teresa, o par romântico que nos emocionou durante todos estes meses.

   Se poucos conheciam o seu verdadeiro nome, agora Domingos Montagner se torna inesquecível e imortal. Professor de Educação Física, foi ter aulas de circo para aprimorar sua prática, sua pedagogia. No circo, o encanto de trabalhar com os artistas, fazer o palhaço, representar.

   Uma trajetória como muitas, de tantos que aspiram à vida artística, à televisão e ao teatro, mas tudo de forma muito simples e muito humilde, segundo afirmam os que conheceram e conviveram com Domingos. Era visto no bairro do Tatuapé, onde morava, na Capital. Bom pai, bom marido, bom chefe de família. Bom ator. Boa pessoa.

   Acho que por isso a perda dói tanto. Comedido, simples, sorrindo no seu rosto de bom moço, com aquele jeito de alguém incapaz de uma maldade, de uma grosseria. Algumas pessoas nos passam esta imediata imagem de integridade, esta luz, esta honrada decência.

   O ator protagonizou na vida o que representou na tela. Santo foi procurado por Teresa e Bento, nos episódios em que era dado por desaparecido. Na quinta-feira, o corpo do ator também desapareceu nas águas profundas do rio. Mas a vida não tem o enredo do folhetim, e os índios não estavam lá para salvá-lo. A vida imita a arte, sim, para que nossos sentidos não se percam da realidade.

   Santo dos Anjos está nas alturas. Está na glória dos anjos, definitivamente. Choramos com ele e com Bento a morte do capitão Rosa e do pai, Belmiro dos Anjos. Santo corajoso, que por décadas lutou com a terra e enfrentou o poderio dos coronéis.

   Roga por nós, Santo! Inferniza os políticos de Grotas, Bento! Cultiva a terra, Miguel, ao lado de Olívia. Reza, dona Piedade, acende as tuas velas. Recolhe-te, Luzia, veste teu luto agora, que é de verdade. Força, professora Beatriz, candidata à prefeitura da cidade, na busca de justiça e de melhores condições de vida para o povo.

   Um pequeno grande retrato do nosso país? Uma poderosa família oprimindo os lavradores, impedindo que andem pelas próprias pernas, tirando-lhes o lucro desmedido, perpetuando a seu favor influências políticas e econômicas.

   Ah, Coroné Saruê! Nem o senhor nem dona Encarnação precisaram mandar matar Santo dos Anjos. Ele morreu nos braços do rio São Francisco. Morreu de verdade, para comoção nacional. Morreu como um herói, destes de novela, que nos emocionam e, literalmente, nos fazem chorar.

 

Lá detrás daquele morro

 

Marisa Bueloni

   Venha para casa, que vem chuva forte. Ou melhor,  chumbo grosso. Não posso dizer tudo o que sei. Ninguém acredita. Pegue seu carro, sua mochila, seu terno novo, alguma comida, e traga para cá. Não posso fazer nada a não ser abrigá-lo em minha casa. Venha.

   Falando nisso, em Brasília, recentemente, um terremoto varreu para sempre do mapa a nossa Carta Magna. Foi um furacão daqueles, os ventos uivantes do inacreditável subiram a rampa do Palácio.

   Quero te dizer que nem tudo está perdido. Apesar do planeta decadente e poluído, há uma réstia de dignidade e de esperança aqui e ali. Onde? Não sei.

   Digo-te, meu amor, que os dias passam como se não passassem, que o momento é estático e a penumbra faz sombras nas paredes. Por vezes, teu rosto aparece nelas, límpido e claro. Noutras, é só um detalhe, o recorte da tua boca, teu nariz lindo, o perfil etrusco. No fundo, no fundo, é tua alma que eu busco.

   Tenho vocação para ser triste. O médico diagnosticou tipo “um brasão de família”, certa tendência à melancolia contra a qual preciso lutar sempre. Meu pai andava com um lenço no bolso para enxugar o canto dos olhos, chorava ouvindo “Chico Mineiro”. Herdei de meu pai o gesto emotivo e a tristeza da vida.

   Em geral, acordo com uma certeza: de que tudo vale a pena neste mundo de Deus. Por alguma razão especial, esta geração foi escolhida para estar aqui, neste século da nossa história. A esta humanidade está reservado um conhecimento que abalará os corações.

   Vou morar à beira-mar, ah vou. “Vai nada!”, me aconselha a amiga. “O mar vai subir, é perigoso, agora devemos morar em lugares seguros e altos”. Lembrei-me de uma mulher “sensitiva” que vi na tevê. Contou que morava em Peruíbe, cidade praiana. Teve a visão de um tsunami colossal. Um dia, do nada, apareceu um aviso na tela do seu computador e ela se mudou para Campos do Jordão.

   A vida não é um salto alto, eu sei. A vida é luta. A vida contém uma dose exata de beleza, de alegria e de sofrimento, que é para ninguém enjoar dela. Tem também uma dose intrínseca de esperança. Talvez tenha a sua parcela inevitável de horror. Há os dois lados, que é para equilibrar o ato político de viver.

   Há momentos em que todos os ruídos cessam e o mapa da noite expõe seu desenho mais denso. No entanto, é essa massa inexata e difusa chamada silêncio que se transforma em impetuosa eloquência, se a alma deseja falar.

    Bateu uma saudade funda dele. Destas que fazem o coração ficar pequenininho. Então, era um domingo em que o tricolor ganhou. Eu fui lá, beijei a foto dele e falei, apertando o retrato contra o peito: dois a zero, lindo!

   A vida está ficando cada vez mais complicada. Antigamente, se dizia “para o mundo que eu quero descer”. E agora? Qual é o grito de socorro?

   Lá detrás daquele morro / tem um pé de manacá
Nós vamo casá / e vamo prá lá / Cê quer? / Cê quer?
Ai, meu Deus! Namorar e casar! A noiva fez um vestido e o noivo, decidido, terno branco foi comprar. Namorar e casar. O bolo encomendado, rapadura e melado pra de amor se lambuzar.

   Concluindo, reafirmo que a fé remove montanhas.

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Nada é muito importante

 

Marisa Bueloni

   Num de seus programas, comentando a fala de um entrevistado, Marília Gabriela disse: “Na verdade, com o tempo, vemos que nada tem muita importância”.

   Ah, que alívio ouvir tal pronunciamento! Pois naquela hora, assistindo à entrevista, uma determinada agonia pesava como chumbo em minha alma. Ouvir a afirmativa foi uma redenção. Refletindo no fato de que nada tem muita importância nesta vida, ficamos mais leves, menos tensos, menos ansiosos.

   Nada é muito importante. Nada é tão importante assim. A roupa, a unha feita, o sucesso, o carro, o dinheiro. É preciso tão pouco para viver! Se algo der errado conosco, paciência. Tentemos de novo, aprendendo com nossos insucessos. Cada lição será preciosa, há de nos fazer crescer e aprimorar nossa visão de vida e de mundo. Vasto mundo!

   O empenho constante de perseguir a perfeição em tudo, de estar a postos em todas as horas do dia, nos cansa e nos abate. O efeito é contrário. A ânsia de apresentar uma face animada e solidária 24 horas acaba se tornando um exercício de repetido esgotamento.

   Podemos prestar solidariedade, sim, mas quando solicitada, quando necessária. Antecipar o abraço do auxílio, demonstrando atenção ininterrupta, é algo que irá nos exaurir todas as forças.

   Nada é muito importante. Gravemos esta afirmação lúcida e transformadora. Busquemos o equilíbrio entre erros e acertos, balança vital para nossa paz de espírito. Importante é perdoar a si mesmo, dar um desconto próprio para os destemperos em certas situações e justificar-se com boa autoestima perante os fracassos e perdas.

   Ah! Os ganhos! As conquistas, as ações bem sucedidas! São elas o nosso alento maior, a nossa pura e clara esperança. Bom guardar seus nomes e datas, suas características maravilhosas, como belas efemérides.

   Nada é muito importante. Aprendamos isso, senhores. Uma só coisa é necessária. Ao crente religioso, será a salvação da sua alma. Não haverá algo de maior importância neste mundo. Cada um possui sua escala de valores e se pauta por eles, confiante em seu tirocínio, em seus anos de experiência, em sua plena convicção de certo e de errado.

   Num mundo precário de bons valores, onde escasseiam os exemplos de respeito, generosidade, gentileza e afeto, é alentador pensar que ainda se pode encontrar aqui e ali a abençoada chama que acenda a luz da sabedoria, da inteligência, do prodígio e da bondade.

   Não nos falte jamais a fé, este farol luminoso, lâmpada para os nossos pés. Ela poderá, sem nenhuma hesitação, nos apontar o que de fato é importante. A fé nos sustenta quando tudo o mais naufraga; a fé nos alimenta quando nossa alma morre de fome e de sede; a fé nos faz levantar da cama, sair da depressão, buscar a fonte da nossa essência.

   Nada é muito importante, lembre-se. Não se aflija por pouco. Ou por nada. Sim, todos nós, em algum momento, já nos desesperamos. Avançando na estrada, vemos que não valeu a pena. Fiquemos com esta prece libertadora: nada é muito importante.

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Quem não tem cão...

 

Marisa Bueloni

   Bem, amigos! Aqui vai um texto destes para desopilar a alma cansada de guerra. Se a vaca foi pro brejo, precisamos agir rápido e tomar uma atitude, sabendo que uma andorinha só não faz verão.

   Nunca fui esperta demais e não sei usar direito a expressão “cobra criada”, pois temo ofender alguém. De tudo que já ouvi, fico com aquela frase da qual meu pai gostava tanto: “Quando um burro fala, o outro abaixa a orelha”. Eu achava tanta graça nisso!

   Uma companheira de muitas viagens à praia, pândega até a medula, costumava chamar a atenção de todos, nas brincadeiras, dizendo que quem fala muito dá bom dia a cavalo. Ui! Acho que cumprimentei muitos equinos nesta vida eloquente.

   É bem verdade que o melhor mesmo é cada macaco no seu galho, fala sério. A fim de que não haja confusão nenhuma na hora da onça beber água. E que hora seria essa? Mas tem a outra água, a que o passarinho não bebe.

   Um amigo querido, padre Paschoal Rangel, mineiro, falecido há alguns anos, publicou um livro, Provérbios e Ditos Populares. Segundo ele, “os provérbios populares são oriundos do meio rural, ou seja, são nascidos em meio à gente simples da roça, frutos da observação empírica das pessoas que ali vivem. Nesse meio, existe um grande número de provérbios que tem como personagens os animais, em razão do fácil contato do homem do campo com os bichos, como “cachorro cotó não atravessa pinguela”. Neste texto singelo presto-lhe uma pequena homenagem póstuma.

   Ah, mas por que temos de engolir sapos, às vezes? Tem gente que prefere cuspir fogo. Confesso que já “pratiquei” as duas situações e passei foi muito sufoco. Se cão que muito ladra não morde, é sempre boa a prudência de saber que em boca fechada não entra mosquito.

   Minha mãe gostava de dizer que cachorro de muito dono passa fome. E é verdade. A vida comprova isso. Temos de ter uma direção única, um objetivo e contar com nossa capacidade de realização. E confiar. Mas, se à noite todos os gatos são pardos, não vamos nos preocupar demais com o supérfluo. Trabalhar para o necessário. Afinal, para quem é bacalhau basta. Olha o preço do bacalhau hoje!

   Porém, como burro velho não perde a mania, eu também tenho as minhas. Nem pensar que caiu na rede é peixe. Não! Tem de batalhar muito, ainda que seja preciso receber alguns presentinhos da vida. Sabem como é: cavalo dado não se olha os dentes!

   Juntando um pouco aqui e um pouco ali, se diz que de grão em grão, a galinha enche o papo. Vale para tantas situações da vida! E se dois galos não cabem no mesmo poleiro, digo que dois bicudos não se beijam. Mesmo.

   Se uma vaca voasse, dizia um cunhado brincalhão para ocasiões específicas deste lamento. Sem querer puxar brasa para minha sardinha, eu competia com ele nestes ditos.

   Termino com um provérbio muito precioso, porque hoje eu estava mesmo no mato sem cachorro, sem saber por onde começar, com que texto encantar o leitor e usei de um recurso muito comum, recorrendo ao que já existe e já foi escrito à exaustão. Pois é: quem não tem cão, caça com gato...

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Luzes que se apagam...

 

Marisa Bueloni

   Há uma música linda, de Charles Chaplin, “Luzes da ribalta”, que me toca fundo o peito, o coração e a alma. A tradução da música para o português refere-se às ilusões, às vidas que se vão, às luzes que se apagam com o decorrer do tempo. Vidas que se acabam a sorrir, luzes que se apagam, nada mais.

    Diz a letra também: o que passou não voltará jamais. No retrovisor do tempo, identifico tantas pessoas admiráveis, consumidas no amor, almas devotadas que partiram acreditando no que faziam. Vidas cheias de fé, ainda que muitas sentissem apenas o vazio e a escuridão dentro de si.

    Na minha carruagem de sonho, refaço um trajeto amado, a mocinha descendo a rua Governador rumo à faculdade. Havia no céu uma estrela enorme e inquietante no início do inverno, que a seguia até a entrada do prédio. Deixava lá fora a estrela peregrina. Terminada a Pedagogia, o curso de Orientação Educacional. E depois de casada, a faculdade de Jornalismo.

    A alma sempre ávida de conhecimento queria estudar, estudar, estudar. Nunca parar de estudar. A Filosofia a chamava nos livros e nas horas de profundos conflitos existenciais sem respostas, sem janelas, sem portas e sem passagens secretas. O secreto ficou guardado no terraço florido e nos bancos de madeira com pés de ferro. Num baú imaginário, de onde ela ainda pretende tirar coisas boas.

    Para que chorar o que passou, lamentar perdidas ilusões? – pergunta a letra dolorosa e a melodia mais ainda. Consolador será saber que nossos ideais renascerão em outros corações. A roda da vida deve girar, transformando e criando novas formas de amor, de contato, de bondade, de esperança. A tecnologia não substituirá o abraço ao vivo.

    A juventude é um sonho que as mãos querem segurar. Mas ele precisa ser vivido, buscando cumprir-se a cada momento, apesar da dor, da luta e do sofrimento. “Ninguém quer a morte, só saúde e sorte”, diz outra canção inspirada. Inspira-nos o canto das alvíssaras, anunciando a alegria. Mas existe o contrabalanço da tristeza, da amargura e da solidão. O que passou está guardado na caixa recheada de cartas maravilhosas, unidas por um laço de fita; em alguns cartões postais preciosos; nas fotos emolduradas nas paredes; na sala de jantar hoje silenciosa; nos porta-retratos tão vívidos e tão eternos.

    Vidas que se acabam a sorrir. Luzes que se apagam, nada mais. Quantos sorriram até o final de suas existências, sabedores da morte iminente, pegando em nossas mãos trêmulas, antevendo o adeus? Demos o melhor de nós a cada um, avó, pai, mãe, cônjuge, parente, amigo. A muitos acompanhamos solidários na amizade, quando foi preciso o afeto e a presença.

    Não nos falte jamais a certeza de termos sido companheiros e generosos, nesta solicitude extremada que a vida nos pede em algumas horas cruciais. Ontem, vi vidas se acabando e sorrindo, luzes apagando-se aos poucos num longo trajeto final; outras que se precipitaram na partida, abrupta e fatal. Hoje, sou eu, faço parte de uma geração que lentamente se apaga e fenece. À luz de profecias promissoras, ao som de “Luzes da Ribalta”.

 

O amor não tem idade

 

Marisa Bueloni

   Uma amiga querida, que já passou dos sessenta, está amando de novo e me escreveu contando que vai se casar. Já enterrou dois maridos, mas encontrou pela terceira vez um grande amor. Faz anos que não a vejo, mudou-se para outro estado e nos comunicamos pela internet.

   Ela andou mandando fotos. Rejuvenesceu uns 20 anos. Disse que não fez plástica, e que a boa forma se deve ao amor. A pele está um viço, os olhos brilham e ela ostenta aquele inconfundível e invejável ar de felicidade, a alegria típica dos apaixonados.

   Se o amor faz bem, minha amiga é a prova viva disso. Compartilha comigo frases românticas, imagens de flores, estrelas e corações. Ah, o coração! Como não vibrará dentro do peito de quem ama pela terceira vez e diz sentir o colossal ímpeto da adolescência, o mesmo arrepio na espinha e a mesma paixão avassaladora?    

   Além de voltar a fazer caminhadas, cuidar da saúde e da alimentação, ela me conta que foi às compras. Em Paris. Lá renovou parte do guarda-roupa e trouxe lingeries com rendas que são puro sonho. Após quase 10 anos, deu-se a este luxo, que considera fundamental na nova fase de sua vida.

   Ambos vivem a melhor idade, com a melhor das intenções. Ele também é viúvo e planejam o casamento  com muita responsabilidade. O dele será o segundo, o dela, o terceiro. Para eles, a vida é eterna. Sim, Deus seja louvado em toda a Sua glória. Sobretudo, pelas glórias do amor.

   Decidiram que nada mudará em suas vidas e cada um viverá na sua própria casa. Para não mudar hábitos, rotinas e demais afazeres diários de cada parte. Ele pega netos na escolinha, ela trabalha com arte, viaja, e tem muitos almoços com clientes.

   Sábia decisão? Sim, mas ele tem uma linda casa de campo onde passarão os finais de semana, os feriados, e viajarão juntos sempre que possível. O casamento será com separação total de bens, pois ambos são ricos e assim tranquilizam futuros herdeiros. Mas o anel do noivado é algo inatingível para a maioria das mulheres mortais.

   Perguntei sobre a cerimônia religiosa, uma vez que são católicos, frequentam os sacramentos e,  também por isso, julgo que estão dando o passo certo nesta decisão de se unirem em matrimônio. Não quis revelar o grande segredo que será o vestido rosa pálido, longo, com mangas transparentes, “para cobrir um pouco os braços, não muito apresentáveis na nossa idade”. Muito bem. Essa minha amiga sabe tudo.

   Mandou foto dele, lembra um pouco o ator Paul Newman, já grisalho. E com aquele porte de príncipe que chegou mesmo num cavalo branco. Qual princesa resistiria? Disse que o conheceu em casa de amigos e começaram a trocar e-mails. O que mais a encantou foi que ele nunca escreveu uma frase com “kkkkkkkkk”. A ausência absoluta desta sequência gráfica acelerou o romance.

   Como sabe do meu medo de avião, quer mandar um motorista vir me buscar para o casamento. E me trazer de volta a Pira. Imagine só. É lonjura demais. Agradeci, mas recusei. Contudo, acho-a tão maravilhosa e humana (faz muitos trabalhos de filantropia e caridade), e sinto vontade de aceitar.

   Ah, a lua de mel será em Dubai.

 

No baile da vida

 

Marisa Bueloni

   A vida me ensinou a reconhecer os erros e a aprender com eles. Esta é uma lição infinita porque erramos todos os dias e, às vezes, o estrago é irreversível. Mas, ai, por que não podemos, apesar de fortes no aprendizado, transgredir só um tiquinho?

   Lembro-me de um bailinho da juventude, o animador anunciou no microfone que “agora é dama tira”. Muita gente não sabe o que é isso. É quando, num momento do baile, é permitido à dama convidar o cavalheiro para dançar. Imagine se nos meus 16 anos iria perder essa!

   Minhas amigas não se arriscaram. Decidida, fui logo convidando o moço mais lindo do salão. Ele agradeceu, estava vindo de uma pescaria e lamentava por cheirar a peixe. Falei que não me importava. Jura? Nem um pouco. Então dançamos, foi bom demais e nos despedimos com ele dizendo: “Quero dançar com você de banho tomado, na próxima vez”. Tá bom.

   No baile da vida, temos escolhas a fazer e coisas a dizer. Você já se abriu de verdade, caro leitor, cara leitora? Refiro-me a questões de toda ordem, sejam afetivas ou não. Já fez um desabafo necessário, daqueles de ficar mais leve, depois de pôr para fora algo que lhe pesava terrivelmente sobre os ombros, ou sobre o coração?

   Talvez a expressão correta não seja esta, “sobre” e sim “dentro” do coração. Ah, o que todos nós guardamos neste valioso órgão propulsor! Costuma-se dizer que “Deus sonda os corações”. Só Ele conhece-nos por inteiro, as motivações, os segredos, as dúvidas cruéis, nossos desejos, sonhos e esperanças.

   Dia destes, ouvi no rádio: “A ética é filha da humildade, que é irmã da sensatez”. Os antigos diziam que “bom senso e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém”. Vi uma reportagem na tevê, onde a mãe dizia curar a gripe da família toda com uma bela canja.

   O que não faz uma abençoada sopa para o inverno!  Faço-a com peito de frango mesmo. Minha sogra fazia a legítima, com galinha. Fica um pouco mais substanciosa e com uma cor linda, meio amarelada, saborosíssima! A canja que aprendi com minha mãe sai boa também, sobretudo se acrescento pedaços de mandioca.

   Bem, mas o que têm a ver a prudência e a canja com desabafos do coração? Tudo a ver. A canja serve de unguento alimentar para a latejante chaga, depois de uma mal sucedida abertura de alma. Cura-se a dor com um bom prato da sopa fumegante. Queijo parmesão ralado por cima e torradas com creme de ricota. Já a prudência, essa é soberana em toda e qualquer questão.

   Bem, a vida é muito mais que um prosaico bailinho na hora da “dama tira”. Isso é muito pouco para os atrevidos. Há outras ousadias bem mais atraentes, sem que resultem num Boletim de Ocorrência. Podemos ser prudentes até mesmo na audácia de uma loucura, ou nos momentos solenes e belos em que julgamos seguir a nossa estrela. Onde está ela?

   Então. Como tenho uma alma com tendências ligeiramente transgressoras, escolho sempre o caminho perigoso. Meu lindo me alertava: “Cuidado, você ainda vai cair do cavalo”. Justo eu, que nunca pratiquei esportes equestres e nem sei cavalgar...

 

Luar na cozinha

 

Marisa Bueloni

   Peço licença para uma revelação: viver é um ato de primeira grandeza. Ainda que o mundo venha a ruir completamente, a alma cheia de amor estará a salvo. Viver é um ato de extrema gratidão, quando se ressurge das cinzas após três meses com gripe, uma atrás da outra, e dores supostamente relacionadas à coluna. Rever e abraçar amigos – que bem nos faz!

   Quero pensar em ideias inovadoras e discutir o futuro. Que a velharia da mesmice e suas variantes não nos contaminem mais. Abaixo o senso comum, “aquela velha opinião formada sobre tudo”, os preconceitos tolos, as conjecturas ancoradas em premissas pouco consistentes ou sedimentadas em experiências negativas.

   Então, em mágico momento, encontro a graça plena na minha cozinha. Vejo a lua refletida no balcão de granito, na extensão da pia. O reflexo atravessa o blindex da janela. A lua se projeta inteira, desenhada no granito. Toco no satélite da Terra e sonho.

   A imagem que ali se forma arrepia-me intensamente. Em misterioso êxtase, vejo nossa galáxia, o sistema solar, os planetas orbitando e me recordo das visões que tive na chácara do Campestre, sentada num banco próximo da varanda, vasculhando o céu noturno.

   Tomo comigo a lua na pia e vou cuidar de outras coisas. É noite, mas a mulher não para nunca, porque há o que fazer dentro de uma casa. Nós, mulheres, possuímos um dom natural para isso. Ninguém varre o chão melhor que uma mulher. Ninguém organiza louças, talheres, toalhas e demais objetos como ela.

   E a cama arrumada? Mãos femininas alisam lençóis e estendem colchas com maestria. Afofam almofadas, perfumam ambientes, fazem a beleza aparecer. Quem pode apresentar uma bela sala de jantar senão a dona da casa?  A mesa abençoada de tantas reuniões familiares. Só ela conhece e nutre profundamente este espaço sagrado.

   Uma casa brilha nas mãos de uma mulher. A “rainha do lar” tem sob seu comando cada gaveta, cada quadro na parede, o cheiro bom da comida sendo feita, a roupa no varal, a limpeza e a ordem. Se não for ela a cuidar pessoalmente, é outra mulher, a empregada, laboriosa trabalhadora sem descanso. Como a maioria das mulheres.

   Homens há que também se interessam pela arrumação doméstica e já vi grandes talentos. Entendem perfeitamente destas tarefas e as executam bem. Certamente, sentem-se reconfortados se contam com a ajuda feminina.

   Andando pelos cômodos, guardando coisas nos seus lugares, volto para a lua redonda que brilha no balcão de granito. Quero subir num raio deste luar e fugir. Para alguma Pasárgada querida, onde também serei amiga do rei. E de lá mandar lembranças para todos. Haverá internet? Aquele abraço. Piracicaba continua linda?

   Um abraço apertado aos amigos queridos. Aos leitores deste espaço onde derramo minha alma semanal. Há pessoas incríveis neste mundo e fariam muita falta se aqui não habitassem.

   “Fique com Deus!” – escreve sempre um amigo, despedindo-se no e-mail. Fiquem com Deus todos vocês. Sejam abençoados os humildes, bem-aventurados os construtores da paz, consolados sejam os aflitos.

   E eu fico por aqui, à espera da noite, para ver o luar na cozinha.

 

Teoria da dor

 

Marisa Bueloni

   A dor é você quem faz – Se fosse possível “criar” minha própria dor, seria bem leve e suave.

   A dor é uma ilusão – Não é. Ninguém “sonha” com a dor e ela não é uma quimera. Não tem como ser algo “falso”. Ela existe e ataca com força. Deveria ser substantivo concreto.

   A dor santificaDepende. Há quem acabe oferecendo a sua dor para as almas do Purgatório, para a conversão dos pecadores, para alcançar uma graça e muitos as têm alcançado neste oferecimento de vida.

   A dor é um fantasma que assombra – Ela não só assombra. Ela também dói. Ela é muito mais temida do que uma assombração.

   A dor está no cérebro - Pode ser. Quando alguém está com uma dor de cabeça lancinante, a dor está literalmente no cérebro. Ou em qualquer outro lugar do corpo. Conhecemos a teoria de que nada chega ao cérebro sem antes passar pelos sentidos.

   A dor é a prova de que se está vivo – Ainda bem! Sem dor, estamos mortos. Bela vantagem. Todos querem estar vivos e, se possível, sem dor.

   Dor de barriga é sinal de que você tem barriga – Ouvi muito isso, como um gracejo, uma piadinha, durante um bom tempo da minha infância. Até ser levada ao médico e tratada.

   A dor nos une – Sim, a dor tem o poder de juntar almas dolorosas em volta de uma mesa e ver quem sofreu a maior delas nesta vida. Muitos apostam na dor de cálculos nos rins. Seria a pior de todas. Uns dizem que é a dor de ouvido. E, para as mulheres, tem a dor das contrações do parto.

   A dor é a purificação da alma – Também creio nisso. Mas, quem sabe, existem outras formas de se purificar, sem tanto sofrimento físico?

   A dor é sábia – Sim, ela sabe como e onde doer. Sabe escolher os horários também. De madrugada, de preferência. Nos fins de semana, quando se procura o médico e ele viajou. No dia de Natal. Quando você acha que esta sabedoria da dor vem em boa hora, então, é hora de lutar contra ela.

   A dor é uma ficção – De que tipo? Científica?

   É preciso sentir dor, para dar valor à vida – O mundo ainda vai acabar com tanta filosofia. E vai ter de engolir mais esta.

   A dor é democrática - Se alguém quiser fazer da dor um instrumento político, ao menos lute para encontrar o alívio para ela. Votarei no primeiro candidato que prometer “acabar com a dor.

   A dor é uma bênção – Tente ser “abençoado” por uma dor de hérnia de disco.  Esta é uma falácia que dispensamos rapidinho. Cadê a verdadeira bênção?

   A dor é passageira – Ela é a passageira, de fato, fica ao nosso lado, no banco do passageiro. Ela nos acompanha nas viagens, é a passageira da nossa existência.

   Esqueça a dor – O que fazer? Tentar esquecer a dor ou bater em quem nos sugeriu isso?

   “Dor de barriga não dá só uma vez” – Ditado perfeito.

   A dor passa quando você não pensa nela – Conta outra. A dor não se “pensa”; a dor se sente. Quanto mais você procura “não pensar”, mais dói.

   A dor é uma fantasia - De quê? De Carnaval? Encontrem uma fantasia de dor, que eu quero vestir e ver se dá pra sambar com ela até me acabar...

   A dor é imaginária – Tente imaginar uma dor. Nunca faça isso, pelo amor de Deus!

 

Anjos, passarinho e rosa

 

Marisa Bueloni

   Ando vendo coisas espantosas que me causam um arrepio terrível, embora algumas cenas sejam absurdamente inacreditáveis e belas, como a dos anjos com asas. Era madrugada, noite sem estrelas, céu de chuva, quando saí lá fora na rua para ver o tempo.

    Espiei o casario dormindo, ouvi o silêncio que amo tanto. Nestes momentos, capto a poesia do invisível. Então, eu os vi. Dois anjos. Estavam no meu pequeno jardim, onde estão plantadas apenas duas pleomelis e três podocarpus.

    Perguntei o que faziam ali. Apresentaram-se como  anjos do condomínio, guardavam as casas e estavam de vigia. E por que no meu jardim? Porque rezo muito, porque os invoco sem cessar, peço proteção aos que amo e então resolveram fazer um plantão especial para mim.

    Expressei-lhes minha honra por esta deferência, tentando me aproximar. Desapareceram imediatamente. Passei as mãos nos arbustos das pleomelis, busquei algum sinal do que vira, e um ruflar de asas causou um movimento do ar à minha volta.

    De outra feita, foi no trânsito. Estava eu dirigindo numa rua de grande movimento e o farol fechou. Abriu, fechou de novo e a fila parada. Foi o tempo suficiente de um passarinho pousar na janela do carro. Olhou-me fixo e perguntou se eu não estava cansada. Sim, sim, muito. O trânsito estava lento demais, eu gripada, fraca... Com o biquinho, ele me indicou o céu azul.

    Olhei para cima e as alturas se abriram. Apareceu uma paisagem verdejante, uma campina, com algumas casinhas solitárias junto de árvores frondosas e um riacho cujas águas brilhavam como o sol. Ele assuntou se não desejo voltar para o campo, que lá é o meu lugar. E saiu voando entre a fila de carros.

     Passarinho, passarinho! Veio até minha janela, para me inquietar. E me fazer sonhar. Olhei mais uma vez para o alto e a paisagem era o céu azul de novo. O farol abriu e eu prossegui, com algumas lágrimas escorrendo pela face.

    A visão mais recente foi em casa, no computador. Comecei a escrever este texto e notei que no monitor se formava uma imagem. Vade retro! Ao me levantar da cadeira para pegar água benta, uma voz suave me chamou pelo nome. E na tela apareceu uma rosa. Amo as rosas.

     Transida de medo, meu olhar se fixou na flor. “O que você quer?”, indaguei. Não queria nada, apenas manifestar seu apreço. Todo dia me vê batucando no teclado, respondendo e-mails, postando no Facebook, cumprimentando aniversariantes, pesquisando temas no Google, procurando fotos e matérias, conversando no Messenger com amigos. Perguntou se não me canso. Jamais. Este é o pleno exercício do amor. Do amor às pessoas.

     Anjos, passarinho e rosa! Ah, meu Deus, o que é isso? A poesia tem me visitado fisicamente, o sonho se materializa diante dos meus olhos e nada fiz para merecer tanta honra. 

   Voltem, anjos amados, vigiem no meu jardim. Volta, passarinho. Vem pousar na janela do carro novamente.  Ah, rosa do computador! Se aparecer de novo, tenho algo especial a lhe dizer...

 

Sob as graças de Leão

 

Marisa Bueloni

   Recentemente assisti na tevê a um debate sobre astronomia e astrologia. São coisas diferentes, claro, e a maioria das pessoas se interessa mais pela consulta aos astros, buscando nos arcanos algo que possa mudar suas vidas.

    Lembro-me de um querido e saudoso professor de Psicologia. Argumentava que o horóscopo tem o poder de acertar quando diz: “Hoje, você vai sair à rua e encontrar alguém”. Sim, é grande a probabilidade de algo assim acontecer...

    Sei de pessoas que não saem de casa sem antes consultar os prognósticos para o seu signo. Enfim, cada um acredita no que quer e, se lhe faz bem, que mal há? De minha parte, confesso que não leio mais horóscopos. Há muito tempo. Confio n´Aquele que é a minha cidadela e meu refúgio. A Ele entrego minha vida.

    Abençoado salmo 91! “Podem cair mil à tua esquerda e dez mil à tua direita; tu não serás atingido”. Aquele que acredita no Senhor e conhece o Seu nome estará a salvo da flecha que voa durante o dia, da peste que ronda as casas, porque o Senhor o tem na palma na mão. Quando invocar o Senhor, terá resposta.

    Assim, passo longe das adivinhações de toda sorte, buscando sempre o auxílio do Onipotente, que na angústia estará ao nosso lado, para nos salvar e nos honrar. O Senhor nos saciará com longos dias e nos mostrará a Sua salvação. Esta é a minha mais devotada crença.

    Contudo, dia destes, li de passagem algo que me inquietou. O texto versava sobre saúde e conceitos preciosos, mas a frase não parecia nada científica ali. Afirmava que os leoninos sofrerão sempre da coluna e do coração. Bem, sou de Leão, já estou premiadíssima com três cirurgias de coluna e faço jus ao apregoado.

    Até que, recentemente, o coração deu o ar de sua imensa e assustadora graça. Noite quieta, em casa, começou a bater forte demais. Foi um atropelo. E falhava na louca corrida. Tum, tum, tum, uma falha. Tum, Tum, tum, outra falha. E assim foi, até que busquei ajuda, era uma hora da manhã. No hospital, a bondade do médico, a sugestão de que poderia ser tudo de fundo emocional. A enfermeira me deu um comprimido de Diazepan. De volta para casa, dormi feito uma pedra.

    Não sei se pedra dorme, mas meu corpo era uma rocha pesadíssima, necessitando de repouso. É tão bom não ver a noite passar e despertar com a luz do dia se dividindo na veneziana da janela! A manhã nasceu tão suave e tão doce dentro do meu quarto, andando silenciosa e aconchegante pela casa.

    Um amigo querido, também contemplado com problemas na coluna, sofreu recentemente um enfarte e me contou que é de Peixes, contrariando a tese dos leoninos. Parece que coluna e coração atacarão indistintamente, não importando o mês, o dia e a hora do nascimento da pessoa. Todo tipo de doença será enfrentada por todos nós, uns mais, outros menos, dependendo da predisposição de cada um. Assim é. Peçamos forças para as arritmias da vida. Bate, coração! Afinal, enquanto bates (por amor?), está tudo bem.

 

Recomeçar

 

Marisa Bueloni

   Às vezes, somos obrigados a percorrer um escuro corredor dentro da nossa alma. Conhecemos o caminho, pois já passamos por ele outras vezes, mas é preciso tatear na escuridão para atravessá-lo e chegar à luz.

    Quantas vezes aprendemos de novo? Não sei. Contudo, o coração tem uma capacidade imensa de recomeçar, de se renovar e buscar saídas. Virá desta gênese contínua nossa força suprema, o revestimento do qual nos fala a Carta aos Efésios, quando a fé nos chama pelo nome.

    Percorrer o caminho da noite escura é para os de espírito intrépido. A mata misteriosa tem de ser vencida com a coragem e a inteligência. Mas, sobretudo com a fé. São muitos os portões e umbrais a serem transpostos, até que a alma se sinta em paz.

    Na vastidão desta noite, busco a sétima estrela e seu brilho incansável. Vigio o suficiente para ter em mãos um pouco das bem-aventuranças deste mundo, se é que ele ainda dispõe delas. Se há escassez, nós as cultivamos por nossa conta, como um estoque precioso, tal as belas lembranças guardadas com zelo apostólico.

    Lembranças - estas sim valem a pena. Além delas, prezo a felicidade e a bonança de certos momentos. É aproveitá-los até as últimas consequências. Pode ser um maravilhoso e perfumado chá de maracujá, maçã, canela e gengibre, uma música romântica com a orquestra de Ray Conniff, um creme hidratante ao qual a pele agradece.

    Aos poucos, a bruma sombria vai se dissipando e, de um postigo obscuro e triste, surge a flor radiosa da manhã. Assim como a sentinela espera pela aurora, assim é a alma à espera da luz. No espaço entre a treva e a claridade, o coração faz as suas descobertas.

    Daí em diante, é território sagrado. Ninguém ouse perturbar o conhecimento adquirido nas agonias de quem espera. Se as certezas começam a cair uma a uma, surgem dezenas de outras verdades dignas de crédito. Ainda que não se sustentem de início, vão se tornando sólidas à medida que o sofrimento dá lugar à lucidez.

    Lúcida é a vida de quem conquistou a própria serenidade, vencendo a densa mata do medo e do desconhecido. Não sente solidão, sabe conviver consigo mesmo, ama o que possui e não se apega a nada mais. O cotidiano é administrado com paciência e aceitação.

    A noite escura vai ficando para trás, a sensação de plena liberdade e de confiança reforça o corpo e um sangue renovado corre pelas veias. O pior já passou. Estar de pé e caminhar tornam-se a maior das glórias. Há gosto em se vestir, dar uma volta de carro, fazer compras. É a redenção de todas as lutas.

    Belo é vencer a própria dor. Não há nada mais profundo, mais arrebatador e mais digno. O sofrimento traz cicatrizes fundas, mas compensadoras. As lágrimas molham o travesseiro recheado de sonhos, mas o sonho está ali, remanescente das duras batalhas.

    Por pior seja o luto na alma, por mais lancinante seja o arrependimento do que se quer esquecer, a vida continua lá fora à nossa espera. Feliz de quem vai ao encontro dela no rastro da esperança e permite ao coração recomeçar.

 

Fé e coragem

 

Marisa Bueloni

   Ouve-se dizer que, em determinadas situações, temos de ir com a cara e a coragem. Não é raro acontecer de faltar as duas, a cara e a coragem. Cada um sabe como foi enfrentar um momento difícil, tentando reunir forças para suportar. Só Deus sabe!

    Ao me deparar com algo penoso, ou em situações de contenda, vou com a fé e a coragem. Engulo em seco, conto até dez, olho em volta, tento me controlar e ser educada até a página 12. Quando não dá mais, é soltar os cachorros de leve e esperar a próxima cena.

    Contudo, aposto sempre na conciliação, no diálogo, embora existam pessoas refratárias a ele e com grandes dificuldades de comunicação. Na filosofia da paz e do bem, são merecedores do nosso respeito e da nossa oração diária.

    A Palavra diz que devemos amar os nossos inimigos e rezar pelos que nos perseguem. Ah, isso não é nada fácil. Sempre fui pessoa profundamente religiosa. O exemplo veio dos meus pais, vendo-os rezar o rosário de joelhos, olhando para as imagens dos Sagrados Corações de Jesus e Maria.

    Ficava ali, ao lado deles rezando também. Depois, a primeira comunhão, a Eucaristia recebida com a alma em chamas, achando que um anjo viria segurar a minha mão. Fui também Cruzadinha de Jesus. Ó, quanto rezamos o terço conduzido pela irmã Gema! Pertenci à Juventude Franciscana. Saudades de frei Saul, dona Emilinha e dona Orlandina, nossos amados mestres! A Ordem Terceira e a espiritualidade franciscana me guiaram pela vida afora.

    De todo este ideal voltado para a humildade, o serviço e a caridade, ficaram algumas importantes lições de vida. Em cada enfrentamento, em toda situação, São Francisco surge em minha frente, com seu hábito marrom, sua doçura e sua beleza. Sim, mestre amado! Pedir ao Senhor para sermos instrumentos de paz!

    Quero repetir aqui os versos da linda oração franciscana: “Onde houver ódio que eu leve o amor. Onde houver ofensa que eu leve o perdão. Onde houver discórdia que eu leve a união. Onde houver dúvidas que eu leve a fé. Onde houver erro que eu leve a verdade. Onde houver desespero que eu leve a esperança. Onde houver tristeza que eu leve a alegria. Onde houver trevas que eu leve a luz. Ó Mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado, compreender que ser compreendido, amar que ser amado. Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado e é morrendo que se vive para a vida eterna”.

    Viver este evangelho franciscano significa fé e coragem. É ter a plena convicção de que apenas o amor pode salvar este mundo. O amor que perdoa, dissipa as trevas, rompe com a tristeza, triunfa na esperança, faz brilhar a verdade, traz alegria e luz! O mundo seria melhor, mais justo e mais humano se nos espelhássemos no exemplo de Francisco de Assis, esse homem revolucionário.

    “Simples como as pombas e prudentes como as serpentes”, diz a Palavra. Com fé e coragem, vamos longe. Não há limites para o coração que se dispôs a amar, a seguir o Mestre e ser instrumento de paz.

 

 

Um sentido para a vida

 

Marisa Bueloni

   Peço licença para escrever um pouco sobre um tema que me inquieta eternamente: o sentido da vida. Já o  abordei algumas vezes e tenho consciência de que nunca o esgotarei completamente.

    Convido o caro leitor a praticar comigo o exercício sublime de encontrar este sentido. Enquanto escrevo, meu coração transborda de amor, de generosidade e de bondade. Creio que o estado de graça se parece com isso: esta leveza, esta beatitude mística, esta calma musical que escapa dos fonemas.

    As palavras. São elas as responsáveis por tudo. São as culpadas de todas as coisas, as orais, as pensadas, as escritas e as ditas em momentos não muito apropriados. Fazer o que, depois que as proferimos?

    Com humildade, pergunto o que seria de nós sem as palavras, sem um digno alfabeto. Há um sentido para o que escrevemos e o que falamos. Cada letra terá seu peso e sua magnitude num universo de significâncias.

    Chego a pensar que o sentido da vida está nas palavras. Delas decorre o que acontece. Se nada digo, reina um mutismo instransponível, latência de possibilidades. Por isso, falamos, escrevemos, redigimos, nos comunicamos. Alguma inspiração subsiste em nossas almas para que façamos isso todos os dias, sem nos cansar.

    Para que a vida tenha sentido, para que haja um “fiat” em cada vocábulo, é preciso o cultivo das frases que integram ideias. Desejo que o leitor encontre sua palavra e seu sentido. Se me perguntarem qual a mais bela do dicionário, diria que é “liberdade”. Mas há outras de igual beleza: justiça, amor, felicidade, paz, lucidez, fé.

    A palavra tem o poder de construir universos, pontes, catedrais e casas para morar. Ela faz transbordar os rios, as lutas, os sonhos. Mesmo no mais absoluto silêncio, encontramos a palavra e sua força.

    É pela palavra que eu digo “eu gosto de você” e o profundo “eu te amo” – ainda que o outro não acredite. Ou ainda “eu espero o seu abraço”. Há abraços curativos e enquanto ele não chega, ficamos à espera de um sinônimo para acalmar o coração.

    O sentido da vida está no bem que fazemos, nas bênçãos que proclamamos, nas graças que pedimos, na fé que determinamos. Nada disso teria sentido sem as letras benfazejas do afeto e do amor, sem o acento tônico da sensibilidade e da inteligência, sem a magia romântica da beleza junto de nós.

    Um dia, li uma frase assim: “o amor canta ao nosso redor”. E me encantei com ela para sempre. De vez em quando, faço questão de recordá-la em meus textos, porque encontro um sentido para a vida quando a celebro.

    Eis a mais bela celebração. O amor que canta ao nosso redor todos os dias, cântico divino. Vamos morrer procurando o que nos dê esperança. De esperança vivemos. De esperança nos nutrimos. De esperança morremos.

    Se um dia tudo se acabar de repente, restará a palavra. Haverá um vocábulo correto e insubstituível para o adeus final. Não sairemos daqui calados, ó não! Nossa alma, errante ou segura do caminho, há de continuar procurando o segredo, o mistério, talvez nos braços do Pai que nos ensinou a buscar um sentido para a vida.

 

A parte que nos cabe

 

Marisa Bueloni

   Permita-me o leitor uma poética e tímida colcha de retalhos nesta crônica semanal. Praticar o sonho como exercício de afeto, integridade e beleza.

         Meu pai enrolava entre os dedos um cigarro de palha caprichoso. Moviam-se ali tantos segredos daquele fumo sempre bem cheiroso. Meu pai me oferecia um pedacinho do fumo preto para que eu cheirasse. “Faz espirrar!”, dizia com carinho, esperando que em seguida eu espirrasse. E num espirro, a saudade bate. Meu coração mais uma vez se abate e nas lembranças, triste, me retiro. Ó pai querido, não me queres triste. Posso senti-lo, desde que partiste. Quero espirrar... e só suspiro!..

        Se o céu desabar, não haverá como sair de baixo. Feliz de quem construiu seu próprio refúgio dentro do coração. É coisa espiritual e não se compra com dinheiro do mundo. Não é coisa física, tipo uma construção segura, senhores.  Vai muito além da nossa vã filosofia.

        Ofereço-te meu ombro, meu assombro e minha amizade. Fica por conta dos velhos tempos e da saudade.

        Vá lá. Ainda estou nocauteada de sonho. Mas também indignada. As coisas dão uma volta muito longa para chegar onde desejam. Dona Vida é cheia de nove horas, reparou? Ela se adianta, se atrasa, chega no meio da festa e, às vezes, sai de fininho. Ninguém pode abrir a boca. Resta um caixão tristíssimo, flores de um perfume ruim, uma cova na terra, a conta maior que tiveste em vida.

        É de bom tamanho, nem largo nem fundo. É a parte que nos cabe neste latifúndio.

        Durante a confissão, num momento inspirado, em que os santos nos altares pararam para ouvi-lo, o frei disse: “Minha filha, Deus conhece o barro de que somos feitos”.

        As coisas da Terra são sempre muito sombrias. Devem ser mais belas e mais alegres as do Céu. Buscai as coisas do Alto. É para as alturas que dirijo meu olhar solene, à espera de solenidades.

        Na vertigem da vida, quero a voragem do que não acontece. Do sonho não realizado. Da sorte que nunca tivemos. Do concurso que não ganhamos. Do encontro jamais tido. Do beijo não dado. Dá para entender? Melhor o mistério eterno, que a revelação absoluta, escandalosa e cruel. Essas deixam marcas e a gente tem um medo colossal delas. Ou não?

        Declaração de amor em tempos de violência explícita: Pare com isso ou eu chamo a polícia!

        Mais ali na frente, naquela curva, haverá uma rosa orvalhada. Será que chego lá? Perdida de amor, pergunto: Deus, por que fizestes tudo isso, assim, sem ao menos nos avisar?

        Sabe quando a visita já acabou? Despedimo-nos e paramos um pouco ali fora, na rua? Aquele restinho de conversa não é sempre o melhor? Melhor e mais profundo do que tudo o que foi dito lá na sala.

        Ocê caiu nos braços de Morfeia e eu, que não sou besta nem nada, de Morfeu. Meu! Eita deus dos bão! Ele vem alisano a gente, fazeno uns cafuné, começa lá pelos pé. Né? Aí, vai subino, subino e quando a gente vê, a gente tá durmino!...

        Uma vez, quando a manhã se abria, me fechei. Foi das piores coisas que fiz na minha vida. O coração não pode se fechar. Nunca. Nem um dia sequer. Não é verdade, meu anjo?

 

Se o amor chegar...

 

Marisa Bueloni

   Se o amor chegar, devo dar bom dia? Perguntar como vai? Como nos comportar na iminência do amor bater à nossa porta? Abro, peço que entre e mando sentar? O que vestir para receber o amor que chega sem avisar? E a emoção seria diferente se ele avisasse? O amor nos enche de perguntas.

    Ninguém gosta de receber visita inesperada. Podemos ser pegos de surpresa e estarmos com a tal roupa de ficar em casa, aqui já cantada em prosa e verso. Uma vez, fui visitar uma pessoa e toquei a campainha. Ela estava com os chamados “bobes” na cabeça, tudo enroladinho. Entreabriu a porta, meio que se escondendo, e sumiu. Reapareceu gloriosa. Foi tirar aquilo e escovar os cabelos.

    Como havia intimidade entre nós, ela poderia ter me atendido como estava, eu não iria reparar, imagine só. Mas aí entra uma coisa chamada “vaidade”. E todos nós queremos ser pegos arrumados, bonitos, apresentáveis.

    Será que o amor me pegará arrumada, bonita e apresentável? Não sei. Terá o amor um jeito pessoal de se fazer anunciar? Dona Marisa, tem um ser aqui na portaria perguntando se a senhora pode recebê-lo. Quem é? Ele disse que é o amor. Pode autorizar a entrada.

    E aí, o amor chega. Devo reconhecê-lo de pronto, pois é alguém de meu conhecimento, o maior e o mais belo de todos os amigos. Gêmeo do coração, vizinho íntimo da alma, dono do corpo e dos sentidos. Beleza infinita que até hoje ninguém conseguiu explicar. Sim, transcende a tudo o mais, tem permissão para invadir a casa, o coração, e proporcionar noites em claro.

    Amor é coisa séria, profunda demais e, se merecer privar de nossa intimidade, seja recebido com honras, com uma mesa farta de iguarias regadas a promessas. Aquelas que fazemos com um olhar 43, no momento mais afetuoso da nossa vida.

    Se o amor chegar, quero recebê-lo com um buquê de flores do campo, ou um ramalhete de rosas. Entra, amor. A casa é sua. Visto uma roupa de festa. Ou um juvenil vestido de organdi cor-de-rosa, com um laço atrás, que vai esvoaçando enquanto se anda. Ou melhor, se dança.

    Sim, o amor terá de dançar e cantar o mais sublime dos cânticos, hino de graças. Porque não há graça maior que a presença do amor.  “Detiene a los peregrinos / Libera a los prisioneros... El amor com sus esmeros/ al viejo lo vuelve niño... Se va enredando / enredando / como en el muro la hiedra / y va brotando / brotando/ como el musguito en la piedra”. Versos que Mercedes Sosa cantou até morrer.

    Quero cantar o amor até morrer. E estar saudável ao cruzar com ele. Se o amor chegar, quero saber. Mulher curiosa, atenta, adivinhando a sua luz. Brilhe o amor e ilumine este mundo em trevas. Quem mais, senão o amor poderá ensinar o caminho de volta? É bom ir, mas é melhor voltar.

    Amar é como voltar para casa, depois da viagem. A nossa cama, o nosso quarto, nossa cozinha, a roupa a ser lavada. O sol brilhando e lá fora um varal de sonhos. Deus sabe como encantar nossa existência terrena. Por isso, meu Deus, se o amor chegar...

 

No meu governo

 

Marisa Bueloni

   No meu governo, eu, e mais ninguém, posso dizer que as coisas se passaram dentro da mais absoluta normalidade. Tudo transcorreu de forma transparente e nós, jamais, por mais que digam o contrário, fizemos algo que, veja bem, fosse contra os princípios da democracia.

    No meu governo, posso dizer, e devo dizer à nação, sempre houve perseguições. Fomos e somos perseguidos. Se os senhores pensam que foi fácil chegar até onde cheguei, estão errados.

    Nunca, no meu governo, nem neste e nem nos anteriores do meu companheiro Lula, fizemos algo que justifique esta barbárie que estão cometendo contra nós. É golpe, sim. Eu nada fiz para merecer tamanha injustiça.

    No meu governo, eu pedalei todas as manhãs ali nas proximidades do Palácio onde resido, porque no meu governo andar de bicicleta me fez muito bem. Até porque, vocês sabem, é um exercício muito saudável pedalar.

    Mas, no meu governo, sou acusada de outras pedaladas, as fiscais, coisa que repudio com total veemência. Total veemência. Nunca no meu governo houve as tais pedaladas que eles dizem que ocorreram. Eu desafio a quem quer que seja, provar que elas existiram.

    No meu governo, as políticas sociais foram implantadas e agora, admito, por intriga da oposição, não tenho mais dinheiro para manter os programas sociais criados no meu governo. Pronatec, Minha casa minha vida, Fies, Bolsa Família e tantos outros, eu vou deixar para o próximo governo.

    No meu governo, tudo foi feito para que até o vento pudesse ser estocado e aproveitado. Tal como o presidente Lula facilmente teria resolvido o problema do aquecimento global, se a Terra fosse quadrada, eu também teria, hoje, no meu governo, um bom estoque de vento para que a energia não faltasse em nosso país.

    Antigamente, os índios, a fauna e a flora morriam por falta de assistência técnica, mas no meu governo isso foi resolvido. Foi solucionado, a partir de uma política que, além de manter os nossos programas mais prioritários, deu a todos mais esperança com nossa assistência técnica altamente especializada.

    No meu governo, surgiu uma mulher sapiens, a mãe, aquela que, sendo mãe, é mulher. Porque a mulher não é homem. Mas é a mulher, e não o homem, que dá à luz e provê o seu lar. Não, não é o homem. É a mulher, e eu digo, porque se eu não disser, vão dizer que eu não disse. Então, está dito.

    Mais uma coisa. No meu governo, a Petrobras sempre foi respeitada. Repito: respeitada. Nunca houve desvio de dinheiro, nem contratos irregulares, nada do que “eles” dizem. Eu quero esclarecer isso de uma vez por todas. Que fique claro que nós, no meu governo, tudo faremos para combater a corrupção.

    Portanto, no meu governo, posso dizer e repito aqui com toda ênfase, tudo correu às claras, ninguém maquiou contas para ganhar eleição. O que estão praticando contra mim fere o estado de direito e a democracia. Posso não estar muito ciente do que isso significa, mas repito porque ouço falar.

    É golpe, senhores. Golpe! Eles querem chegar ao poder puxando o meu tapete e eu não vou para debaixo dele. Eu vou passar com minha bicicleta por cima de qualquer tapete que apareça na minha frente. Repito: é golpe!

 

NÃO É NADA 

 

Marisa Bueloni

   Não é nada,
meu amor
só um pouco
de dor

Não é nada,
vai passar
quando eu for
me deitar

Não é nada,
por favor
só um leve
tremor

Não é nada,
um mau jeito
e um aperto
no peito

Não é nada,
amanhã
eu levanto
boa e sã

Mas se o dia
raiar
e eu não
acordar

Seja lá
como for
não foi nada,
meu amor...

 

Declaração

 

Marisa Bueloni

   Alguns dizem "eu te amo"

assim a esmo

comendo salame, queijo, torresmo

e virando um copo de cerveja

 

Alguns dizem "eu te amo"

de qualquer jeito

como se arrotassem

como se não guardassem

o menor respeito

 

Alguns dizem "eu te amo"

lendo jornal

fazendo bolo, consertando o varal

como se o amor fosse uma pedra bruta

da qual se extrai uma rima fajuta

sem brilho e sem valor

 

Mas eu não, meu amor

 

Eu não sei dizer "eu te amo"

assim a esmo

- é que eu te amo

eu te amo mesmo

 

E ainda não pude dizê-lo

ao infinito

- a única forma digna e bela

de ser dito

 

E nesta infinitude

fiz o que pude

mas não disse "eu te amo"

diariamente?

 

Peço perdão, há uma razão

e é forte o apelo:

(devo dizê-lo?)

- é que eu te amo,

te amo desesperadamente

 

Pausa necessária

 

Marisa Bueloni

   Por alguns momentos, a vida exige a parada necessária. Estrelas conspiram à vista de um noivo cíclico que fecunda os céus com seu brilho de cometa. Paro para procurar na noite o astro luminoso. Paro para rezar o Pai-Nosso e a Ave-Maria. Quantas vezes paramos para ouvir nosso próprio coração? 

    Paramos para descansar nossas costas depois de um trabalho estafante, detemo-nos nas subidas mais íngremes. E as paradas forçadas, o repouso por recomendação médica? Ninguém gosta de observá-los, sobretudo quando se é dinâmico, com muitos sonhos fervilhando na alma. Pedimos ao corpo para estar de pé todos os dias, selamos um pacto com o Criador e fazemos a nossa parte, religiosamente, esperando que Ele cumpra a Sua.

    Às vezes, vamos até a porta para receber a graça que não veio e também para agradecer a que chegou sem que esperássemos. Não queiramos jamais decifrar os desígnios divinos. São caminhos muito diferentes dos nossos e haveremos de aceitar tais situações, pois Deus trabalha com o conhecimento pleno de nossas vidas. Sem passado ou futuro, num eterno presente.

    Aqui e ali, paramos. Para acolher a manhã que desponta suave, prenunciando tons invernais. Ela vem carregada de bons frutos, outono de graças. A abundância e a riqueza da vida nos obrigam a parar. Louvor à glória de toda coisa criada sobre a Terra, à beleza das noites estreladas, dos rios e mares, da natureza e dos bichos, do trabalho e do pão.

    Parar para comer um pedaço de pão. Eu paro. Não perco, por nada, este “agora” abençoado. O pão que mata a nossa fome acaba, mas há o outro Pão, aquele que alimenta, dá vida e nos ensina a amar. Amar e perdoar. Não se conhece atitude mais bela, mais generosa e mais humana.

    Parar para a contemplação pura e simples, deixando-se tocar pelo invisível aos olhos, profetizando em silêncio, e guardando para si o que o espírito captou nas paradas concedidas às almas que buscam a Deus sem cessar.

    Há o momento certo da paragem, creio eu, para a profunda reflexão. Não podemos nos entregar ao turbilhão que se alastra à nossa volta, sem raciocinar sobre o que está acontecendo de momento a momento. Tudo é importante, tudo tem seu peso e seu valor. Um pensamento, um abraço, um gesto decidido, o desfecho do que pôde ser bem realizado. Tudo está na tela eterna do universo.

    Nas muitas esquinas e cruzamentos do nosso coração há faróis apontando o caminho. Um deles está sempre na cor verde, a passagem é livre, o acesso é de graça. Talvez seja necessário pagar um pedágio que é refletir profundamente para seguir adiante.

    Prosseguir ou parar. Eis a questão. Até onde posso ir, quando há sinais avisando o perigo à frente? De onde virá a sabedoria mais bela para o devido discernimento? Se a ousadia da coragem pode nos oferecer o céu na terra, é decisão nossa continuar, mesmo sabendo dos riscos.

    Que saibamos compreender a gênese desta pausa que cura e salva. Este momento abençoado de erguer nossos olhos para o alto e receber o entendimento pleno da vida.

    No momento, estou parada, esperando o amor!...

 

 

Eu voto sim!

 

Marisa Bueloni

   Pela beleza nossa de cada dia, eu voto sim. Voto sim pela permanência absoluta do que é belo, do que é justo, do que é do direito de cada um. Voto sim, pela ruptura com toda sorte de violência, injustiça e corrupção. Voto sim pela honra, pela decência, pela legitimidade de todas as nossas instituições democráticas e pela dignidade da nação brasileira.

    Meu voto é sim, caros companheiros de jornada. Sim, pela lisura no trato da coisa pública. Sim, por hospitais funcionando e gente sendo atendida como gente. Voto sim, pela luta de cada dia. Voto sim, pela vida do trabalhador brasileiro, este cidadão que nos honra com sua coragem e persistência.

    Voto sim, pelo pão nosso de cada dia, um pão cada vez mais caro, por conta de uma política econômica que naufragou ao longo de mensalões e petrolões vergonhosos, que espoliaram o país, de norte a sul. Voto sim, pela melhoria na qualidade de vida dos cidadãos brasileiros, por melhores salários, sobretudo para os professores. Sim, pelas nossas escolas e por uma educação que justifique o nome de “pátria educadora”.

    Senhor presidente, ainda que Vossa Excelência seja um gângster, o povo brasileiro não o é. Meu voto é sim por um Congresso menos corrupto ou menos corrompido, seja qual for o duplo particípio desta praga que assola o nosso Brasil.

    Voto sim, por esta bela terra tropical,  subtraída em tenebrosas transações, nas antigas palavras de um lindo ídolo. Ele deixou confusos os seus fãs, eleitores e pessoas comuns como eu, que já fui apaixonada por ele. Pensei até numa campanha do tipo “Pensa melhor, Chico”, mas há irreversibilidades ideológicas com as quais é melhor não mexer.

    Voto sim, por esta nação. Talvez, em toda a história da República, nunca tantos se locupletaram tanto. Nunca houve tamanho descalabro e mentira, tal a farsa montada para iludir um povo inocente. Em meio à massa de manobra, três nobres juristas se elevaram perante a lei. E eu voto sim por eles, senhor presidente.

    Voto sim, pela minha casa, pela minha família, filhas e netos. Voto sim, pela família brasileira, pelo lar de cada cidadão, rico ou pobre, por todos eles, eu voto sim. Pelos nossos amados que já partiram e não estão aqui para ver tanta roubalheira e vergonha nacional.

    Senhor presidente, eu voto sim pela reforma política, tributária, e fiscal. Pelo fim do foro privilegiado e pela reforma ministerial. Pela mudança na carga tributária que o povo esmagado paga sem reclamar.

    Voto sim, pelo fim das queimadas de cana, pelo fim da poluição de nossos rios e mares, voto sim pela preservação do meio ambiente. Tenho tanto voto a dar. Voto sim, pela honestidade nas contas públicas, pela volta da confiança nos que governam o país. Sim, pela justiça e pela paz.

    Senhor presidente, dou o meu sim final para a gentileza, a delicadeza, para o respeito, a cidadania e a ética.

    Voto sim, caro leitor, por um lugar de mato verde, pra plantar e pra colher. Sim, pela casinha branca com varanda, um quintal e uma janela, para ver o sol nascer...

 

APTIDÃO PARA O SONHO

 

Marisa Bueloni

   Creio que nascemos todos aptos para sonhar. Trata-se de uma aptidão genética, natural, ancestral. Fomos todos abençoados com esta herança, uns mais outros menos. Aliás, como em tudo na vida. Meu pai sempre dizia assim: “sabe como é, uns mais; outros menos”.

    Isso explica porque alguns nascem com dons especiais seja para a música, para números e cálculos, para prodígios de encher os olhos, enfim, com pendores impossíveis para a maioria dos mortais. Há no mundo uma casta privilegiada de pessoas, as que sobem num palco e extasiam multidões.

    Um dia, quando mocinha e alguma vocação musical, pisei num palco. Cantei num daqueles festivais de música da cidade. A experiência foi enriquecedora, claro, e quem sabe teria levado a sério uma possível carreira de cantora. Um sonho?

    Alguns sonhos ficam no passado e é bom que lá estejam para serem lembrados com saudade, com alegria e também com tristeza, com toda a dor de um sonho deixado para trás. O sonho me envolveu muito cedo. Digo que sou movida a sonho. Sem ele, não sei se teria suportado alguns pedaços duros da vida, quando enfrentei minhas muitas cirurgias e dores físicas.

    Desde pequena, a contemplação diária do céu por horas a fio. A menina no balanço de corda, a menina sentada no muro do quintal, regendo a Terra e seus humores. Espiar o belo céu das noites invernais. Ali estava toda a minha salvação. Algo profundo iria acontecer, eu tinha certeza. Sonhar era o ato mais legítimo, mais puro e arrebatador.

    Da meninice, passa-se para a vida adulta num piscar de olhos. Do namoro ao casamento. Filhos. A idade madura chega e tenta-se realizar o sonho de morar no campo. Nove anos longe da cidade e o contato diário com a natureza me fizeram mais sensível e mais atenta.

     Sonho é abstração, é tocar o infinito universo da fantasia, da imaginação, a força extraordinária do pensamento nos permitindo penetrar no reino das coisas belas. Cada movimento nos pertence neste exercício de saga, heroísmo e doçura.

    O sonho é a viagem da alma. Trajeto percorrido pelos anjos. Há alguns deles à nossa volta, convivendo bem de perto conosco. É preciso aguçar a vista e prestar atenção. Não possuem asas, nem são gigantes. São de estatura normal e surgem na nossa vida para nos ajudar ou nos fazer felizes no tempo necessário e exato.

    Há anjos de todo tipo na viagem do sonho. Há os consoladores, em cujos ombros nos achegamos para chorar a dor de viver, a mágoa do coração, o sofrimento e a luta. Possamos cada um de nós ser para o outro esse anjo consolador e oferecer nossa poção de alívio e de paz.

    Aptidão para o sonho. Eis um título para a crônica do cotidiano, despretensiosa e humilde. Palavras para enfeitar nosso dia, a saída de carro, a ida até o médico, a compra na padaria, vendo pessoas andando apressadas e a vontade de perguntar: para onde vão todos?

    Estão a caminho do sonho. Com o peito cheio de fé e esperança, buscam a felicidade, o destino secreto de toda alma. E sonham. Aptos para sonhar...

 

Gripe Lava Jato

 

Marisa Bueloni

   Peguei. Sim, peguei a tal “Lava Jato”. Creio que não foi dengue, nem a febre Chikungunya, e nem o Zika Vírus. Acho também que não foi a H1N1 – a gripe da moda, da qual se fala tanto e que devemos temer, com toda razão.

    Duas semanas “de molho”, tive a sorte de ouvir um especialista em gripes falando na tevê. Ele dizia que é preciso diferenciar bem o tipo de doença que nos acomete. Ou seja, um resfriado comum, todos nós pegamos, de 2 a 3 vezes no ano. A gripe comum (H3N2) já tem um quadro um pouco diferente do resfriado. Causa febre, dor de cabeça, dores no corpo, pode inflamar a garganta, apresentar tosse e intolerância à luminosidade (fotofobia). Esta é a nossa velha conhecida de outros carnavais e com ela temos intimidade suficiente até para tratá-la e curti-la, sem necessidade de ajuda médica. Ingerir muito líquido, vitamina C, repouso e os comprimidos de praxe.

    Mas essa gripe H1N1 exige mais cuidados e, se a pessoa julgar que sente algo além da tal gripinha nossa de cada ano, deve procurar um médico. Fiquei observando atentamente a minha e uma amiga querida me sossegou, pois todo mundo está pegando mesmo, é a tal “Gripe Lava Jato”.

    Como em quase todos os meus estados gripais, tenho calafrios pavorosos. Desde que me conheço por gente, é assim, embora este ano tenha sido mais brando. Em geral, entro num estado de torpor existencial e me pergunto quem sou, de onde vim e para onde vou. A gripe me leva a questões profundamente metafísicas. É alucinante.

    Creio que a gripe “Lava Jato” é a mesma que se costuma pegar já no outono, ou na entrada do inverno, todos os anos. Começa pela garganta e aí vai evoluindo para os demais estados que o vírus nos faz conhecer na palma da mão.

    Gripada, o apetite some. Às vezes, o paladar também. Mastigamos um alimento sem sabor, não sentimos o gosto de nada. Que sensação horrível. Aos poucos, isso passa e voltamos a ter de volta a função das nossas papilas gustativas.

    Uma vez, tive uma gripe que me derrubou, literalmente. Dias de cama. Febrão e visões do infinito, os planetas girando no espaço sem fim. Cosmo gripal. Doíam os meus dentes, doía a raiz dos cabelos e o globo ocular. Falar doía. Pensar doía.

    Quando sarei desta gripe, lembro-me de sentir vontade de sair à rua, ver o sol lá fora, as pessoas, a luz bendita! Eu me cumprimentava por ter sobrevivido, por estar junto da família amada. Passava as mãos nas paredes da casa, tentando entender o que havia acontecido comigo por uns 4 ou 5 dias... E quando sarei de vez, pedi ao Senhor que nunca mais permitisse “aquilo”.

    “Aquilo” foi terrível, assustador, medonho. Sim, senti medo. Era tanta fraqueza, tantas as dores de cabeça e nas articulações, que eu passava o dia na cama, sem coragem de me levantar. Fui ao médico, claro, pois uma tosse cavernosa me convulsionava a alma. Os remédios me dopavam, a ponto de cair num sono profundo.

    Acho que aquela foi a gripe “Diretas Já”, se não me falha a memória. Mas esta da “Lava Jato” não fica atrás. E boa gripe para você, caro leitor. Sare logo!

 

Roupa de ficar em casa

 

Marisa Bueloni

   Uma vez, descrevi num texto a maneira zelosa com que guardo minhas coisas nos armários, as toalhas de mesa nas gavetas do móvel que compõe a sala de jantar, e devo ter narrado com tal encanto, a ponto de uma leitora mandar um e-mail, manifestando seu desejo de vir conhecer minha casa e meus armários. Fiquei muito, muito feliz!

    Entendi como um elogio ao meu texto e ao meu senso de organização. Não sou maníaca com limpeza e perfeição doméstica, apenas conservo tudo em ordem, cada coisa no seu lugar, tudo limpo e organizado. Mas nada patológico, em vias de ficar doente com isso.

    Para começar, resido num recanto muito gracioso e quem vem me visitar diz que moro “numa casinha de boneca”. Tenho meu lar na palma da mão, a medida exata para o que preciso e nada mais. O lugar onde vivo é aconchegante por natureza, um pequeno condomínio fechado de duas ruas apenas: Rua Um e Rua Dois. O local é cercado por intensa área verde que não pode ser derrubada, pois é de proteção ambiental. Aqui pertinho fica a sede da Sedema, a Secretaria de Defesa do Meio Ambiente.

    Estou bem onde estou, mas alimento o velho sonho de morar perto da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, a querida Igreja dos Frades, em cujos arredores passei a infância. As imobiliárias apregoam: “Nós realizamos o seu sonho”. Outro dia, falei disso com uma delas e perguntei se me ajudariam a realizá-lo. A corretora riu.

    Morando em condomínio fechado, ficamos muito à vontade dentro de casa e pouco se atende à campainha. As visitas têm de passar pela portaria e somos avisados pelo porteiro. Assim, nos arrumamos caso apareça alguém no meio da tarde. E então, some rapidamente aquela velha bermuda jeans desfiada na perna; a sandália de plástico, amiga de tantas jornadas e a camiseta surrada que é quase um membro do nosso corpo.

    É a roupa de ficar em casa. Quem não tem? Eu tenho e cuido com imenso carinho desta preciosidade. Ah, os dias em que só Deus sabe o que se passa no nosso coração!... O velho moletom nas noites frias para ver tevê; a blusa amada, de décadas, comprada em Campos do Jordão; o cachecol que um dia foi novo e a meias de lã que sobem até os joelhos. São doçuras da vida para os sobreviventes das lutas emocionantes.

    De vez em quando, uma peça some entre as gavetas da cômoda. É uma odisseia para achá-la, questão de vida ou morte! Empenho-me de forma quase irracional nesta doce e amarga tarefa de procurar. Onde foi parar a bendita camiseta larga e longa, paixão eterna? Não sossego até encontrá-la e, quando avisto seus arabescos desbotados em meio aos pijamas de frio, um alívio humilde percorre meu superado desespero.

    Ei-la! A camiseta de ficar em casa, de vestir depois do banho, sempre perfumada e macia. É   graça tanta que não tem preço nem nunca terá. São nossos guardados, nossos pertences, ricos ou não, valiosos ou comuns, mas que preenchem nossa alma como um caminhão de sonhos!

    Moça, é aí que realizam sonhos?...

 

Quando o outono chegar

 

Marisa Bueloni

   O outono chegou e uma brisa suave toca a pele de todas as coisas e criaturas. Penso que a mão de Deus está suspensa, parada, entre o céu e a terra, intermediando profecias e presságios. O braço do Criador deseja batizar o mundo com Sua graça, derramando sobre a humanidade bênçãos do fogo purificador. Por enquanto, as chuvas torrenciais e a água lavam o visgo das cidades e das ruas.

    Quero cantar para a beleza deste tempo, apesar das algaravias. Não é a primeira vez que irei celebrar as manhãs de puro ouro, as tardes de abril, quando a ordem é apenas sonhar. Ó céu outonal, que cai sobre nós como o manto sagrado do Homem que morreu na cruz!

    Uma multiplicidade de dons canta louvores em toda parte, de forma inaudível. É no silêncio que se ouve o cântico sublime, na quietude é que se processam inúmeras bendições. Enlevada por esta graça, faço a oferenda de cada parte do que vivo e conheço.

    A vida é o altar de todas as ofertas. Esperas incansáveis, um infinito de sinais e mistérios. Envolvidos pela densa camada de sonhos, vamos adiante, sem nos dar conta da beleza que nos espia em cada canto. Quantos conseguem sentir a pressão deste encantamento? Um raio de luz cai à nossa direita e uma batalha de rosas é travada ao nosso redor.

    Sou parte de um exército. Alistei-me há muitos anos e nele permaneço como a última, do último pelotão. Venho capengando, cansada, rota, o coração esmagado, mas venho. Em marcha contínua, ao som de trombetas. Meu estandarte é o Sagrado Coração de Jesus, ao qual me devoto desde menina.

    Ao longo da marcha vejo sentinelas, gente atenta, com um terço na mão. Os que vigiam em suas portas e casas esperam com fé. Contam apenas com a esperança, mas pressentem a bela epifania e por causa dela construíram uma vida de profunda comunhão com Deus. Alguns deixaram tudo para trás, depois de ouvir o santo chamado em suas almas.

    Uma nova estação nos brinda com suas manhãs orvalhadas de luz e suas noites mansas. Não saberia saudar o outono de outra forma. Sonhei vê-lo de alguma varanda ensolarada, de algum alpendre florido e, enquanto o sonho não se realiza, gravo verdes distâncias em minhas retinas.

    Teria muito a dizer. Sobretudo do orgulho dos nossos ilustres magistrados, dos juízes independentes que souberam agir no momento certo, impedindo que uma afronta política das mais espúrias se realizasse perante o povo e a nação. Houve até assinatura da posse, mas posse não houve. “Alto lá!” – bradou o juiz Itagiba Catta Preta Neto, a quem fico devendo um poema até por conta deste nome belo e sonoro.

    Haveria tanto a comentar e a refletir neste momento de grave crise política. Ouvimos áudios estarrecedores, os palavrões e o linguajar chulo de pretensos líderes; conhecemos o “lado B” de personalidades políticas, a maneira como se referem aos pobres para os quais dizem governar.

    A Páscoa recente nos traga a luz que dissipa as trevas e que ela simbolize o renascer da nossa nação.

 

A poesia do cotidiano

 

Marisa Bueloni

   Haverá poesia no nosso dia-a-dia repetitivo e sem grandes atrações? Penso que sim. Basta procurar pelas palavras: ela está lá. A palavra exprime a poesia que vive debaixo de todas as coisas.

    As palavras aparecem, às vezes, de modo inesperado. Algumas surgem de necessárias aglutinações que lhes dão sentido e brilho. Muitas se formam pela força de neologismos inevitáveis. Outras pertencem ao momento histórico onde atuam. E há as palavras decorrentes da própria realidade onde foram geradas, completando o sinônimo da nossa absoluta perplexidade.

    Algumas palavras contêm o estado da latência e da potencialidade. Existem, são escritas e pronunciadas, passíveis de aplicação e uso, mas escondem-se de si mesmas, pois pertencem ao campo da abstração e do pensamento. E há as palavras que são do gênero da crueza e da morbidez, mantendo suas características e significados, quase sempre dolorosos.

    Pronto, há de tudo no reino das palavras. E quem o penetrar encontrará um universo fascinante e perturbador. Um poema se escreve com palavras, mas existe uma poesia oculta em cada minuto do nosso dia, da nossa vida. Muitos fazem de suas vidas um poema, como a idosa senhora de uma foto que corre a internet: ela veste um gracioso avental e pinta flores nas paredes externas de sua residência.

    Haverá poesia maior que a de sentar-se num degrau, munido de pincéis e tintas para desenhar flores na fachada da casa? Ah, quanto amor devota ao seu lar esta senhora avançada em anos, florindo uma paisagem que também é moradia. Que doce e delicada poesia não brotará de suas mãos, ao colorir o branco que subsiste sobre tijolos?

    Fiquei por longos minutos olhando a foto, para captar esta poesia que está não sei aonde, que vem de algum lugar no tempo e no espaço e abrange tudo o que nos comove por inteiro. É a poesia do cotidiano, que vai além das palavras e não se exprime por nenhum vocábulo, sempre pronto a ser descoberto.

    Trata-se de uma beleza que passa despercebida, quando andamos absortos e preocupados com nossas parcelas, mensalidades e compromissos. Haverá poesia na dívida de viver? Façamos de conta que sim. Que o poema transcende os boletos mensais e a fila do banco é uma passarela para nosso coração. As pessoas a nossa volta são atores de alguma encenação onde se canta e se diz versos de amor.

    Não. Ninguém pensa nisso indo ao banco, dirá o leitor. Lá não é nem um pouco o local apropriado para tais fantasias. Concordo que não. E tento burlar a regra do bom senso para afirmar que é possível extrair poesia de onde menos se espera.

    Tudo está dentro do nosso coração. Até mesmo o cotidiano apático a ser enfrentado pode passar por algum tipo de avivamento, se a alma estiver disposta a sonhar. Tudo está dentro de nós, incluindo a poesia que nos ajuda a ser felizes, não obstante as tragédias perto ou longe.

    A poesia sobrevive, apesar de nós. Não há cenário que a contrarie. Ela vive por si mesma, tomemos conhecimento dela ou não. Que eu não perca, ó Deus, a sagrada poesia do cotidiano!...

 

Madre Tereza e a noite escura

 

Marisa Bueloni

   Hoje, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, presto minha homenagem a uma alma feminina que encantou o mundo.

    Madre Tereza de Calcutá sentia a escuridão, o frio e o vazio dentro de si. Nada tocava a sua alma. Foi assim que a madre se manifestou nas cartas a um padre confessor. Durante 50 anos, ela carregou a sua cruz, a sensação sufocante de nada encontrar no fundo do coração. Madre Teresa faleceu em 1997 e, dez anos depois da sua morte, surgiu a revelação de que viveu o tormento íntimo das dúvidas – até mesmo da  existência de Deus. 

    Quando li São João da Cruz, compreendi o significado da “noite escura” à qual o santo se referia, a travessia que a alma faz em meio ao pântano espiritual. Um caminho de aridez, de silêncios insuportáveis no espírito, onde não se ouve uma única resposta de Deus.

    Talvez se possa usar a “noite escura” da alma como uma espécie de valor para graduar o nível de santidade? Quanto mais medonho o caminho a percorrer, quanto mais lúgubre o dia atroz, mais perto de Deus se está? Mais santo se é? Não sei. Estou apenas tentando compreender os caminhos de Deus na trajetória de uma alma. Sobretudo numa alma feita de amor, como a de Madre Tereza.

     Uma vez, li um texto que tratava da solidão, companheira segura da nossa jornada terrena. Começamos a vida no escuro do útero e vamos prosseguir sozinhos, desprotegidos, dependendo dos cuidados dos nossos pais. Mas nos desenvolvemos na luta solitária. O esforço para sobreviver é individual. Se vamos engordar e criar músculos, está no nosso mapa genético.  Tentaremos ficar de pé, andar, correr do papai para a mamãe, mas somos nós que temos de dar estes primeiros passos.

Faremos amigos ao longo da vida, porém nos momentos mais cruciais estaremos sozinhos. As decisões mais difíceis são tomadas com nossa consciência, na fragilidade da nossa solidão. Casamo-nos, temos filhos, mas não deixamos de vagar feito uma pessoa sozinha no mundo. Temos com quem contar, mas, em geral, é conosco mesmo que contamos, sobretudo nos momentos de dor e, muitas vezes, dor física.

    Então, o texto concluía que passamos a vida na solidão e que ninguém vai atravessar por nós o período mais duro. Não precisamos de elucidações, não estamos em busca de nenhuma luz, porque a noite é funda, e nossa inteligência nos diz que é preciso atravessar este vale de lágrimas em silêncio.

    Não gosto, é claro, desta teoria. Não quero apostar na condenação de sofrer sozinhos, pois então é aumentar em muito o grau do sofrimento. Acredito na solidariedade e no amor das pessoas. Aquele amor de um amigo íntimo e verdadeiro. O amor de um pai, de uma filha, de um irmão de sangue, de uma pessoa da família que nos ama e nos abraçará com seu calor humano. Creio na amizade, no afeto, no gesto sincero de quem nos estende a mão. Creio na esperança.

    É este amor que busco dentro de minha alma. Um amor maior que a dor, uma fé que ultrapasse toda tribulação. Fé que se alia à capacidade de sonhar, aptidão genética, natural, ancestral. O sonho pode superar os terrores da noite escura. Madre Tereza, amando, os superou.

 

O valor do respeito

 

Marisa Bueloni

   Se há algo nesta vida que considero de extremo valor é o respeito. Respeito por tudo e por todos, pela pessoa humana, respeito pela natureza, por toda forma de vida, respeito em agradecimento aos dons que nos cercam e que nos são preciosos.

    Frutos doces brotam da consideração com o próximo ou com determinadas situações. Incluo nesta lista de bons modos uma atitude humana apreciável: a caridade. Uns pensam que caridade é dar esmolas. Caridade é uma virtude que nos faz pensar no bem do outro, levando a uma reflexão profunda acerca do amor, da dignidade humana e até da frenagem da nossa língua.

    Caridade, solidariedade e alguns outros princípios fundamentais no trato com o outro são valores quase em extinção. Vivemos na era do individualismo, cada um por si, lutando pelo seu espaço neste mundo como se nele não coubesse mais ninguém. Às vezes, a falta de um projeto de vida mais consistente joga as pessoas numa situação de permanente disputa com o próximo, a ponto de muitos viverem medindo forças numa insana batalha de egos e de posição social.

    Se há algo que me exaspera é a falta de gentileza, de delicadeza. Minha mãe era uma pessoa simples, mas delicadamente sensível, e seu maior legado é uma das mais bondosas lições de vida: ter sempre uma palavra afetuosa para todos. Jamais desprezar ou humilhar alguém e sim animar, apoiar, fazendo elogios. Conforme dizia, isso faz um enorme bem à pessoa.

    Na autenticidade de suas atitudes, ela foi alguém coerente, pois praticava intensamente o que dizia e pensava. Se alguém lhe contava um problema, suas palavras eram de puro ânimo e coragem. Desde a infância, convivi com esta sabedoria materna e ainda tento copiar este edificante exemplo.

    Minha mãe é referência para mim em tudo na vida. Ela foi ativamente solidária, caridosa, amorosa e humana. Tento seguir seus passos e nem sempre é possível. Às vezes, as situações a que somos submetidos exigem uma dureza e uma firmeza desconhecidas até para nós mesmos.

    Recentemente, vivi uma situação em que me senti profundamente desrespeitada, como ser humano, como pessoa e como mulher. Chego a pensar que as viúvas ficam muito vulneráveis... E que se tivéssemos um homem do lado, alguns pensariam duas vezes antes de ter conosco uma conversa infeliz.

    Em plena Quaresma, a imperiosa necessidade do desabafo. E de responder, de alguma forma, àquele acinte, àquela afronta constrangedora. Fiz o que julguei correto, apesar das lágrimas.

    O mundo carece de gentilezas, repito. São raros os atos de bondade, os gestos que nos surpreendam pela beleza, e as palavras nobres, transparecendo a grandeza dos corações.

Presenciamos hoje uma tendência à grosseria, à rispidez, à falta de educação e atenção também para com os mais humildes e mais simples. Vemos isso em locais de atendimento público, nas filas de diferentes modalidades, nos lugares onde deveria haver dedicação e empenho.

    Enquanto o respeito escasseia à nossa volta, façamos o seguinte: respondamos com séria decisão às ofensas, guardando para elas um buquê de rosas, ocultas em nosso coração. E que Deus nos ajude a perdoar.

 

O som do universo

 

Marisa Bueloni

   Mais uma descoberta na astronomia: poderemos, em breve, ouvir o som do universo, suas ondas gravitacionais, colisões de buracos negros, quem sabe o nascer e o apagar das estrelas, o rumor e o fragor de tudo o que está em algum lugar no espaço-tempo.

    Ah, o céu que nos protege! Além de um vagido de astros, penso que haveria a descoberta de um movimento novo, um pentagrama cósmico onde se lê a música do tempo. Seria como sentir o frêmito da vida em seu primeiro momento divino, a luz nascitura, a primitiva fonte do ato criador.

    Frente aos mistérios da Criação, caio das alturas e números descomunais para pousar no chão de cada dia, solo onde estou vivendo, respirando, amando, errando e aprendendo, para entender a razão de estarmos aqui.

    Reverberando por cadeias de ondas e demais elementos que compõem o vasto universo, este som pode ser sublimado até se transportar para dentro de um coração humano. Então, sim, haverá uma bela explosão sonora.

    Enquanto este som permanecer distante de nós, ouvido sabe-se lá por que tipo de mecanismo ou equipamento, talvez não nos emocione. Mas se for captado por nosso peito pequenino, este que pode ser um ínfimo fragmento das gêneses nebulosas e intocáveis, teremos uma nova teoria da Criação!

    E que som é este de quando a noite toca o fim do dia? Ouço sempre um fragor de embates celestiais qual um ruflar de asas, sons de voos e de longas vestes contra um paredão de vento. Profecias me reportam a anjos justiceiros e suas taças prestes a serem derramadas sobre a Terra.

    Esta explicação apocalíptica me fascina desde  sempre. Que virão anjos, precedendo o desfile das cenas terríveis e absurdamente fantásticas para a visão do homem terreno. Consta que muitas pessoas têm sonhos com estes eventos. Também já sonhei e me vi em situações de ficção científica, as brasas sob os meus pés, pulando desesperadamente de pedra em pedra, de tábua em tábua, que surgiam de forma mágica, permitindo-me atravessar um mar de fogo a minha volta.

    Em meio ao desespero de salvar o corpo, havia um som. Som de trombetas que não cessavam de tocar. Este toque sonoro impulsionava à marcha, à corrida, à busca de um lugar seguro. Todos corriam. Para onde? Era quando o sonho acabava.

    O sonho era acompanhado por uma trilha sonora de puro suspense e medo. Só nos restava correr, correr. E pular os obstáculos fumegantes, os pedaços ressecados de uma massa negra e estranha que escorria por toda parte.

    “De todos os terrores me livrou o Senhor Deus”, diz o salmista. Quando a luz do sol invade o quarto, o sonho noturno se apresenta tão vívido e horrendo. Durante todo o tempo, a lembrança onírica inquieta, perturba, incomoda.

    Até que outros sons domésticos imperem nas tarefas da casa. A vassoura varrendo as folhas da calçada; o alho e a cebola fritando na panela a delícia do alimento; a água escorrendo no ralo do tanque; o vento secando a roupa no varal e a música no rádio. Sons da vida que brotam por meio de nossas mãos. Sons de um universo belíssimo. E que me faz rezar de joelhos: “Obrigada, Senhor!”.

 

Como uma onda…

 

Marisa Bueloni

   Estamos na Quaresma, tempo de reflexão, mas peço licença para relembrar um pouco de outros carnavais. Não sou mais a foliona que fui um dia. Creio que a vida tem suas fases e, para mim, todas foram vividas com intensidade, alegria e bom senso. Até mesmo aquela fase maravilhosa dos bailes de Momo.

      Não quero me reportar aos “carnavais de antigamente”, num saudosismo comparativo. Contudo, não há como fugir às evidências de que muita coisa mudou, a começar pelo fim das marchinhas que se tocavam nos salões. Hoje, em algumas capitais, o evento carnavalesco deixou de ser romântico, virou um negócio e uma indústria lucrativa.

      Sou Colombina sem Pierrô. Sou máscara negra que cobre o rosto querendo matar a saudade. Sou mulata bossa nova, francesinha no salão e a menina doce de coco.  Atravessei o deserto do Saara, o sol queimando a minha cara. E se a canoa não virar, eu chego lá.

    Carnaval evoca imagens de um tempo vivido com a alma em chamas. Brinquei em muitos bailes quando jovem, até conhecer o meu lindo, que não gostava muito da festa. Ele ia mesmo por minha causa, mas depois de entrar no clima, eu é que tinha de tomar conta dele.

    A vida é feita de fases, dizia eu no início deste texto. A vida é bem a letra da música “Como uma onda”, de Lulu Santos e Nelson Motta. Sim, “nada do que foi será / de novo do jeito que já foi um dia”. Esta é uma frase matemática, da mais pura exatidão. Filosofia na qual me apóio para pensar a beleza dos anos que se passaram céleres.

    Impossível não visitar o passado, suas sombras encantadoras, a sépia emoldurada pelo afeto, memórias e saudades. Um dia, houve um Carnaval. E houve tantos outros carnavais no coração dos foliões que souberam brincar a vida.

    Penso que, para a maioria das pessoas, a caminhada terrena vai transcorrendo de forma não muito planejada. Alguns sonhos deixados para trás? Quem não deixou? Por mais que se planeje, os reveses surpreendem e mudam rumos. Aceitar o imponderável e o inesperado constitui atitude de sabedoria e consoladora paz de espírito.

     Meu lindo! Você ouviu um samba-enredo meio sem graça, de melodia repetitiva? Já não se fazem mais letras e sambas soberbos para os puxadores cantarem com suas vozes colossais. Um verso inspirado aqui, outro ali. Nada muito poético.

Como vão as coisas por aqui? Vamos indo, meu amor. Enfrentando uma crise sem precedentes, o brasileiro está cansado de tanta corrupção. Nossos governantes, espertíssimos, deram graças a Deus por esta trégua carnavalesca, esperando que o povo esqueça os mensalões e petrolões que arruínam o país. Mas agora, parece, o ano vai começar.

Apesar de tudo, há uma gente lutadora que canta e dança. Insistem neste sonho, todo ano. Passistas se esbaldam de tanto sambar e seus pés parecem mal tocar este abençoado chão. Um povo que ama o batuque, os requebros, as fantasias, o brilho de uma noite na avenida.

    Este povo talentoso, dançarino, compositor, merece um pouco mais de esperança. Não seja ela apenas uma vã e abstrata ilusão, desfilando solitária num carro alegórico...

 

Procurando assunto...

 

Marisa Bueloni

   Penso que todo escritor já sentiu este drama colossal: a folha em branco da máquina de escrever, a página branca no monitor, o computador ligado, a mente ligada e o texto não vem. Procura-se um assunto relevante, importante, que esteja na ordem do dia, para causar alguma reflexão e... nada!

      Bem, passo exatamente por isso neste momento em que escrevo. Procuro um assunto. Falta-me a boa e necessária inspiração para a crônica desta abençoada terça-feira. Como tenho de entregar o texto com certa antecedência, escrevo hoje, dia 30 de janeiro, um sábado.

      O sábado me causa várias aflições, conforme já relatei em algumas linhas aqui desfiadas com fervor. Sábado me lembra até mesmo as aulas da faculdade de Pedagogia, à tarde. Sim, tínhamos aulas no sábado até às 17 horas! E de lá saíamos com a alma em chamas para namorar à noite. Venturoso tempo!

      Mas, confesso: não sei por onde começo. Tenho ideia de abordar a dengue, o zika vírus, a febre chikungunya e os milhares de casos de microcefalia. Já são muitos os países no mundo todo afetados pelo zika vírus e parece que ele irá se alastrar cada vez mais. Nem a Dinamarca escapou.

      Li uma mensagem profética onde o Senhor dizia que o mundo, do jeito que vai, ainda iria ficar de joelhos. Supus que uma grande catástrofe ocorreria nestes tempos, talvez uma colisão de um astro com a Terra, algo devastador e aterrador, em nível mundial. Não menos aterradora é a dengue. Mas é um mosquito, sim, um simples mosquito que está deixando a humanidade de joelhos...

      Será que abordar a crise política, econômica e moral que assola o país é um bom assunto? Pena que o “japonês da Federal” mudou de função. Já estava sendo requisitado para fotos e até virou máscara de Carnaval. Nosso país é assim, meio surrealista, meio Macunaíma, meio engraçado. Quem não gostou de ver o japonês abrindo a porta do carro e acompanhando os presos pela Operação Lava-jato?

      Mas a falta de assunto ainda me persegue. Vi na tevê mais um tanto de lama (es)correndo na tela. Era lá em Minas de novo, o rejeito desceu abaixo, amolecido pelas chuvas intensas. Mais lama. É como se, emblematicamente, esta lama trágica e tóxica simbolizasse a lama que envergonha a nossa nação.

      E as chuvas intensas que deixaram inúmeras regiões e cidades debaixo d´água? Carros boiando, gente em cima dos telhados esperando ajuda, meninos brincando perigosamente nas ruas alagadas, mães de família chorando por tudo que perderam em seus lares, homens sem brilho nos olhos, pessoas desesperadas.

      A tragédia das inundações se repete. E olha que estamos em pleno início de ano novo. Ele mal começou e nossas retinas já estão cansadas de ver o de sempre. Até outro dia, desejávamos “feliz ano novo” e nos perguntamos agora onde está a felicidade dos desabrigados, dos que perderam casa e bens nas enchentes. Brava gente brasileira! Bravos cidadãos do mundo todo! Um ano novo de verdade está para chegar. Creio nisso de todo o meu pobre coração.

      Caro leitor, vai me perdoando a falta de assunto. Às vezes, como se diz, “dá um branco”...

 

Salmos que me cativam

 

Marisa Bueloni

   Convidada a escrever sobre um versículo bíblico que mais me cativa ou me fascina, quedo-me a pensar que não posso escolher um só. E anuncio minha predileção pelos salmos, sua grandeza e beleza, pelo estilo literário e pela ação de cura em nossas vidas.

    Começo o dia buscando a face de Deus. “É a Vossa face, Senhor, que eu procuro”. Que ninguém comece o dia sem a leitura de um salmo bíblico. Se as pessoas soubessem o poder curativo da voz do salmista, cantando bálsamos para as feridas da nossa alma, jamais deixariam de recorrer a este remédio dos céus.

    Gosto de louvar e de cantar os salmos, compondo melodias para eles. Conheço uma pessoa que se levanta à noite para louvar, pois é acordada pelo Espírito. E nas madrugadas geladas do inverno sente o corpo arder de calor. O que se passa, então, nos louvores noturnos, é algo que pertence a um território sagrado.

    Jamais me cansarei de pedir ao Pai: “Dai-me bom senso e sabedoria, pois confio nos Vossos mandamentos”.  Hoje, olhamos para o mundo e vemos grande aridez em toda parte. Há tumulto nas cidades. Rumores de guerra no ar. Violência e corrupção. Multidões ávidas de novidades, cantando músicas sem sentido, consumindo um alimento fraco e sem substância, enquanto os céus oferecem um banquete de rei ao primeiro que chegar.

Reina no mundo um desenfreado apelo de sedução e confusão, não condizente com as coisas do espírito. Meninos hipnotizados por jogos de morte; meninas que deixam para trás a infância e a inocência para requebrarem lascivas e precoces. Casamentos destruídos por traições, ciúmes doentios, mortes dolorosas. Famílias sacrificadas na sua missão primeira de educar e ser aconchego para os filhos. Lares desestruturados, ausência de caridade, de compreensão e de afeto.

Em tempos de consumo, como falar de renúncia e desapego? Como levar às pessoas uma mensagem de luta, mas também de resignação, quando um gesto de humildade já não tem nenhum sentido? Todos querem o sucesso, a fama, o dinheiro, seduzidos pelo materialismo exacerbado.

É hora de clamar a Deus e orar. “Fazei que eu compreenda o caminho dos Vossos preceitos”. É hora de se pôr de joelhos e pedir pela salvação deste mundo que parece desmoronar. “Restabelecei, Senhor, o nosso destino”. O salmista diz que “os que semeiam com lágrimas recolhem entre cânticos”.

 Amo especialmente o Salmo 16,6: “A corda mediu para mim um lugar aprazível; bela é a porção que me coube”. Quem lê, entenda. E o Salmo 116,6: “O Senhor vela sobre os simples”. O Senhor é Aquele que sonda o nosso coração, visitando-nos continuamente. A força do Espírito paira sobre a face da terra e a faz estremecer, mas é em nossa alma que o Senhor imprime Sua lei eterna e imutável.

Porém, de todos os salmos, há um que me cativou para sempre e que repito sem cessar: “O Senhor é meu pastor, nada me falta”. Amado salmo 23!

 Canto um salmo toda vez que me sinto frágil e desamparada. Canto um salmo para a vida, rezo para que o amor, a fé e a caridade sejam a maior e única razão da nossa existência.

 

Para onde vamos?

 

Marisa Bueloni

   Quero entender melhor o mundo. Preciso que alguém me explique o que está acontecendo. Uma pessoa querida me lembrou a frase “para o mundo que eu quero descer”. (O correto seria o acento no verbo “pára”; a reforma ortográfica falhou em alguns casos).

Mas não há como apear desta nave. Uma vez a bordo, temos de seguir viagem, até que Deus nos chame de volta para a casa eterna. Estamos todos em órbita e o ano é o de 2016, recém-inaugurado, novinho em folha e paradoxalmente tão velho em sua complexidade.

Sim, é tudo muito complexo e luto para entender este mundo e suas disparidades, insanidades e afins. Nem tudo são loucuras, há maravilhas também. E por tênue que seja, mantenho viva a esperança, apego-me a ela como o último recurso de vida.

Ah, do que se morre hoje? Morre-se de “selfie”. Sim, a foto que a pessoa faz de si mesma com seu celular e depois publica nas redes sociais, em busca de algum mérito, reconhecimento, ou apenas para se exibir, mostrar quão alto subiu ou desceu e os riscos que correu para fazer a foto perfeita.

Ah, meu Deus! Morre-se de “selfie”. Vi na tevê o caso da moça que se curvou tanto para fazer a foto na janela do apartamento que quase despencou de lá. Ela relatou o fato, tremendo. A reportagem tratava das mortes de quem se fotografou pela última vez, a ousadia de pessoas ao fazer “selfies” espetaculares, no topo de edifícios, em locais perigosos, tentando o melhor ângulo para postar nas redes sociais.

Na China, se não me engano, uma mulher morreu porque estava distraída, andando e digitando no celular. Ela não viu o rio à sua direita, foi caminhando, caiu na água e morreu afogada. Leitor do céu, isso tudo é irracional! Ao ver o vídeo da mulher caindo no rio, penso se ela teria filhos, uma família. Se fora apenas passear perto de sua casa. Para onde estaria indo, para quem estaria digitando? Por isso quero entender estes fatos e demais tragédias que me tiram o sono. 

A que ponto o mundo chegou, quando as autoridades, agentes da defesa civil e a polícia começam a alertar para o fato de as pessoas andarem sem olhar onde pisam. Muitos já caíram em bueiros e em buracos nas ruas, por caminhar digitando no celular.

Vivemos num mundo de admiráveis formas de comunicação e, no entanto, as pessoas nunca se sentiram tão deprimidas, tão solitárias e angustiadas. Faz falta abraçar e falar ao vivo? São as contradições destes tempos.

 Consta que as nações ricas nunca produziram tanto, seja em alimentos, seja em bens de consumo e existem países pobres onde as crianças são abandonadas para morrerem sozinhas. Contrastes dolorosos de um mundo injusto, quase sempre apagado das nossas consciências pelo cultivo das seduções e da virtualidade fantasticamente irreal e ilusória.

Meu pai costumava dizer que “nem tudo que reluz é ouro”. Precisamos de uma vivência boa e sincera, pés no chão, lágrima e riso, força e luta, com o coração cheio de bondade e mãos estendidas. E no fim da estrada poder afirmar: combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé.

 

Passagem Secreta

 

Marisa Bueloni

   Há algo bem escondido em toda parte e só o vê quem possui o agudo olhar da curiosidade, da aventura de viver ainda que de forma modesta, simples ou mesmo anônima. Há algo que nos transporta para onde queiramos ir ou estar. Basta querer.

    Nossos olhos se acostumam com a paisagem cotidiana, com o roteiro a ser cumprido todos os dias e perdemos a maravilhosa visão deste espaço pequenino que habita o nosso coração. Lá está ele, como um oásis no deserto, miragem despercebida. Fonte de águas cristalinas, praias paradisíacas, campinas verdejantes, montanhas sem fim, diáfano mundo de belezas.

    Se há tumulto e ruído à nossa volta e se precisamos de descanso, de paz, basta abrir a porta mágica do sonho e sonhar. Trata-se de uma passagem secreta que nos leva ao encontro da felicidade. Cada um conhece o segredo do cofre, a senha de acesso a esta vereda encantada, capaz de nos abstrair de uma realidade nem sempre agradável ou pacífica.

    Digo sempre que tudo está dentro de nós. Sim, existe o mundo exterior e cada coisa pertence a ele de forma intrínseca. Há coisas que não se dividem e não se separam. É o intocável mundo perfeito projetado por Deus, a Criação em toda majestade e grandeza e nela tudo flui de forma magnífica, na ordem natural regida pelo divino.

    Mas dentro de nós habita a vontade, a inteligência, a sensibilidade, a capacidade de agir e de transformar o que precisa ser transformado. Se eu mudo, o mundo muda. Este reflexo é arrebatador. Toda mudança começa dentro de cada um de nós no mais pequenino gesto construtor. A menor e mínima mudança terá o mais espetacular e grandioso efeito nas leis do universo.

    Tal atitude transformadora é o início de uma caminhada onde os frutos serão colhidos de acordo com a maturidade de cada pessoa. Há diferentes graus de crescimento e é preciso esforço diário para alcançar o patamar desejado.

    Dentro de nós, na quietude da meditação e da oração, crescemos para um mundo imaterial, idealizado no amor, no bem e na justiça. Nesta passagem secreta da nossa alma somos transportados para um céu particular, onde nossos anseios diferem das coisas terrenas, dos bens materiais almejados de forma quase irracional.

    Somos provados e testados todos os dias, a cada momento. Mesmo nossa fé é posta à prova, bem como a nossa paciência e a capacidade de suportar situações difíceis, nossa resistência a um cotidiano tecido de pura rotina, sem grandes atrativos.

    É quando o sonho se torna nossa principal ferramenta no ofício de viver. Ele vai abrindo todas as portas, clareando vias escuras, permitindo enxergar o invisível, inspirando e amenizando nossa fome de vida. Vida e sonho. Haverá algo mais belo pelo que lutar?

    Estamos num ano novo e, como é de praxe, são feitas promessas de renovação. Muitos prometeram a si mesmos mudar de emprego, deixar o cigarro, viajar, emagrecer, começar uma faculdade, encontrar um amor, casar. São projetos vazios se não levados a sério, com determinação. O ano novo em si não tem poder de nada. A força e o dom de transformação estão dentro de cada ser humano. Vida plena!

 

 

Começar de novo

 

Marisa Bueloni

   Já estamos em 2016, um ano de muitos desafios e de muita coisa pendente, a começar pelo processo de impeachment da presidente Dilma. Teve início no ano passado, sob grande tumulto político, e promete continuar tumultuando este novo ano.

    Todo mundo já voltou da praia? Vi na tevê que muitos turistas que vieram passar o Réveillon no Rio vão ficar para o Carnaval. Estão deslumbrados com as praias, com a beleza da cidade e dizem que “Rio é mais bonita cidade do mundo”.

Turistas aproveitam o que existe de melhor, claro, e não conhecem os bastidores de uma cidade onde a saúde está na UTI. Os hospitais públicos do Rio entraram em colapso e só mesmo um milagre dos céus para salvar as pessoas que dependem deles.

    Enquanto doentes esperam nas filas e mães dão à luz na calçada, as obras para as Olimpíadas estão aceleradas, apesar dos inúmeros problemas que a cidade irá enfrentar ainda. Porém, cumprindo o calendário, o Carnaval vem aí, os reis e rainhas irão reinar em toda a sua pompa e glória. Não entendemos direito esta cidade, o Rio continua sendo um mistério para mim, todo ano. A chuva leva os barracos, a população passa por situações dificílimas, mas as fantasias luxuosas  vestem a penúria e os desfiles acontecem impecáveis, apesar da luta e da dor.

    As tragédias que marcaram 2015 ainda estão vivas em nossa memória e é bom que ninguém esqueça o desastre em Mariana, para que as demais barragens do gênero passem por vistorias constantes. Em toda parte, clama-se a misericórdia divina, como o último apelo, a última esperança. Não por acaso, o papa Francisco decretou este “ano da misericórdia”, acenando também para 2017, onde será comemorado o centenário das aparições da Virgem em Fátima.

    A cada passagem, vemos os problemas do ano velho transferidos para o ano novo, sem nenhuma cerimônia. Não há necessidade de “posse”, pois eles vêm de graça como herança de um estado de coisas quase surrealista. Para muitos, ano novo é um marco histórico em suas vidas, tudo será novo de verdade, a casa, o carro, e haverá um novo estilo de vida. Mas para a maioria dos mortais, o ano começa como sempre começou, na rotina anual do trabalho, dos estudos, da lida diária que não pode esperar.

    A cada ano novo, faço uma prece especial para o nosso mundo, para o planeta que habitamos, pois ele tem nos suportado com nosso desleixo e descaso. Recentemente, li sobre um planeta, ou astro, ou corpo celeste chamado “Nibiru”, quatro vezes maior que Júpiter. Ele está retornando agora, em sua órbita elíptica, e consta que poderá esbarrar na nossa velha e boa Terra. Vamos rezar?

    Há muitos e muitos anos eu costumava fazer um poema para todo ano novo. Aos poucos, fui perdendo o hábito e hoje procuro pela poesia que enfeitava os ânimos. Mas ainda corro atrás dela, não quero perdê-la de vista por nada neste mundo!

    E que 2016 seja a nossa vida cotidiana, seja recomeço ou continuidade, projetos novos ou o de sempre, mas que seja diferente de alguma forma. Que nos traga uma luz nova, um jeito novo de olhar a vida, uma nova visão do amor!...

 

 

Ano novo, velhas profecias

 

Marisa Bueloni

   Logo mais, estaremos iniciando um novo ano com as mesmas boas expectativas de praxe. Mas, neste ano que se finda, pudemos constatar que as mudanças climáticas e os inquietantes fenômenos da natureza estão ocorrendo a olhos vistos. O aquecimento global já se tornou um tema dominado pela maioria das pessoas, tão forte tem sido o apelo dos meios de comunicação.

    À medida que tais fenômenos se manifestam de forma assustadora, as chamadas “mensagens proféticas” relacionadas ao fim dos tempos intensificam o seu tom de urgência final, alertando para os acontecimentos dos próximos anos. É preciso muita prudência para com este tipo de matéria, uma vez que está relacionada também à espiritualidade.

    Assim, enquanto a Igreja se debruça cuidadosamente sobre alguns casos de “revelações particulares” para estudá-las, o povo de Deus sente-se cada vez mais atraído por muitas destas manifestações. Consta que há um bom número dos chamados “mensageiros” no mundo de hoje, recebendo, por meio do poder e da luz do Espírito Santo, palavras de aviso e de ordem quanto ao futuro da humanidade.

    Assim como o Senhor interferiu diversas vezes na história humana conforme relatos bíblicos, crê-se que estaria havendo, no atual momento, este mesmo tipo de fenômeno espiritual: as forças do Céu se abaixam para vir falar aos da Terra e comunicar-lhes alguns mistérios e segredos que estariam para se cumprir, dentro do nosso tempo. Tratar-se-ia de um grande derramamento da misericórdia divina, sobretudo visando à conversão da humanidade. Uma advertência, um aviso, designado como “correção da consciência”.

    É conhecido o fato de que, há três décadas, a Virgem Santíssima vem aparecendo em Medjugorje, na Bósnia-Herzegovina, transmitindo ao mundo suas mensagens de amor e de paz. Nos anos 80, início das aparições, ela teria revelado 10 segredos a seis confidentes. Os estudiosos afirmam que as aparições da Virgem acenam para um “novo tempo”, procurando despertar em nós “um sentido de espera dos acontecimentos apocalípticos, para a humanidade e para toda a criação”.

    Em boa parte dos textos proféticos aparece uma pergunta crucial: “Vós estais preparados?”. A muitos confidentes é revelado o momento da “iluminação da consciência”, quando tudo parará e cada um verá a condição, o estado de sua alma. A Virgem diz: “É uma ‘antecipação’ do calor de Deus, para permitir que saibais quão preciosos sois, quão real Deus é, e como e por que fostes criados. Esta Luz é a Luz do Amor de Deus”.

    Tais promessas enchem nossos corações de fé e esperança, sobretudo neste vislumbre de um novo tempo em que povos e nações, abrasados pelo amor divino, superem as barreiras do ódio e da beligerância.

    Possam estes fenômenos místicos nos consolar, descortinando para nós o reino de justiça, amor e paz. E que neste novo ano possamos refletir com seriedade e espírito crítico sobre o nosso futuro na Terra.   

    Caro leitor, desejo um ano novo de muito amor, prosperidade, saúde e paz!

 

Um Rei vem vindo

 

Marisa Bueloni

   Um Menino nascerá de uma Virgem. “Como assim?”, perguntaria uma apresentadora de tevê. “Isso não tem lógica”. Mas na lógica de Deus tudo é possível. Até mesmo o nascimento virginal do Menino que vem ao mundo na realeza da manjedoura.

    Um Rei na manjedoura, como assim? Não somente a apresentadora faria a pergunta com perplexidade e ceticismo. Sim, as contradições, os disparates e os paradoxos de Deus deixam a todos constrangidos. Ele faz um Rei nascer longe dos palácios e das riquezas. Um pequenino que, na vida adulta, proferirá palavras de vida eterna.

    Um Rei vem vindo. Ah, os sábios adivinham que é o Menino da noite de Natal, quando os homens de boa vontade vão à igreja para celebrar Seu nascimento na missa mais bela. Bate o sino pequenino, sino de Belém. Canta toda a Criação, na espera deste acontecimento inefável.

    Um Rei vem vindo. Uma multidão deseja interpretar a outra vinda, aquela que começa com as taças flamejantes dos Anjos do Senhor e a justa punição para povos e nações. A vinda gloriosa do Rei da glória. Sobre esta deixo que pensem os corações.

    Quem já tem o Natal dentro de si sabe do significado do amor em toda a sua plenitude. Este Menino causa uma grande revolução. Sua chegada é sempre uma festa nas casas, nas ruas, nas celebrações com cânticos de alegria. Um Rei vem vindo. Para este Rei armamos o eterno presépio, a árvore, o pinheirinho lindo, e nossa alma se aperta ao infinito.

    Por que a chegada deste Rei é tão importante e celebrada? Ele mexe com o comércio e a indústria, com o governo e com as prefeituras, com o turismo, com o emprego temporário e a esperança das pessoas. Nenhum outro Rei tem o poder de manter lojas abertas até as 22 horas. Nenhum outro inspira tanto amor e tantos abraços, mensagens e presentes. Nenhum outro faz tantos amigos secretos. Nenhum outro move novenas nos lares e confraternizações.

    Há que se admirar a Sua realeza, o Seu poder e glória. Não há outro mais poderoso e mais nobre. Pequenino, no bercinho de palha, envolto em panos humildes, é visitado por reis que vêm de longe para conhecê-Lo. Quem é Ele, afinal? E por que queremos todos ser felizes no Seu natalício?

    A Ele dedicamos a nossa ternura, em clima de pura magia e encanto. Vive dentro de nós um eterno sonho de uma noite de Natal. Que esta noite magnífica, do mais profundo significado espiritual, vença as trevas dos tempos, o horror das barragens rompidas, a agonia dos pequeninos famintos, a fúria dos foragidos, a ganância das roubalheiras vergonhosas e as tragédias cotidianas em série.

    Que o feliz Natal esteja conosco para sempre. A data mais bela da cristandade nos reúna no abraço fraternal e sincero. Apesar de tudo, apesar da situação em que se encontra o nosso país, no mais grave dos impasses, vivendo uma crise política, econômica e moral.

    Um Rei vem vindo e é para Ele que eu canto em mais um santo Natal. A Ele louvo e dou graças. Ao Rei que vai chegar toda a honra e toda glória, agora e para sempre. Amen.

 

O poder de uma carta...

 

Marisa Bueloni

   A carta pós-Temer voltou na moda. Está na ordem do dia, nada mais moderno e útil. Sobretudo quando, por meio das mal-traçadas, se lava a alma. Você pensava que o Planalto é habitado por uma gente fria, calculista e sem coração? Nada disso. A carta do sr. Temer é algo a ser considerado nos dias que correm.

 Correios brasileiros e carteiros diligentes, digo-vos: alegrai-vos. As missivas voltaram (voltarão?) com força total. É o modismo político dos nossos tempos conturbados. De repente, vamos ressuscitar este romântico meio de comunicação que fez a festa de tantos corações.

Escrever uma carta é um gesto de amor. Ninguém mais escreve. Hoje, escrevemos e-mails. É emocionante também. Porém, é mais frio. Feito aquele “frio inteligente” de que nos fala Clarice Lispector. Temos de viver como pessoas do nosso tempo e imprimir virtudes inefáveis na armadilha tecnológica, a fim de que endureçamos, pero sin perder la ternura.

    O “Rei”, em priscas eras, cantou: “Escreva uma carta, meu amor / e mande outro beijo, por favor”. Ah, as cartas de amor! Conforme bem declarou Álvaro de Campos, “as cartas de amor são ridículas; não seriam cartas de amor se não fossem ridículas...”. Rubem Alves, comentando o dito, concluiu que “afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor são ridículas”.

    Há uma carta famosa no cancioneiro popular,  eternizada na voz de Isaurinha Garcia e regravada por Vanusa. O carteiro grita seu nome, ela mal consegue chegar até o portão e reconhece a caligrafia daquele que lhe disse um dia “estou farto de ti”. Então, ponderando se a mensagem seria de tristeza ou de alegria, refletindo melhor no que uma carta nos traz, os versos concluem: “Assim pensando rasguei / tua carta e queimei/ para não sofrer mais”.

    E todos nós, ouvintes curiosos e fiéis, ficamos sem saber o que é que havia na tal mensagem. Ah, mas por que ela não abriu a bendita carta? Rasgou e queimou sem ler? Poucos fariam isso, até porque há o dito de que “curiosidade mata”. Eu teria aberto, sem dúvida!

    Bem, mas por mais palpitante que seja o assunto das missivas caídas no desuso, é lamentável que toda uma geração não saiba escrever uma carta. Muitos não conheceram a graça e a ventura de começar um texto com um “Prezado Senhor”, ou “Querida Maria”, e quem sabe um apaixonado “Amor da minha vida”, dois pontos.  Sabe lá o que é escrever uma carta de amor? Só mesmo uma raça em extinção e os últimos românticos ainda a estão escrevendo. Ou desistiram também? Ah, não, por favor, não parem. Vocês vão salvar o planeta!

    A carta de Temer fez o país tremer. Era pessoal e acabou se tornando pública. Nada mal. Boa redação, uma mágoa incontida, necessária, refreada por conta da liturgia do cargo. Carta inflamada que começa com “Verba volant, scripta manent”. Em tradução do latim: “As palavras voam, os escritos permanecem”. 

    Sim, sim, sim!

 

Para os que dormem tarde

 

Marisa Bueloni

   Penso que deve haver algo de muito importante na vida de quem dorme tarde. Eu durmo tarde e sei de um batalhão de gente que também não vai para a cama antes da meia-noite. Leio sempre relatos de escritores, artistas, noctívagos em geral, de pessoas comuns que não conseguem dormir cedo.

    É como se o dia precisasse de mais horas e a noite não fosse nenhum obstáculo para continuar o trabalho, a lida, o estudo, a pesquisa, o ato de criar e produzir. Para muitos, a noite é propícia para a criação, sobretudo a literária. No silêncio noturno, as frases brotam espontâneas e belas. Ou devastadoras; depende.

    Que hábito é esse de dormir tarde? Penso sempre no grande mistério do sono. Por que dormimos? Vemos em nós mesmos os estragos de uma noite mal dormida, ou de quando, por alguma razão, precisamos ficar de vigília. Sim, basta uma noite insone e acordamos com olheiras, de um jeito que não queremos nem nos olhar no espelho.  Por isso, as modelos lindíssimas afirmam que a melhor maquiagem é uma noite de bom e profundo sono.

    O sono é fundamental para a saúde. Depois de um dia exaustivo, tanto para a mente como para o corpo, existe algo melhor do que um banho quente, um creme hidratante para a pele e lençóis aconchegantes? Para mim, não há. Se estiver disposta, ainda faço um chá destes que induzem ao sono.

    O que é o sono? Por que dormimos? E por que vamos dormir depois da meia-noite? Somente pode desfrutar do luxo de dormir tarde quem não precisa levantar cedo. Verdade. Mas não levanto muito tarde, não. É como se meu ritmo biológico já tenha se habituado a uns horários meio irregulares e vai se adaptando bem a eles.

    Lemos que o ideal são oito horas de sono. Mas nota-se que, com o passar do tempo, a necessidade de sono vai diminuindo. Assim, mesmo dormindo relativamente tarde, acabo acordando num horário bom, que me permite aproveitar parte da manhã para uma caminhada, tomar um pouco de sol no meu quintal, enfim, começar o dia com disposição e ânimo.

    Aproveito as horas noturnas com gosto. Rezo, escrevo, medito, faço algo que acalme meu coração. Com a inquietação de sempre, resolvo sair lá fora e espiar o céu de dezembro. Este céu natalino que brilha para mim às duas da manhã, as estrelas tremeluzindo distantes. Onde está você?

    Onde está você, meu lindo? São sete anos da sua partida e não dá para esconder a dor desta separação tão triste. Depois que você se foi, passei a dormir tarde, quando ainda morava na nossa chácara do Campestre. Lá, de madrugada, sem medo de sapos na varanda, nem das aves noturnas, sentava-me no “nosso banco”, pedindo que me ajudasse a voltar para a cidade.

    Neste banco, em tantas meias-noites, me perguntei “onde está você?”. E sob o céu que nos protege, pedia uma luz, uma bênção divina, um venturoso ano novo, destes que esperamos com a alma em chamas. Era sempre tarde quando eu me recolhia, para continuar sozinha a oração que nunca termina.

    Para os que dormem tarde dedico este texto. Para os que amam os humores das horas passando, o mapa da noite abrindo nossos olhos, a contemplação sublime do mistério e a paz do sonho.

 

 

Pouca gente feliz

 

Marisa Bueloni

   Se pudéssemos encontrar um medidor para a felicidade, poderíamos começar com alguns critérios respeitáveis. O que é ser feliz, ou estar feliz? Gostar da vida que se leva e sentir-se satisfeito com as realizações e conquistas?

    Para começar, é tão difícil definir a tal felicidade. Do alto da minha vã filosofia, penso que para muitos é ter as contas pagas todo mês. Aliás, isso não é felicidade, é um ato de heroísmo neste país em crise. Que o digam os milhões de trabalhadores brasileiros, pais com filhos na escola, famílias cumpridoras de seus deveres e obrigações.

    Para a grande maioria, claro, felicidade é ter algum sonho realizado, é concretizar o que está lá no fundo do coração, o tempo todo, cutucando e dizendo: “Vá lá, lute, você vai conseguir”.

    Estas questões me vieram à tona, por causa de uma notícia que li na internet. Uma pesquisa concluiu que apenas 10% dos brasileiros estão completamente satisfeitos com a vida que levam. A pergunta feita a cinco mil brasileiros foi: “você se sente satisfeito com sua vida?”

    A pesquisa informa que, apesar de tudo, o brasileiro é otimista: 87% acreditam que sua vida será melhor no futuro. Será? Quando for aposentado, neste país que não tem respeito pelo idoso? Bem poucos contam com uma aposentadoria digna, que propicie uma vida confortável, com viagens e alguns pequenos luxos.

    Imagine, olhe eu aqui, falando em “pequenos luxos”. Penso que o luxo do aposentado é poder dormir um pouco mais. Sem muita coisa para fazer, dá para ver tevê até tarde da noite, sem hora para acordar no dia seguinte. Sim, um luxo.

    A pesquisa aponta que para ter mais satisfação no futuro, o brasileiro gostaria de poder viajar, conhecer mais lugares nos próximos cinco anos. Esta foi a resposta de 79% dos entrevistados. Para um pouco mais da metade deles, ganhar mais dinheiro também faz parte dos planos. A falta de dinheiro é uma das causas de não se poder viver a vida ao máximo.

    O que é viver a vida ao máximo? Para os brasileiros da pesquisa, é ter felicidade, é ser feliz. E a falta de dinheiro impede o acesso a esse nirvana da hora. A segunda palavra mais citada na pesquisa foi “amor”. Pode-se inferir que para ser feliz é preciso amor e dinheiro?

    As mulheres são maioria nas respostas de que não estão vivendo a vida ao máximo. Também são as mulheres, mais que os homens, a se sentirem insatisfeitas com a vida social e profissional. Destas mulheres, mais da metade é solteira e 14% está desempregada.

    Caro leitor, com algum conhecimento de psicologia pode-se afirmar que o homem é o mesmo, em qualquer época da história. Tirem dele o amor, o dinheiro, e ele está acabado... Sente-se infeliz e insatisfeito. Sem poder viajar, viver a vida ao máximo, nada faz sentido.

    Pois penso que temos uma grande viagem dentro de nós, ainda que longe de um grande amor e sem nenhuma fortuna. Quantos pensam na felicidade só depois da casa nova, do carro novo, do cruzeiro sonhado. Não. Não suspiremos pelo amanhã. O belo é construir a felicidade a cada dia, é ser feliz agora, hoje, com o que se é e com o que se tem.

 

 

E assim caminha a humanidade...

 

Marisa Bueloni

   Deve haver alguma outra crônica de minha autoria com este mesmo título. Toda vez que algo me espanta com profundo horror, costumo recorrer a ele para demonstrar ora minha feroz indignação com algum assunto específico, ora meu repúdio aos atos que brotam de mãos humanas. Junto ao título, uma espécie de conformismo às avessas, a ironia da desesperança.

          Impossível não traçar algumas tristes linhas a respeito do que houve em Mariana, no estado de Minas Gerais, mais precisamente no distrito de Bento Rodrigues. Depois que a tragédia acontece, repete-se que era “anunciada”. Então, se havia a possibilidade de se prever tamanho desastre, deveria haver um mínimo de responsabilidade e de bom senso para evitar o que lá ocorreu de forma apocalíptica.

          Sim, vejo o Apocalipse em todo navio que derrama toneladas de óleo nos mares e oceanos; vejo sinais dos tempos nestas barragens que se rompem, lavando a terra com esgoto e rejeitos de minério de ferro; vejo luas de sangue enviando avisos aos homens de que é preciso deter esta corrida louca.

          Onde iremos parar, ó humanidade? Em versos do passado, o poeta Carlos Drummond de Andrade já descrevia que o horizonte de algumas cidades mineiras mudava de paisagem e que algo sombrio soterraria os sonhos dos seus moradores. Sim, quantos ais! Mas a poesia não traz alívio para essa dor feita de lama tóxica, de um assombro marrom que foi devastando, destruindo e contaminando. A poesia cumpriu o papel de denunciar a tragédia futura, de proporções escatológicas.

          Sim, antevejo algo como fogo caindo sobre a Terra coberta de lama e de insensibilidade. Ouço o tropel dos quatro cavaleiros do Apocalipse, vejo o brilho das espadas flamejantes, e posso ouvir as vozes que anunciam: “Ai dos habitantes da Terra!”.

Durante alguns dias, travou-se uma espécie de batalha nas redes sociais para saber qual dor era maior: se a de Minas ou a de Paris. E por que a jornalista Sandra Annemberg, da rede Globo, chorou pelos franceses e não chorou pelos mineiros?

          Entendemos que um desastre ambiental é diferente de um ataque terrorista. Mas, ambos são trágicos e contabilizam perdas colossais, ambos guardam dores infinitas. E se nosso coração é maduro e bem formado, choraremos com igual sentimento pelos dois. Paris, Mariana, Bento Rodrigues, Nova York, Londres, Colatina, Hebron, Baixo Guandu... Por onde a dor passar doerá.

O rio Doce, de doce nome, luta contra a morte tóxica. Segundo o fotógrafo Sebastião Salgado, que se criou naquela região, é possível salvar o rio Doce, tratando de suas inúmeras nascentes. Salgado está com 72 anos e disse que espera viver para ver a recuperação do manancial.

          Nós também gostaríamos de ver o rio Piracicaba despoluído, limpo, com o antigo esplendor dos peixes e da beleza. Não podemos aceitar a sua morte. Rio Piracicaba, rio Doce, rios do Brasil. Tantos tão sujos e sem vida! Catástrofes silenciosas, que deslizam mudas, sem a respiração da natureza.

          E para finalizar a crônica, nada melhor do que repetir o título, caro leitor. E assim caminha a humanidade...

 

No Facebook da vida

 

Marisa Bueloni

   Se você tem Facebook, se você conhece o Facebook, saberá do que estou tratando. Se não sabe o que é, nunca viu, não tem importância. O Facebook faz parte das chamadas redes sociais. Ele pode ser visto e compartilhado nos computadores, celulares, enfim, por meio desta assombrosa tecnologia de hoje.

     É no Facebook que encontramos as frases mais sérias e as mais engraçadas. Há de tudo um pouco. Frases que injetam ânimo e coragem aos que perderam todas as esperanças; frases de amor; frases de auto-ajuda que não se encontram nem nos livros dessa área; frases de bom dia, de boa noite; frases e mais frases. Uma melhor que a outra!

     O momento político é alvo de todas as piadas e imagens que o leitor possa imaginar. Sobretudo depois que a presidenta sugeriu estocar o vento... Aí foi demais, ninguém aguentou.   Sabemos que um Presidente da República merece o nosso respeito, pois se trata da autoridade máxima do país, mas a senhora em questão não tem se aplicado muito na observância do que diz e o pessoal não perdoa mesmo.

     Às vezes, me pergunto o que ela pensará de tudo isso, se ela teria acesso à enxurrada de piadas e postagens grotescas envolvendo o seu nome, a sua equipe de governo, com ênfase para a corrupção que veio à tona nos últimos meses.

     Mas, o bonito no Facebook são as frases. Veja esta: “Sempre haverá outra chance, outro emprego, outro amor, outro sapato. Mas nunca outra vida! Então, não desperdice seu tempo!”. Nada mais verdadeiro.

     Sim, todos têm direito a uma segunda chance na vida. Até um criminoso terá esta chance, se puder se arrepender, pagar sua dívida para com a sociedade e recomeçar.

Procurar outro emprego. Certo. É saudável não se dar por vencido, sair em busca do que pode trazer alegria. É bom não se conformar com a rotina desgastante e sem graça.

Outro amor. Por que não? Se um amor não deu certo, não significa que um futuro amor também não dará. É preciso abrir as portas do coração e deixar o amor entrar. Tem uma frase bonita no Facebook sobre isso: “Se um dia chover amor, desejo que tenhas esquecido o guarda-chuva em casa. Deixa molhar.”

Outro sapato. Aqui, lembrei de um sapato de saltinho baixo, lindo, que eu tive quando mocinha. Nenhum outro foi tão bom de usar quanto aquele. Era branco, com uns furinhos no peito do pé. Acho que andei tanto com o coitado, que o salto quebrou... Não teve conserto. Então, a vida é assim, um sapato estraga, a gente compra outro. Porque caminhar é preciso.

“Mas nunca outra vida!”. De fato, você pode trocar tudo, de emprego, de casa, de amor, de carro, de sapato, mas você só tem esta vida! Esta é a vida que nós temos e com ela devemos chegar ao fim da jornada. Só Deus sabe onde fica essa parada obrigatória, de cuja fila ninguém escapa.

“Então, não desperdice seu tempo!”. De fato, como dizia a minha mãe, “a vida é curta”. Temos de aproveitar bem o nosso tempo, empregá-lo de forma inteligente e laboriosa, para que tudo se cumpra conforme o que planejamos um dia.

Nem todos planejam, creio que para a maioria a vida sai num susto ou vai sendo vivida um dia após o outro, sem grandes elucubrações. Afinal, a vida é sonho.

 

 

As coisas simples e belas

 

Marisa Bueloni

   Às vezes, sentimos vontade de filosofar e de manter um gentil contato com a poesia, sobretudo para driblar a aridez destes tempos, nesta convulsão política, econômica e moral que assola o nosso país. Em toda parte, só se ouve falar na “crise”. A crise tomou conta de tudo e, se algo der errado, a culpa é toda dela.

Mas a verdade é que o país atravessa mesmo um momento difícil e, da esfera política, a crise passou para a econômica, deixando a população preocupada. Quase que os aposentados e pensionistas ficam sem a primeira parcela do 13º... E o desemprego? A inflação e os juros altos? E a falta de coragem para investir, numa conjuntura como a atual?

Não, não. Vamos mudar de assunto. Pretendo escrever um texto leve e sem grandes complicações temáticas, que não deixe o caro leitor ainda mais angustiado com as contas do TCU (Tribunal de Contas da União). Tentemos algo do nosso cotidiano mesmo, o doce da padaria, a música no rádio, o sabonete perfumado, essas coisas tão simples e tão belas, capazes de fazer sonhar o nosso coração.

Como de costume, meu poema evoca uma paisagem possível de ser vista em sua perfeita nitidez, apesar da sépia do tempo. São fotografias de uma pureza única, tanto para a elaboração do verso quanto para o deleite de recordar.

O corpo envelhece, mas a alma não. Toda pessoa guarda uma história de vida em seu íntimo e isso faz parte de um compartimento sagrado. Cada um é esse "eu" pleno, inteiro, digno. Creio que o mais difícil de envelhecer é lidar com as lembranças. Esta é a parte mais dolorosa.

Lembrar o tempo de estudante, os bilhetes deixados sobre a mesa da cozinha, pedindo para minha mãe me acordar bem cedinho. Prova de matemática, era preciso dar uma última revisada na matéria e, enquanto ela passava o café maravilhoso, as equações corriam pelos meus olhos.

A rosa jogada no terraço próximo ao jardim era recebida com a alma em chamas. As serenatas que minhas irmãs e eu ganhávamos dos nossos amores, a expectativa do sábado, a beleza da juventude saindo pelos poros, essas maravilhas me fazem voltar no tempo e chorar.

Mas não havia ventura maior que essa: passar de ano, ficar livre das provas, merecer o elogio dos pais, esperar pelo Natal, com aquela sensação ao mesmo tempo leve e pesada dentro do peito – coisa que o Natal me causa até hoje.

Ó Deus, o que é isso que me esmaga por dentro toda vez que o Natal se aproxima? Sei de muita gente que se angustia terrivelmente nesta época do ano. Para mim, é mortal. Tenho de fazer força para resistir. E depois que vi meu lindo numa UTI, cuja entrada era decorada com motivos natalinos, esta festa passou a ser ainda mais triste para mim.

As imagens surgem de todo lado e em cada canto da casa há uma foto, uma lembrança daquilo que jamais ficará perdido no tempo, porque está bem vivo no coração. E virá mais um Natal, onde me perguntarei se mudou o Natal ou mudei eu. Virá mais um início de ano novo no qual depositamos as nossas melhores esperanças.

E la nave va...

 

Atchim

 

Marisa Bueloni

   Meu pai enrolava entre os dedos
Um cigarro de palha caprichoso
Moviam-se ali tantos segredos
Daquele fumo sempre bem cheiroso

Meu pai me oferecia um pedacinho
Do fumo preto para que eu cheirasse
- Faz espirrar! - dizia com carinho,
Para que, em seguida, eu espirasse

E num  espirro, a saudade bate
Meu coração mais uma vez se abate
E na saudade, triste, me retiro...

Fumo de rolo e as brincadeiras

Lembranças lindas e tão verdadeiras
Quero espirrar... e só suspiro!...

 

Bênçãos para todos nós

 

Marisa Bueloni

   Lemos e ouvimos em toda parte as piores notícias possíveis. Vivemos um tempo de extrema violência e agressividade. Até mesmo nas escolas alunos se agridem, se matam, expressando um ódio irracional, algo que não combina com uma instituição de ensino.  De onde vem esta onda malévola que turva os olhos, faz surtar os lúcidos, desequilibra os de sã consciência?

           Peço bênçãos para este tempo. Peço bênçãos para os nossos pequeninos que vão à escolinha cedo e que precisam ser abençoados desde o momento em que se levantam de suas caminhas. Peço bênçãos aos pais e mães que os levam até o sagrado local aonde vão para brincar, estudar, crescer.

           Peço bênçãos aos professores e demais funcionários de todas as creches, escolas e colégios. Peço bênçãos para todos os que deixam suas casas e se dirigem ao trabalho, na luta diária pelo pão de cada dia. Aos que vão de carro, de ônibus, ou a pé.

           Sim, chegou o tempo de orar ainda mais fervorosamente, de pedir a proteção dos céus e dos anjos. É chegado o tempo de tomar todo o cuidado, em toda parte. O avô que busca o neto na escola; a mãe que, pressurosa, dirige o carro indo trabalhar; o estudante que vai à faculdade para conseguir o suado diploma de sua vida; o trabalhador que já acorda cansado; as pessoas que têm algo a oferecer para que a vida se torne bela e construtiva; todos os que têm um poder e um dom em suas mãos, todos estes precisam de bênçãos.

           É chegado o tempo de abençoar cada filho, toda vez quem um deles vai a algum lugar. É o tempo de aspergir nossa casa com água benta, com a Bíblia nas mãos, dizendo em voz alta a passagem da Crucifixão do Senhor. É o tempo do sal exorcizado, das velas santas, das imagens dos Sagrados Corações de Jesus e Maria, expostas nos lares, tempo dos terços e das rezas de antigamente, quando se cantava entre os mistérios, louvando a Maria.

           Não tenho nenhuma dúvida de que este tempo chegou. E digo que podemos estar atrasados com relação aos nossos cuidados e preparos. É a hora magnífica de abençoar e ser abençoado. É a grandeza da graça que vem até nós por meio de nossas preces e súplicas a Deus.

           Creio em tudo isso. Creio no poder e na força da oração, nas bendições que saem de nossos lábios, nas palavras ditas com poder e autoridade, extraídas do Evangelho, das cartas apostólicas, quando nos revestimos da armadura santa, como está em Efésios. Acredito na proteção divina, na presença dos anjos quando os invocamos com amor e sinceridade, em momentos difíceis onde só podemos contar com o auxílio do Alto. É de lá que as bênçãos são derramadas sobre nós. Das Alturas chove o orvalho da bondade, da justiça, da cura e da esperança.

           Bênçãos para todos nós, pois precisamos delas mais do que nunca. Ninguém deixe de abençoar e todos peçam para ser abençoados. Lembrem-se, pais, de abençoar os seus filhos. Lembrem-se, esposos, de abençoarem-se mutuamente. Um faça o sinal da cruz na testa do outro. Abençoe o seu local de trabalho, a sua casa, o seu carro, a sua comida.

           E termino escrevendo aqui, com amor: Deus vos abençoe!

 

CORPO

 

Marisa Bueloni

   Meu corpo se toca como harpa
As cordas tocadas num harpejo
Puxando da ponta espinho e farpa
Soprando nas chagas com um beijo

 

Meu corpo na pauta da agonia
Compasso binário de solfejo
Meu corpo sofrendo noite e dia
Sarando no alívio que antevejo

 

O bálsamo do spray nas minhas costas
É cânfora no vale e nas encostas
Poema da nota em pentagrama

 

A música é dor regida ao estro
É látego na palma de um maestro
É corpo que ainda sofre e ama

 

SINO OU TAMBOR?

 

Marisa Bueloni

   Meu coração pequenino,

num átimo de temor,

ouve o badalo de um sino

- um sino ou um tambor?

 

Seria o rufar do destino,

a luta, o desatino,

o som confuso da dor?

 

Tambor ou sino, sino ou tambor?

Que som é esse, Senhor?

 

Badala o sino grandioso,

troa o tambor furioso

- são anjos justiceiros, suponho, em terror.

Trazem as taças divinas,

abrem os livros lacrados,

vestem-se de dourados,

que terrível, que esplendor!

 

Que dias, que dias!

Ao som destas melodias,

batidas no bronze

e no surdo das algaravias.

Desperta minha alma curiosa,

desperta uma rosa.

 

Dorme, flor jardineira,

que a Hora não é chegada.

Não é dia ainda, é madrugada.

 

Dorme, rosa do tempo

e deixa que rufem tambores,

que sonhem os sonhadores,

que sinos badalem, eloquentes.

Cuida, rosa querida,

que despertem as gentes.

 

Meu coração pequenino,

às vezes, ouve um sino,

que badala nas alturas,

que se ouve nas lonjuras,

pentagrama de ternuras,

- ah, que sino, Senhor!

 

Meu coração pequenino,

às vezes, ouve um tambor,

que soa como um estrondo,

que bate um bumbo redondo

e para ele respondo:

- Eis! Vem chegando o Amor!

 

A boa palavra

 

Marisa Bueloni

   O bom coração tem sempre uma boa palavra e sabe identificar a ocasião propícia para proferi-la. Assim, quero transmitir bondade neste texto e busco uma gênese particular, de onde brote todo o bem.

           De que tipo de texto surge a bondade? Insisto no tema por causa da agressividade destes tempos, da aridez que encontramos em toda parte, da falta de gentileza, de palavras como “me desculpe”, “por favor”, “com licença” e “muito obrigado”.

           Estas são, basicamente, as boas palavras que abrem um sorriso, fazem retroceder as pressões e tensões, iluminam semblantes e acalmam tempestades em potencial. Saber pedir desculpas, reconhecer um erro, pedir perdão, quantos são capazes disso?

           Um querido e saudoso professor dos meus tempos do ginásio, afirmava: “É muito bom ser importante; mas é muito importante ser bom”. Além desta máxima preciosa, ele nos lembrava de outra coisa fundamental: devemos valorizar tudo o que temos, pois “as coisas tidas já foram um dia desejadas”.

           Há bondade e beleza no gesto de reconhecimento e valorização das nossas aquisições, sejam grandiosas ou pequeninas. Nem sempre compreendemos este fato, este valor, não fomos muito bem educados para cuidar dos nossos pertences, mormente neste tempo em que tudo tem rápido descarte. Quebrou, compra-se um novo, conserto é coisa do passado.

           Vejo desvelo e afeto nas atitudes de quem recicla, recupera, restaura, conserva, dá vida nova ao que estava jogado às traças. Vejo carinho nas mãos laboriosas de quem remenda uma roupa, costura, conserta, tornando útil e aproveitável uma peça danificada.

           Mas nada supera a bondade das palavras. Uma boa palavra vale ouro em determinados momentos e só quem a recebeu sabe o seu valor, a riqueza contida nos seus fonemas. A bondade ainda é revolucionária, na contramão de tudo o que está estabelecido. A delicadeza desarma. Com uma frase de paz é possível transformar, mudar situações difíceis e alcançar um estado incomum de serenidade.

           Cresci ouvindo isso: “o falar é prata; o calar é ouro”. O que é dito num momento de ira pode causar um arrependimento profundo e nem sempre se consegue apagar palavras... Minha mãe dizia que devíamos morder a língua e contar até dez, antes de dizer algo ruim a alguém. Quanta má palavra é dita em momentos de raiva ou de ressentimentos.

           Ninguém se arrependerá de ter sido moderado na língua ou de ter suportado uma afronta em silêncio. Contudo, quão difícil é engolir em seco, sobretudo quando se está coberto de razão.

           Hoje, deixo esta reflexão ao caro leitor. Do quanto vale lutar pela boa palavra. Que cada um tenha uma proposta salvadora. O marido diga à esposa que a ama e vice-versa. Os filhos beijem os pais; os vizinhos se cumprimentem com gentileza; os chefes e funcionários se tratem com respeito e que a harmonia seja a tônica dos ambientes.

           Não, não é fácil. Mas nada que uma boa palavra não possa derrubar os muros da indiferença, da rispidez, da insensibilidade e da falta de amor. Dizia eu, quando mocinha, querendo imitar os grandes frasistas: ”Um só jeito de dizer as coisas salvaria todos os nossos jeitos”.

 

Nada de novo no front

 

Marisa Bueloni

   Não há nada de novo no fundo do mar. Não há nada de novo sobre a Terra. Tudo sobejamente conhecido, esquadrinhado, detalhado, definido, catalogado. Onde haverá um último mistério a ser desvendado? Somente dentro dos corações, talvez, pois o coração humano é um poço de segredos e de coisas irreveladas.

Não há nada de novo sob o sol. “Tudo é vaidade e  vento que passa”, diz o Eclesiastes. Desejaria tanto encontrar alguma coisa novíssima, estupenda e colossal, para ficar eternizada em nossas retinas. Algo assombroso e avassalador, que nos tirasse do sério, que nos deixasse de boca aberta, que nos fizesse parar. Ou pirar. É só mudar a vogal.

     Não há nada de novo na televisão. Os programas se repetem e se desgastam, suas fórmulas se esvaziam.  Tenta-se a apresentadora que um dia foi famosa, mas também não funciona muito bem, falta total de conteúdo. Aguardamos a vida inteligente na nossa tevê.

     Tem algo novo por aí, meu anjo? Você sabe de algo que a internet ainda não tenha trazido à luz? À luz da nossa existência que gira em torno da rede mundial, inexoravelmente? O que seria de nós sem o Google, a esta altura do campeonato?

     Quero ver um sinal no céu, além dos que já tenho visto. Quero ver a Alva que precede a Aurora. Quero ver o Aviso de Deus ressoar pelos quatro cantos do mundo. Quero ver os Novos Céus e uma Nova Terra. Uma incontável multidão anseia por eles. Tudo novinho em folha, saído das mãos do Criador, um presente divino para os homens. Ai desta espécie ingrata, se não souber agradecer a maravilha que Deus tem sonhado para nós.

     Nada de novo no front, além dos aviões de carreira. Era essa a frase? Segundo uma letra do Belchior, o novo sempre vem e daí... Não lembro mais. Mas acho que ele pretendia dizer que o novo acaba imperando. E o que era velho desaparece.

     Quem já viveu meio século como eu vivi, pôde ver algumas coisas virem e irem-se, sumindo da nossa vista. Quem se lembra do conjuntinho de ban-lon? A saia pregueada de tergal? A camisa “Volta ao mundo”? O perfume “Lancaster”? Cadê um LP? Um 78 rotações? E a vitrola, o toca-discos? A bebida chamada “Cuba libre”? Alguém sabe dançar o “twist”? Gente do céu, quanta coisa veio e se foi num rabo de foguete. Tanta coisa velha e ultrapassada, que fez furor um dia.

     O que faz furor hoje? Os celulares estupendos, as tevês imensas, os carros que só faltam voar, as tecnologias assombrosas. Contudo, nem que a Madonna, o Ricky Martin ou a Lady Gaga façam uma declaração de arrasar quarteirão, nada mais pode nos arrebatar. A emoção está congelada numa cena de Spielberg e fica por conta do solo particular de cada um.

     Falando nisso, ainda me encantam os boleros, Luiz Miguel, Trio Los Panchos, Ray Conniff, os tangos, as valsas, a pintura, a poesia, aquela literatura que a gente lê com o coração aos pulos. Ainda me estremecem os poemas de amor, alguns mistérios e revelações feitas com a pureza do medo.

     E se alguém souber de uma bela novidade, um astro vindo em direção a Terra, alguma flor recém-catalogada, um peixe exótico, uma ilha nova, passa um e-mail pra mim?

 

A crise vai bem...

 

Marisa Bueloni

   Meu pai diria assim: “a crise vai bem, obrigado”. Melhor do que nunca! Acredito que o povo brasileiro, neste momento, está indignado com a crise política, econômica e moral que se abateu sobre a nossa pátria soberana. Leio e ouço que até quem votou na presidente está triste e revoltado com ela, por causa das promessas de campanha que caíram no vazio. Trabalhadores se sentem traídos, empresários estão cansados de lutar com os impostos altíssimos, aposentados e pensionistas apreensivos com o absurdo déficit da Previdência Social...

     Sou uma pessoa histórica. Quando Jânio renunciou, eu tinha 11 anos. Ouvi a notícia no rádio, ao lado da minha mãe. Ela pediu que eu fosse avisar meu pai, que trabalhava perto de casa. Fui correndo. Avisei também os meus tios e primos, muitos deles riram de mim. Até que a informação foi ganhando força e o país todo mergulhou na perplexidade geral.

     Não sabemos se a praga janista ainda ronda a cidade sem esquinas, a cidade mais famosa do Planalto Central, a capital que foi o sonho de um presidente mineiro cheio de sonhos. A cidade onde hoje é gestada uma situação que parece irreversível. Como dominar a tempestade? Só mesmo o nosso amado Mestre, Aquele que tem o poder de acalmar o vento e o mar.

     Caro leitor, confesso que tento não abordar tais assuntos neste sagrado espaço da minha crônica. Escrevi e repito que pretendo levar um pouco de poesia, de sonho e de esperança nestas linhas semanais. Porém, como objeto e sujeito da história, como todo ser humano vivo o meu tempo, refletindo sobre fatos que nos estremecem e nos fazem pensar.

     Viu a foto do menino sírio, encontrado morto numa praia da Turquia? A família pretendia chegar ao Canadá, numa fuga desesperada. Morreram a mãe e os dois filhinhos, só o pai sobreviveu ao naufrágio. A imagem do pequeno mártir de três anos correu a internet, as redes sociais, os telejornais, causando intensa comoção.

Contudo, a foto e o fato podem esconder algo inimaginável até para os mais lúcidos escatologistas, pessoas atentas ao rumo da nossa história. A vida urge e quase não se tem tempo de chorar as mortes, as perdas dolorosas deste tempo irreconhecível. Estaríamos à beira de uma catástrofe anunciada?

     O que acontece com este frágil mundo? Ele nos parece sempre tão poderoso e impávido, seus chefes de Estado elegantes e sorridentes, presidentes e líderes de grupos que comandam a economia mundial caminhando em marcha serena. Ainda existem algumas monarquias, reis e rainhas que reinam em seus tronos inatingíveis aos olhos da plebe.

A crise é mundial. Tigres e dragões também perdem a força. Recentemente, o Brasil foi rebaixado na nota de crédito e teve sua reputação afetada nos meios financeiros internacionais. Existe aqui uma crise interna. Qualquer cidadão brasileiro sabe conversar sobre isso e, sobretudo, sabe observar os que roubam e se locupletam, deixando faltar aos pobres; os que prometem e depois decepcionam amargamente. Que Deus os julgue em Sua infinita misericórdia.

 

Descobri um novo planeta

 

Marisa Bueloni

   Este ano, no dia do meu aniversário, um novo planeta foi descoberto pela Nasa. Trata-se do “Kepler 452b”, que orbita em torno de uma estrela parecida com o nosso Sol e que completa sua volta em torno do astro em 385 dias. Seu diâmetro é 60% maior do que a Terra e já se especula se seria habitável.

          Trata-se de um exoplaneta, nome dado a planetas que existem fora do nosso sistema solar. A massa e a composição do “Kepler 452b” não são ainda conhecidas, mas acredita-se que seja rochoso como a Terra. Em busca de mais informações, leio que existem 1.030 planetas catalogados e que os cientistas encontraram 11 corpos em zonas possivelmente habitáveis.

           Em junho, um menino de 15 anos também descobriu um novo planeta durante estágio em um observatório, na região central da Inglaterra. Recentemente, uma equipe de cientistas brasileiros da USP descobriu um planeta semelhante a Júpiter. São os “caçadores de planetas”.

           Modestamente, anuncio que de tanto observar o céu, também descobri um novo planeta. Só não comuniquei à Nasa ainda. Quando morava no campo, exercitei-me muito nesta contemplação noturna. Mas, o luar cá da cidade não tem aquela saudade do luar lá do sertão, nós sabemos. Contudo, sou uma contumaz observadora das estrelas profundas e, às vezes, penso que vejo coisas.

           Com dor no pescoço de tanto olhar para o alto, sem telescópio nem luneta, a olho nu, tive uma visão espetacular de um novo planeta! Ele é belo, azul como a nossa Terra, e nele habitam seres humanos. São pessoas éticas, inteligentes e sensíveis, que sabem respeitar o próximo, o espaço do outro, a opinião alheia e comportam-se com esmerada educação e gentileza. Lá, “todo poder emana do povo e por ele é exercido”. Sem nenhum traço de corrupção, seus líderes governam pelo bem dos povos e nações.

           Neste planeta, observa-se um extremado amor à natureza e a toda forma de vida. Nenhum sinal de poluição, nenhuma chaminé expelindo gases tóxicos. Não há registro de incêndios em canaviais. As crianças e idosos não apresentam doenças respiratórias. Existe cura para tudo. Os rios são limpos, os mares também. A fauna é riquíssima e a flora pode ser comparada à da Terra de antigamente. As florestas estão preservadas, a biodiversidade é fantástica e os habitantes têm todos os bens necessários à sua disposição. A vida flui.

            Que planeta! Ele orbita em torno de uma estrela chamada “Sonho”. Eu o batizei de “Terramor 2015”. Pretendo encontrar um nome mais científico para ele, a fim de ganhar credibilidade, ou a Nasa não me dará bola. É preciso catalogar logo, antes que ele desapareça em algum buraco negro do espaço e nunca mais possamos vê-lo, tal um cometa que passa de século em século.

Ah, eu o vi! Belo e exótico! De natureza luxuriante, brilhando no espaço, feito uma bola de fogo que uma noite passou no céu do Campestre, e me encheu de assombro. Certamente, algum meteorito que se incendiou ao entrar na nossa atmosfera.

Sempre gostei de astronomia, mas jamais imaginei que descobriria um planeta desta qualidade. Foi um presente de Deus para mim.

 

O tempo azul

 

Marisa Bueloni

   Ao começar minha crônica semanal, penso no leitor. Que assunto levar a ele, como tocar e encantar seu coração. Estaria ele cansado da vida, das trágicas notícias à sua volta, da aspereza destes dias de estiagem? Vejo como o tempo seco mexe conosco. As viroses parecem aumentar, deixando muita gente combalida e sem energia. Os pequeninos também sofrem e é uma preocupação constante com a saúde.

Então, traço um esquema mental e, na condição de também leitora deste jornal, imagino que o leitor já passou pelas outras páginas, leu notícias diversas, artigos sobre política ou economia, e talvez esteja precisando de um pouco de alento. Sim, seria muita pretensão da minha parte achar que, nestas humildes linhas, seja capaz de transmitir ânimo e coragem. Contudo, tento. Luto com as palavras e com a temática da semana, para brincar com o sonho.

Desenho na página branca do computador um tempo de bonança e de ventura. Nada de sobressaltos ou presságios. Que todos os perigos se afastem de nós e possamos prosseguir serenos na longa estrada da vida. Penso num tempo azul, azul, como a cor do céu que desaba sobre a nossa insignificante existência.

          Um tempo azul é aquele em que estamos em paz conosco, com nossa consciência e com o próximo. É o tempo de sentir regozijo, alegria, de sentir o amor de Deus. Por vezes, passamos temporadas de tribulação e desassossego, sem nos dar conta do quanto ficamos exauridos. Sabemos perfeitamente quando necessitamos de uma pausa, de um repouso. O corpo emite sinais importantes e devemos prestar atenção neles. Ignorá-los pode ser perigoso.

           Quem não tira férias há muito tempo, comece a pensar nisso. Quem não sai da frente da pia e do fogão, tente comprar algumas coisas prontas para comer e reserve para si mesmo algumas horas de lazer. Quem é escravo do trabalho e do dinheiro, revise seus conceitos. Quem está cansado da rotina e da mesmice, aprenda algo novo, lance-se neste desafio de descobrir as muitas possibilidades da vida.

           Todo o tempo que vier depois destas descobertas será um tempo azul. Será o tempo que teremos para contemplar o céu. Serão as horas abençoadas para ouvir música. Os longos silêncios, quando isso é possível, na cidade ou no campo. Já morei no campo e me iludi. O som alto também chegou por lá. Nem sempre a sinfonia de pardais é o que prevalece nos recantos ditos bucólicos. Agraciado é aquele que, seja onde for a sua casa, vive num local de paz e de sossego.  

Lutemos por este tempo azul, pelo desfrute de  algumas horas sublimes, momentos de enlevo e de doçura. Aquele passeio que nossa alma precisa dar de vez em quando, ou adoecerá mortalmente. Que cada um aprenda o valioso exercício de encontrar no relógio este tempo precioso, a sabedoria para administrar seus anseios e projetos, salvar sua saúde, seu bem estar, sua lucidez.

           Envolvidos pela crise política e econômica do país, é inevitável a nossa inquietação. Mas não escreverei sobre isso aqui, caro leitor. Meu desejo é que você se encante, sinta-se em paz e brinque com o sonho...

 

 

Piracicaba que eu adoro tanto

 

Marisa Bueloni

Também eu desejo celebrar o aniversário da “Noiva da Colina”. Com esta referência ao lindo véu nupcial, lembramos a atual situação do nosso decantado rio e somos obrigados a admitir que, sim, temos algo a lamentar em mais este aniversário de Piracicaba. Talvez o mais belo e digno presente que se possa lhe dar seja a recuperação do seu rio.

Para quem chegou a uma idade respeitável, é simples olhar para trás e constatar as transformações pelas quais a cidade passou. Lembro das ruas da minha infância, como se fossem passarelas douradas de sol. As calçadas limpas, pouco trânsito, a vastidão dos quarteirões quase vazios.

Era maravilhoso descer a rua Governador rumo ao centro da cidade. Andava-se a pé, com segurança. Havia também o encanto dos bondes, mas a graça era caminhar sob o céu de anil, brilhando em nossa alma juvenil. Em poucas décadas, muita coisa mudou. A paisagem urbana ganhou novos contornos, em função de novas perspectivas e do progresso bem-vindo.

Transformações são benéficas, sobretudo se estão voltadas para a qualidade de vida da população. Algumas mudanças vieram para somar e trazer esta qualidade; outras foram implantadas de modo equivocado e talvez merecessem uma revisão.

Piracicaba já não é a cidadezinha cheia de graça, como num poema de Quintana. Apesar dos parquímetros, está cada vez mais difícil encontrar vaga para estacionar. Os veículos tomam conta de todo espaço disponível, não raro obrigando o motorista a parar em local proibido numa emergência. O número de motos triplicou, exigindo extrema atenção no trânsito. Há corredores comerciais em muitos bairros e percebemos os dois lados do progresso: a multiplicação da presença comercial em seus vários segmentos, ao lado da crescente dificuldade para nos locomover em nossas atividades e compromissos.

De minha parte, louvo a clínica, o laboratório, o banco, a farmácia, os estabelecimentos que oferecem algumas nobres vagas para estacionar. Tem sido uma bênção. Também nestes locais, observa-se a reserva para o deficiente e o idoso, embora sejam vagas desrespeitosamente utilizadas por pessoas jovens e saudáveis.

Mas a grande questão é a ideia de se privilegiar os veículos, em detrimento dos transeuntes, de quem anda a pé. Nossas avenidas são perigosas para quem ousa atravessá-las. Temos um belo projeto urbano: tornar nossas ruas mais seguras, sobretudo para as pessoas idosas.

Às seis horas da tarde, da Estação da Paulista, observo o intenso trânsito na avenida dr. Paulo de Moraes. É algo surreal. Um movimento que a cidade vai absorvendo naturalmente. Piracicaba cresceu e quando há desenvolvimento, há desafios constantes.

Piracicaba sempre será a nação da minha alma, o lugar de onde nunca saí. Por isso, celebro a cidade que amo tanto. Amo teus prados e horizontes, as serras e os montes onde nasci, tal como se canta no hino de amor a esta terra. A saudade que punge e mata nos assalta sempre que dela nos afastamos. Ir é bom, voltar é melhor. E quando se chega a Piracicaba, o coração bate mais forte. É a nossa cidade, nosso lugar no mundo, solo abençoado. O lugar onde o peixe parava...

 

A grande viagem

 

Marisa Bueloni

   Viver é a grande viagem, o supremo e fascinante mistério. De indagações é feita nossa passagem pelo planeta azul. Neste solo gentil depositamos tantas lutas, sonhos e ideais. Eles valem toda a nossa existência.

           As inquietações pulsam em nossas veias e é preciso estar atento para não perder o principal. Há questões candentes nos esperando todos os dias, problemas para resolver e consultas médicas que não podem ser adiadas.

           As belezas inesperadas a cada milha, os silêncios eloquentes e as algaravias incompreensíveis são parte do sonho. Mesmo nas inevitáveis tribulações, há momentos de reflexão para ajudar no entendimento.

           Na dor, aprende-se. Preciosa aprendizagem dos sentidos. No luto, no sofrimento, na tristeza, quanto se aprende. A vida nos oferece a sublime lição da humildade, da pequenez que nos cabe, com a certeza de que somos mera poeira habitando o universo.

           Tudo que tocamos existe e não é simples miragem. Gosto das frases do tipo “as coisas existem porque as vemos”. No entanto, existem por si mesmas e uma porta é uma porta, assim como uma rosa é uma rosa, é uma rosa.

           A geladeira, o fogão, os mantimentos guardados no armário da cozinha brilham de forma admirável para nós. Não sabemos agradecer a água da pia, do tanque, do chuveiro e ela é uma bênção diária. O sol que nos acompanha nesta grande viagem ultrapassa todo conceito de luz e de calor que conhecemos.

           Importa saber o valor de cada coisa à nossa disposição e, nessa escala hierárquica, eleger prioridades vitais. Hoje, a questão da escassez hídrica nos leva a uma consciência nova, a uma importante mudança de hábitos. Nossa grande viagem não teria sentido sem este aprendizado.

           Aprendemos a economizar, a usar de forma criteriosa um bem que é nos é precioso, caro. Aprendemos a reciclar, a consertar o que se quebrou, a aproveitar o que ainda tem utilidade e que pode ser crucial num momento difícil da grande viagem. Aprendemos que não é preciso consumir com exagero, acumular, armazenar em excesso, e passamos a ser seletivos, críticos, objetivos.

           Na busca de um equilíbrio saudável, procuramos a essência e não a aparência. Estamos atrás de uma verdade que nos convença de que ser feliz é estar em paz, com os deveres em dia e com as relações de amor e de amizade sempre fortalecidas e gratificadas.

           Não há nada mais belo do que a paz de espírito e esta é fundamental para a grande viagem. Será sem proveito a aventura de quem viaja sem paz na alma. Não terá tempo de ver a rosa branca desabrochar; não poderá comer com gosto uma comida saborosa; não saberá fazer uma prece de agradecimento a Deus e não conhecerá o amor.

           Que esta grande viagem nos traga a beleza. Na hora da graça. Com a luminosa convicção de que a vida é a Lei. Há um caminho reto que faz tudo perfeito e harmonioso. Quebre-se esta regra universal e instala-se o caos perverso.

           Uma boa viagem para todos nós. Que a partida seja suave e a chegada ao porto seguro supere tudo o que vimos pelo caminho.

 

Palavra & Sonho

 

Marisa Bueloni

   Sou movida a sonho. Alimento-me do sonho. Na trilha da palavra, habituei-me a sonhar o mundo a partir da visão dos poetas. O poeta quer mudar o mundo, pois vê muito além da paisagem cinza das cidades, além dos limites da percepção. Conformado e cheio de consolações, ele aceita o mundo, porque é dele que extrai a sua poesia. A realidade, o cotidiano é a sua matéria-prima e o contraponto é justamente o sonho.

           Olhos que esquadrinham o seu entorno, o poeta faz um relatório completo desta experiência arrebatadora. O que é comum aos outros é extraordinário para ele; o que é invisível aos olhos da maioria torna-se um cenário de perplexidade e luz para sua alma atenta.

           O poeta cuida das coisas simples e das complexas com a mesma paixão. Ainda que ignore alguma área da ciência e do conhecimento, tateia com vocábulos certeiros e posa de eminente conhecedor do tema. É a fábula da palavra, que ele sabe manejar com grande efeito.

           O ofício do poeta é tratar o fonema, a música que emana das sílabas. Nas mãos do poeta, a palavra ganha um poder infinito, um peso sinalizador de leveza e profundidade. Se ele a escreveu, é porque a escolheu entre um milhão delas.

           Não há limite para o reino das palavras. Se o universo é infinito, infinitas são as suas possibilidades. Assim como infinitas são as combinações das notas musicais, que resulta numa melodia, compor com palavras é treinar a prática do infinito. Lá, onde habita o sonho.

           É com a palavra que se pode expressar a esperança no ser humano. Até Zeca Pagodinho celebrou com talento esta criatura que nos é tão familiar. O poeta, secretamente, guarda esta esperança no peito. Ele acredita no amor, na bondade, nos gestos de quem compartilha. Volta e meia, dá mostras de que acredita na flor, nas estrelas e no temido mundo das assombrações.

           Vaga o poeta sobre o mapa da noite. Vaga sua alma pelas avenidas das indagações. E quando um poeta pergunta, é porque a coisa é grave, é séria. Ele não teme os temas, ele não foge ao seu ofício de perguntar, quase sempre.

           Na corrida do “vale tudo”, o poeta faz uma pausa, com sabedoria. Ele sabe que é preciso ser ético, pois a poesia não prescinde da honra, do amor à natureza e ao meio em que vive. O poeta tem valores e respeita os que são vigentes na vida de todos. Sabe que é preciso transigir, dialogar, temperar a vida com especiarias exóticas. Entende que é preciso harmonizar, ceder. E quando a ferocidade da indignação o exalta, ele crê que denunciar pode tornar ainda mais bela a sua missão.

           Nem sempre o poeta sonha ser construtor de alguma coisa. Para ele, basta a palavra como arma fundamental. Mas quando o poeta crê na paz, é bonito. Ele sabe que a paz vem de profundas mudanças nas estruturas políticas e sociais, mas teme mexer com isso. Pode não haver rima rica.

           Alguns poemas acenam com a idéia de que nem tudo está perdido. Que é possível curar o mundo, salvar a humanidade e que reverter este quadro insano de barbáries e atrocidades diárias é questão de tempo.

           Ah, poeta! Haverá tempo?...

 

 

Graça feminina

 

Marisa Bueloni

   Imagino que cada um tenha um gosto em particular e sinta necessidade de andar com determinados objetos. De minha parte, confesso que dentro da minha bolsa cabe um mundo de coisas que julgo imprescindíveis. Espelhinho, pinça de sobrancelha, lenço, batom, lixa de unha, escova de cabelo, caneta e cartões bem guardados. Também lá estão num compartimento especial as cartelas de comprimidos para dor. Não faltam os remédios de praxe, o filtro para as mãos e elásticos para o rabo-de-cavalo nas aulas de Pilates.

É preciso guardar na bolsa as chaves do carro, da casa, chaves das casas das filhas, e de uma irmã querida que fez questão de dar uma cópia para mim. Uma bênção dos céus! O trabalho maior é retirar tudo isso para passar na porta rotatória do banco.

Ninguém anda sem documentos. Ali estão, dentro da carteira de couro, juntamente com a medalha exorcizada de São Bento, presente de um amigo santo. Não pode faltar o terço, para rezar nas salas de espera da vida.

           As bolsas de hoje vêm com compartimentos externos para o celular. Ótimo! Magia do fabricante. Bolsa faz parte do vestuário feminino e é raro encontrar uma dama que não porte esta peça indispensável. Há verdadeiras “maletas” com repartições internas e zíperes externos. Armadilhas perigosas, pois existe o risco de conseguirmos “perder” um objeto ou um documento dentro da própria bolsa...

           Bolsa de mulher será sempre um capítulo à parte, em qualquer tentativa de descrever o que representa esta sacola de couro, cuja ancestralidade se repete nos braços e ombros ao longo da história. Mas há outras coisas que pertencem à eterna e louvada graça feminina.

           Ouve-se dizer: homem fica pronto num minuto. Claro. O varão toma um banho, veste uma calça, uma camisa, cinto combinando com o sapato e fica lindo. A mulher não consegue sair do banho e se vestir, sem antes secar o cabelo e fazer uma escova caprichada. Aí, vem a maquiagem, que também exige cuidados, de acordo com a hora, o ambiente e a  ocasião.

           Maquiagem feita, é preciso pensar na roupa. Vestido, saia ou calça? E tem ainda a opção da bermuda. Blusa, camisa, mangas longas ou curtas? E as unhas? Há mulheres que não se sentem arrumadas se não estiverem de unhas feitas. Para o varão, basta cortá-las rente e pronto.

           Mulher que se preza gosta de se enfeitar. Como diria Clarice, “ornada como as mulheres bíblicas”. Entram em cena os brincos, pulseiras, anéis, gargantilhas, colares, cintos, cachecóis, lenços, relógios.

           Sapato e bolsa. Aí vem ela, a bolsa. Tem de caber metade do universo, se for para ir trabalhar. Será pequena e leve para sair à noite. No dia-a-dia, uma bolsa prática e sensível, que atenda aos apelos da sua dona.

           Tudo combinado, escolher entre perfume ou colônia. Depende do horário e do local para onde se vai. Óculos escuros, se a saída é diurna e o sol brilha lá fora. A mulher quer competir com ele.

           Por isso, os homens reclamam que as mulheres demoram muito para se arrumar. Ela cumpre um sério e gracioso roteiro que põe à prova seu bom gosto, elegância e bom senso.

 

Começar de novo...

 

Marisa Bueloni

   O que é que muitos de nós faríamos, se nos fosse dada a chance de viver de novo a nossa vida? Parece fazer mais sentido perguntar a quem já viveu, pelo menos, meio século. Do alto de 50 respeitáveis anos, é permitido olhar para trás e cofiar o queixo. Passar a mão no cabelo. Tirar uma lasca de unha. Suspirar. Deixar correr uma lágrima.

     Mas para um jovem que deu um mergulho num lago, bateu a cabeça numa pedra e ficou paraplégico, a pergunta também caberia. Se ele pudesse viver novamente a sua vida, naquele momento do salto, ele não teria pulado, sem antes indagar a alguém da vizinhança se havia pedras no fundo.

Quando se é jovem, não se faz esta pergunta a ninguém: há pedras no fundo deste lago? O corpo quer mais é viver a aventura da água e da graça. Diante da tragédia que prostrou o corpo, qualquer suposição posterior lacera a carne e a alma. Ah, se eu pudesse voltar atrás!... Se eu pudesse!... Se alguém tivesse me avisado!...

     Contudo, chega-se a um ponto onde resta-nos olhar pelo retrovisor da vida e o que está feito, está feito. Para uns, são colhidas glórias sobre glórias; para outros, dores, perdas, lutas, sofrimento. Seria a vida injusta e desigual? Mas há um céu que nos protege.

     Ah, meu Deus, e a nós, pobres mortais, o que imaginar? De minha parte, será que teria feito exatamente as mesmas coisas, cruzado com as mesmas pessoas ao longo do caminho? Não creio em script pronto. Não. Cada um escreve a sua história. Cada um tem o livre arbítrio para agir de acordo com sua vontade e inteligência.

Não sei se minha vida teria tomado outro rumo, se tivesse ido para São Paulo estudar jornalismo, na minha primeira faculdade. Teria sido eu uma jornalista de renome? Estaria hoje, quem sabe,trabalhando na tevê? Só pensamos numa carreira glamourosa. Ninguém quer o anonimato, o arroz com feijão do dia-a-dia modorrento e sem graça, digitando anúncios ou revisando as colunas das celebridades. Todos querem seus 15 minutos de fama que, dizem, estão virando 15 segundos...

Talvez fizesse o curso de desenho, sempre tão protelado! Poderia ter cursado Psicologia em vez de Pedagogia. Também Filosofia, meu sonho até hoje. Ah, eu não teria abandonado o tratamento para a coluna, ainda antes da primeira cirurgia. Possivelmente, tentaria morar um tempo numa beira de praia para saber como é. Tanta coisa...

Nos anos 70, as pessoas ainda noivavam e casavam. Constituí família, construí um lar maravilhoso e fui felicíssima no casamento. Levei muito a sério aquele “até que a morte nos separe”, pois só assim nos separamos.

Suponho, enfim, que se pudesse viver novamente a minha vida, teria ousado um pouco mais, conforme nos pedia um professor na faculdade: “Por favor, ousem!”. Mas, o que fiz está feito e, como propôs Borges, creio que, se não dei muitas voltas a pé no meu quarteirão, contemplando as flores e as pessoas, quem sabe ainda dá tempo?

E você, caro leitor, se pudesse novamente viver a sua vida, o que você faria?

 

 

Para guardar no coração

 

Marisa Bueloni

   Há coisas belas demais e que não podem nunca ser descartadas. Possuem um significado especial e delas não conseguimos nos livrar de modo algum. São caixas cheias de saudades, guardados que dizem respeito somente a nós e ali permanecerão, até que, depois da nossa partida, os filhos ou um irmão querido venha a nossa casa fazer a limpeza de praxe...

           Temo por esta limpeza. Assim, mantenho tudo em rigorosa arrumação, pois quero que encontrem ordem e organização nos meus armários e gavetas. Estas tarefas fazem parte da vida e pensar nelas me dá um calor maravilhoso no coração.

           Há muito a ser preservado enquanto vivemos. A mesa da sala de jantar e sua história de décadas. A abençoada bandeja de inox que serviu tanto e continua tendo sua utilidade no universo doméstico. Todos os retratos na parede, todas as fotos em branco e preto, ainda não emolduradas. Sim, como doem!... Mas estão ali, ao nosso alcance, testemunhando um passado de sonho.

           Guardei os lenços do meu lindo. Guardei a carteira com os documentos e até a carteirinha do plano de saúde. Conservei comigo dois casacos, um deles bem grosso de lã, presente meu a ele. Nestes dias frios, tem me agasalhado a alma.

           Guardo algumas coisas essenciais. Para tocar e sentir na pele a saudade, a força de um tempo que, se não volta mais, pelo menos é revivido na memória como pequenas joias de afeto e beleza.

           Onde mais guardar, senão no coração, estes tesouros que cada um conhece muito bem? O coração é a casa do amor, a profunda morada do bem e da bondade. É nele que repousam as nossas relíquias mais importantes, ainda que não mais existam fisicamente.

          Ao longo da vida, algumas coisas vão se despedindo de nós, deixando de existir, por diferentes motivos. Um dia, tivemos um bem material que nos foi muito caro; uma bicicleta com marchas, com a qual nos divertimos; uma casa muito bem decorada e cheia de quadros; livros, livros e mais livros; colchas bordadas, porcelanas, muitas malas, bolsas e sapatos.

           O tempo passa e já não precisamos de muita coisa. Diminuímos visivelmente os objetos à nossa volta. A casa passa a se chamar “aconchego” e nela cabe o necessário. Tudo o mais, está guardado no coração. Mas a cristaleira majestosa que a sogra deu de presente ainda compõe a sala, alvo de lindos suspiros e comentários.

           Assim é a vida. Tempo de juntar e tempo de lançar fora. Tempo de rir e tempo de chorar. Tempo de compreender que as lembranças são nossa maior riqueza, sobretudo se a sorte de uma vida bonita foi o mais belo presente de Deus.

           Então, guardemos essa vida no coração. Guardemos os anos 60, a margarida, os festivais de música, as guitarras agudas e os hinos libertários dos nossos ídolos. Com respeito e amor, guardemos.

           Guardemos a pantalona colorida, o chinelo de couro, a blusa de gola rulê canelada e os livros da faculdade. Guardemos o início da vida profissional, o primeiro emprego, o noivado, o casamento, os filhos e a dívida de viver. Honradamente, guardemos no coração.

 

 

Inspiradora Vida

 

Marisa Bueloni

A vida é o que me inspira. Lembro a escritora Clarice Lispector, ao afirmar que não se acostumava a uma vida fácil. De fato, acabamos nos adaptando às múltiplas dificuldades da nossa caminhada e, num dado momento, se tudo parecer fácil ou simples demais, o santo desconfia...

Quem já se acostumou a lutar, sentirá falta da peleja diária se, de repente, as coisas começam a ficar suaves demais pela estrada a fora. As repetidas tensões do cotidiano formam em nós a espada necessária para combater o bom combate. Terminar a corrida, guardar a fé.

Antes de me deitar, tenho o hábito de rezar na lateral da cama, de joelhos. De mãos juntas e os dedos entrelaçados, deposito toda minha esperança na oração. Nada pode perturbar a concentração desta hora. Ali, repasso o meu dia, o que fiz e o que deixei de fazer. É quando o sentimento de vida bate mais forte no peito.

Um amigo querido, sabendo da mulher rezadora que eu sou, tem dúvidas sobre isso, se Deus ouviria nossas preces. Ele acha que o Senhor é ocupado demais para ficar prestando atenção ao que rezamos ou pedimos. Respondo que o Todo-Poderoso é onipresente, está em toda parte, e tem ouvidos sensíveis.

Enfim, sou movida à vida. Vida é o que me encanta e desencanta. Por mais trágicos pareçam os dias e brutais sejam as notícias, a esperança sobrevive na centelha viva do nosso anseio. Assim, tal a atriz Marieta Severo, também quero ser otimista e esperar que tudo melhore em nosso país.

Mas, em se tratando da vida, digo sempre que monto campana. Em geral, estou de vigia, esperando pela beleza. Não dorme quem guarda Israel. Não durmo eu, sentinela das coisas profundas. Começo pelas mais simples, as que chegam primeiro ao coração.

Especial é o momento em que captamos a beleza do invisível, a nobreza do que nos arrepia, a sensação de que o corpo ultrapassa a si mesmo, qual um cavalo solto na planície. Então, de minha parte, busco vos dar isso: um texto que represente a redenção. Um poema de vida e de morte. Algo muito óbvio, muito evidente, necessária redundância dos tempos.

Por amor à vida, estou disposta a negociar qualquer coisa em troca da beleza. Aquilo que nos toca a alma: sabedoria, liberdade, inteligência. Que as seduções passageiras deste mundo não nos afastem da verdadeira vida, esta que nos traz a capacidade de pensar e de sermos cidadãos críticos.

No reino da esperança, a vida dorme. Ah, que espetáculo divino é o seu despertar. Que ato portentoso acontece, então, neste reino encantado onde moram os sonhos. Quando os elementos saem dos seus casulos, abrindo-se para o que não se chama morte.

Partilho esta ousadia com os leitores. Sonhar faz um bem enorme à alma, ao corpo, à mente, à vida. Se vai nos dar longevidade, não sei. Talvez nos rejuvenesça visivelmente, ou nos torne vencedores de alguma coisa, de alguma luta maravilhosa pela qual valha a pena lutar.

Da matéria dos sonhos

 

Marisa Bueloni

     Gosto muito desta frase de Shakespeare: “Somos feitos da mesma matéria dos sonhos”. Este dito me faz sonhar. Creio que nossos sonhos são a nossa esperança, desde o momento do nascimento. Vamos crescendo, reconhecendo as diferentes etapas da vida e os sonhos estão presentes em todas elas.

           Jamais deixar de sonhar, eis um lema fundamental para cumprirmos bem nossa caminhada terrena, sem perder o interesse pela vida e a curiosidade que nos faz vivos, a cada respiração de nossa caixa torácica.

           É ali, dentro do nosso peito que os sonhos vivem, junto do coração. A morada dos sonhos deve ser a casa mais bela que jamais vimos. Por onde anda a infância querida, na aurora da vida, quando os sonhos começavam a se formar dentro de nós?

           E depois, nossa linda juventude, página de um livro bom, pronta para ousar e fazer dos sonhos um vislumbre de realidade, de concretude e solidez, coisa de poder pegar com as mãos e guardar numa caixa querida.

           Na juventude, somos todos sábios e poderosos, com força mesmo para transformar o mundo. É nesta maravilhosa parte da vida que os sonhos fazem uma revolução em nossa alma. Mesmo que nos atormentem dia e noite, que nos tirem o sono, ainda assim somos reféns de sua beleza e vigor.

           Impossível ver um jovem sem sonhos. É próprio da juventude o dom de sonhar e criar pequenas revoluções neste espaço de anos que acabará dando lugar à maturidade, quando os sonhos começam a nos fazer perguntas difíceis.

           O que fizemos dos sonhos da juventude? A interrogação incendiária abrasa nossa inteligência, nossa vontade. Para onde vamos? Sim, ainda ontem éramos jovens, dará tempo de avançar e realizar o que sonhamos.

           O tempo vai passando, a vida vai tecendo suas histórias, suas tramas, escolhidas ou não. E o sonho, tão inteiro e vivo, recusa-se a morrer. Ó, não! Não morra sonho meu! Vem me buscar agora que estou pronta para sonhar.

           Quando é o momento de sonhar? Quando acordo e abro a janela, recebendo na face um raio do luminoso sol? Quando rezo, quando tomo banho, quando sinto que estou atravessando a noite escura e peço ajuda aos anjos? Não sei qual é a hora de sonhar, mas deixo que os sonhos me envolvam como a roupa que visto. Nada mais que isto.

           Esta matéria dos sonhos percorre a nossa vida, junto conosco, a cada passo. Não se vai até a esquina, sem a esperança do sonho que nos sustenta. Sonhar faz parte do coração humano e cada um sabe o que mais projetou e cultivou dentro de si.

           É ali, dentro do peito, no mais recôndito de nossa intimidade, que moram os sonhos. Alguns já adormeceram, cansados da viagem. Outros insistem em vigiar. Benditos os sonhos que nos cutucam e nos instigam. Penso que são os melhores e mais importantes, porque nos mantêm vivos.

           Com a alma repleta de novos dias, vamos em frente. Carregando um imaginário buquê de rosas nos braços, acenando de longe para a esperança, finalmente abrimos o livro da coragem. O livro que a maturidade da vida nos dá. Novamente: o livro dos sonhos...

 

 

SINO OU TAMBOR?

Marisa Bueloni

     Meu coração pequenino,

num átimo de temor,

ouve o badalo de um sino

- um sino ou um tambor?

 

Seria o rufar do destino,

a luta, o desatino,

o som confuso da dor?

 

Tambor ou sino, sino ou tambor?

Que som é esse, Senhor?

 

Badala o sino grandioso,

troa o tambor furioso

- são anjos justiceiros, suponho, em terror.

Trazem as taças divinas,

abrem os livros lacrados,

vestem-se de dourados,

que terrível, que esplendor!

 

Que dias, que dias!

Ao som destas melodias,

batidas no bronze

e no surdo das algaravias.

Desperta minha alma curiosa,

desperta uma rosa.

 

Dorme, flor jardineira,

que a Hora não é chegada.

Não é dia ainda, é madrugada.

 

Dorme, rosa do tempo

e deixa que rufem tambores,

que sonhem os sonhadores,

que sinos badalem, eloquentes.

Cuida, rosa querida,

que despertem as gentes.

 

Meu coração pequenino,

às vezes, ouve um sino,

que badala nas alturas,

que se ouve nas lonjuras,

pentagrama de ternuras,

- ah, que sino, Senhor!

 

Meu coração pequenino,

às vezes, ouve um tambor,

que soa como um estrondo,

que bate um bumbo redondo

e para ele respondo:

- Eis! Vem chegando o Amor!

 

 

Memória

Marisa Bueloni

     O que dizer dos dias que passam como se não passassem? O que pensar da estagnação que, às vezes, toma conta de nossa existência, causando desalento? É quando procuramos pela poesia da vida, presente em toda parte, em todos os momentos. Ela sinaliza que estamos vivos e interessados em viver.

     A poesia do cotidiano apresenta-se tão bela e tão pequenina. Pode passar despercebida e então teremos perdido um grande espetáculo. Drummond escreveu sobre as coisas lindas, muito mais que findas. Afinal, são as que ficarão.

No seu poema “Memória”, ele reflete sobre “amar o perdido”. Sim, isso deixa confundido qualquer coração. Temos essa obstinação de voltar os olhos para o passado e contemplá-lo com um pouco de sofrimento, de saudade, vasculhando as preciosidades que um dia nos fizeram sonhar.

O poeta mineiro tece palavras para as coisas tangíveis, que “tornam-se insensíveis à palma da mão”. Nem tudo o que tocamos tem o poder de nos tocar. É preciso uma profunda visão de mundo para alcançar o discernimento claro do que de fato importa, sobretudo a noção de certo e errado. Sem um mínimo de sensatez ou juízo, é fácil entrar em confusão.

O poeta termina seu poema assim: “Mas as coisas lindas / muito mais que findas / essas ficarão”. Penso que ficará para todos nós a sublime poesia do invisível, do intocável, do inatingível. Mas que será eternamente celebrada como dádiva maior para nossos corações.

Nada escapa ao tempo. Nem a memória do que durará para sempre, tangível ou não. Ficará o retrato na parede, a foto onde ele e eu estamos abraçados, felizes e sorrindo, felicidade que transcende o memorial da vida. As fotos das viagens, nossas duas filhas pequenas, os baldinhos na areia da praia e o vasto mar ao fundo das férias tão queridas! As reuniões e festas familiares, os que se foram e os novos que chegam, ao redor da abençoada mesa.

A memória de cada momento se fixa nas retinas da alma. Tal um arquivo que se pode consultar a qualquer hora, ali está a fotografia indelével, a habilidade do pensamento que retrocede no tempo e revive cada alegria, cada sonho, cada esperança.

A esperança tem uma memória especial, creio eu. Ela esperou por nós mais do que nós por ela. Este doce substantivo abstrato possui o caráter peculiar de não ter fim, de renovar-se a cada respiração. Assim é a esperança que nos salva e nos redime de toda dor, de toda luta, de todo sofrimento. Como se diz, “a última que morre”.

Enfim, desprovidos da necessária inteligência para desvendar mistérios, consolamo-nos com os versos tímidos da perplexidade diária, do assombro que nos esconde e nos revela sonhos.

Belo é o resgate da história pessoal, da concretude apalpada com as mãos, vistas com a sensibilidade inspiradora, no perfume das manhãs orvalhadas do outono. Quedo-me ante tanta beleza e me deixo ficar. Cultivo a memória destas encantadoras paisagens em sépia, de cromos e delicadezas, perpetuados com a graça da lembrança. Bela é a memória da vida.

 

 

Menos é mais...

Marisa Bueloni

     Aposto sempre na simplicidade. A verdade é que os tempos estão bicudos e não podemos brincar. Temos de administrar muito bem nossos ganhos, nossos proventos, ainda que modestos, ou corremos o risco de nos dar mal.

Penso nos momentos da vida em que a simplicidade é sempre a  melhor escolha. Uma espécie de “morte do eu”, do nosso inflado e exigente “ego”, mortezinha vital para enxergarmos um pouco além da própria imagem e resistir ao que nos seduz de forma quase irracional.

Por sorte, até mesmo a pequenina poesia do cotidiano se transforma, para nos dizer algo. Ah, o inaudível apelo do silêncio dentro de nós! Quanta coisa ele nos diz. É a voz da nossa gentil consciência, advertindo-nos dos excessos e extravagâncias.

Aposto no “menos é mais”. E morrerei afirmando que a felicidade reside nas coisas simples da vida. No bule de café que minha mãe deixava sobre o fogão a lenha, no bolo de fubá que ela desenformava, cheiroso, com o aroma do cravo. São lembranças de um tempo onde parecia tão mais fácil ser simples...

Ah, era bom demais os domingos nos sítios, o balanço de corda amarrado no galho alto da mangueira. Ali, a menina tímida extravasava a sua dor e podia sonhar que reinava sobre todas as coisas da terra. Era permitido penetrar no universo mudo das palavras que ainda não conhecia, mas que existiam nela por obra de algum encantamento.

A menina sempre desejou ser simples. E quase sempre o foi. Aspirava à singeleza nos gestos, nas atitudes, no procedimento de espíritos nobres. Espelhava-se nos adultos, na maneira como o pai se benzia antes de dormir, de comer, de sair para trabalhar.

Tem gente que é simples por natureza, por genética. Há pessoas com aquele ar genuíno da pequenez que lhes é tão peculiar e não pode jamais ser imitada. Não adianta querer copiar alguém que admiramos em sua simplicidade. Esta pessoa carrega um dom intrínseco, uma história de vida que a faz assim, um desenho perfeito da pequenina e grandiosa beleza humana.

Durante toda a vida persegui esta beleza, este equilíbrio, a sensatez na mistura de cores no vestuário, a opção pela opacidade em vez de muito brilho ou muitas jóias. Nada do deslumbramento consumista, das coleções disto ou daquilo. Apenas o necessário para o uso diário.

Este é meu pequenino poema da vida, o fascinante “menos é mais” que causa tanto bem à vista e à passagem do tempo em todos nós. Aos poucos, vamos desapegando-nos, despedindo-nos de velharias guardadas há séculos para viver com o essencial. Vamos tirando o excesso, “enxugando” aqui e ali, os adereços supérfluos que cercam nossa existência, para minimizar o que de fato importa.

O que importa? Ter garantida nossa digna sobrevivência, a possibilidade de honrar com nossas contas, amar o próximo, fazer o bem e tentar praticar a justiça. Sem esquecer o principal: a salvação da nossa alma.

E então, iluminados por um fogo interior inextinguível, ousamos ser simples como as pombas e prudentes como as serpentes, na bíblica figura da sabedoria.

 

 

O mar e eu

Marisa Bueloni

     Numa viagem recente, fui ver o mar, oceânico dono de mim. Pisei numa praia linda, senti o calor das areias. Sonhei. E repito aqui meus versos plenos de amor.

     Mar, identificado o teu perfil, ali fundear meu coração marinho. Minha alma, um navio insubmergível, rompendo a textura da água.

     Onde começa tua genealogia? Deus criando a vida? Ares se condensando, vapores, fumegante paisagem do tempo. Crescente plano de águas, fervuras, matriz de rendas brancas.

     À tona, a luminosidade, límpida evidência de cores, marulhares. No desvão das marés, a densa história de tua aventura. Que é mito, saga, água. Fértil de naturezas, pródigo de intimidades, na pele de tua superfície, quem mergulhou o mais fundo de ti? Não contabilizo a proposta de invasão, não sei fazer amor contigo. Apenas te desejo, na areia.

     Para onde vão as espumas desfeitas? Fundem-se, misturadas ao que deixou de ser? Como apreender a fugaz existência do que o olho cria?

     Na fina malha da tua fluidez, cortar-te ágil. Conter o peso, a leveza e a fundura da tua matéria. Sondar caminhos, aqueles que conduzem a um farol solitário, à ilha onde a areia é de algodão, às espumas ansiosas, malhadas de sol. Admirar tua face em movimento, a familiar sensação de que te conheço. Depois, o pressentimento, a súbita impressão de tua exposta e gentil vaidade.

     Nos braços da brisa, entre a paz do céu e da terra, a primeira sentença do dia: pisei sobre conchas partidas e arranhei uma imensa tristeza. Eis que um lento segredo emana de ti pelos vagalhões enfurecidos, pelas calmarias sedativas e silêncios paradoxais: afunda-te, mar grandioso, rugindo a contraditória e renovada poesia da água.

     Prisioneiro de móvel escultura, libertas sereias insones. Sem rumo a seguir ou direção a tomar. Indo e voltando, às cegas, cumprindo o destino das almas penadas.

     O Gênesis esqueceu de contar que, após a Criação, Deus olhou para baixo, cofiou a longa barba, despiu-Se da santa roupa e desceu para um banho de mar. Anjos armaram uma barraca celestial: Deus criava a praia.

     Perfume de água, exalas força. Exsudação de tremores, embates, noturnas intimidades. No interior de tua essência, um polvo encantado sonha. Porém, defino-te politicamente: democrático, teu espaço é uso. Diluis o urucum, o gel dourado, e a primitiva sensação do que chamam veraneio.

 

     Ao longe, um céu de opalinas desaba sobre tua superfície. Há como evitar esta fatalidade? Quisera aprisionar na fotografia teu secreto compromisso com a beleza.

     Teu peso é monumentalidade, solidez. Mas, para que cavar este engenhoso espectro rebuscando palavras? Perdoa-me cantar-te, sou um canário terrestre. Um peixe atípico. A sensação de espumas cálidas inspirou-me.

     Bastavam: água potável, verdura fresca, fruta, peixe, sal, fogo. Um óleo aromático para passar na pele. Casinha com varanda. Duas saias, duas calças jeans e algumas camisetas. Chinelo e sandália de couro. Um moletom e um cobertor. Uma cama feita de estrelas. Paz. Fé. Amor no coração. Esperanças acesas. E tua música ao fundo...

 

 

 

O planeta tem sede

Marisa Bueloni

     Há muitas formas de fome, de sede e de carências neste mundo de Deus. Contudo, a pior delas deverá ser sempre a que é interpretada literalmente, a verdadeira sede, aquela que nos lembra a água, em primeiro lugar.

     Hoje, com a difusão de conceitos ligados à preservação do meio ambiente, temos conhecimento de práticas que podem interferir negativamente no ciclo natural da vida.

     Se tivermos a consciência de que os elementos da natureza são vitais para a nossa sobrevivência, passamos a vê-los com outros olhos. E quando a escassez destes recursos se faz sentir de forma dramática, atingindo-nos em nossas necessidades e atividades diárias, maior se torna a nossa preocupação.

     Parece simples obtermos a aprovação para a retirada de uma árvore em frente da nossa residência. Contudo, a casa ficará mais quente, sem a proteção contra o sol nos cômodos mais diretamente atingidos. Se poluirmos um rio, suas águas estarão impróprias para a captação e o consumo. Se determinadas áreas passam a ser ocupadas de forma irregular, ocorrem adensamentos demográficos sem planejamento urbano, comprometendo a qualidade de vida daquela população, com riscos para a saúde e a segurança.

     A natureza possui um equilíbrio próprio, mantendo-se e sustentando-se de forma admirável. A ação humana, quando  irrefletida  e predatória, acaba alterando o seu curso, modificando as suas características e causando verdadeiros desastres ambientais. Toda exploração mal feita e criminosa acarretará um terrível dano, muitas vezes de forma irreversível. No caso da água, trata-se de um recurso finito. Ela pode tornar-se dramaticamente escassa e até mesmo vir a faltar se não houver o chamado uso racional e sustentável.

     Há muito tempo, a ONU fez um grave alerta: a água doce está se esgotando de modo assustador em todo o mundo. As reservas já estão super-exploradas, a água está sendo utilizada e poluída de forma catastrófica. Tudo o que for perdido hoje, não se repõe mais e a população mundial está esgotando os recursos do nosso planeta num ritmo jamais praticado. Se este abuso não for contido, corremos o risco de um desastre global.

     É conhecido o fato de que mais de 1 bilhão de pessoas no mundo todo não têm acesso à água tratada e limpa. Nos países em desenvolvimento, é grave a situação com relação aos mananciais: até 90% dos esgotos e 70% dos efluentes industriais são despejados em cursos d’água, sem nenhum tratamento. Não há natureza que resista à tamanha carga de insensibilidade.

O colapso da água era esperado para 2025, mas a escassez antecipou-se e já constitui um sério problema em diversos países, inclusive em muitas regiões do Brasil onde o recurso é mal distribuído, havendo ainda o agravamento da degradação de nossos rios.

A crise hídrica volta a preocupar nestes meses de estiagem e a ordem é economizar. Usar com critério este produto precioso que é a água. Há quem não acredite, mas o planeta tem sede. E que ela não seja mortal...

 

 

 

Crescendo com a vida...

Marisa Bueloni

     Conforme prometido, aqui vai mais um relato (um pequeno trecho do meu livro “Viver dói”) sobre as dores de quem cresce. Crescendo com a vida, eu diria.

     “De menina, virei moça. E a dor jamais me deixou. A dor no lado direito do quadril. O que é isso? Que nome clínico ela teria? Às vezes, eu ficava sentada um tempo no sol do quintal e a dor passava. Meu pai dizia que devia ser uma “friagem”. Saía do sol e a dor voltava. Passei a lavar o cabelo e a secar no sol, o que me deixava com lindas mechas louras. Dor, dor no quadril direito, dor.

     Menstruação. Dor. Cólicas de rolar de dor. Uma de minhas irmãs também sofria destas cólicas terríveis. Minha mãe tinha um saquinho de pano, com a boca amarrada por um cadarço. Ela esquentava fubá, colocava dentro desta sacolinha e minha irmã a punha sobre o ventre para aliviar as dores. Tomávamos “Anador” em gotas, mas este remédio baixava minha pressão, acredito.

O tal analgésico me deixava mole, com gosto ruim na boca, sentindo um mal-estar geral pelo corpo. Mas a dor passava. Em muitas destas cólicas menstruais, cheguei a odiar o “incômodo” mensal. Naquele tempo, as mulheres diziam “estou incomodada”. Não se falava “menstruada”. E era verdadeiramente um incômodo infernal.

Havia uma conhecida nossa que, ao menstruar, não saía mais de casa, não lavava a cabeça, ficava de sapato fechado e meias soquetes, mal conseguia se levantar da cama de tanta dor. Era quase uma semana nesta situação. Eu a olhava com pena. Ela era amiga de uma de minhas irmãs, e sempre desejei partilhar com ela que eu também sofria estas dores mensais.

     Graças a Deus, éramos dispensadas da ginástica no colégio, se estivéssemos com cólicas. Eu nem aparecia na aula. Mas teve um dia, um dia fatal, em que fui à aula de física, numa linda manhã de sol. Estava na quarta série ginasial e tinha 15 anos de idade. De repente, no meio de uns exercícios, uma fisgada de perder o ar me fez parar e gritar de dor. Dor na altura do rim esquerdo. A professora veio me ver e me dispensou, perguntando como eu iria embora naquele estado. Ela dizia que eu estava pálida demais. Eu morava a algumas quadras do colégio e fui caminhando a pé, apertando o lado esquerdo da cintura, desesperada, me segurando nas paredes das casas, trançando as pernas de dor, dor, dor. Minha casa nunca me pareceu tão longe!

     Fiquei internada na Santa Casa, tomando soro. A dita pedrinha foi retirada por sonda. Minha primeira internação hospitalar, a primeira de uma série; a primeira anestesia geral, a primeira de outra série respeitável. Quem cuidou de mim foi o inesquecível dr. Odair Bortolazzo.

A janela do quarto hospitalar dava para uma das principais avenidas da cidade e ficava vendo o movimento dos carros subindo e descendo. Era a minha distração. Mas me recuperei e tive alta mais cedo do que esperava.

     O fato bom desta internação foi uma inesperada visita de um rapaz que havia se interessado por mim e queria me namorar. Mas, aos 15 anos, e vigiadíssima pela família, achei melhor sermos só amigos. Ninguém de casa gostava muito daquele carioca.  Acho que só eu mesmo. Então, a ida dele ao hospital, numa tarde, despertou a súbita simpatia de todos. Até minha mãe achou que ele “parecia legal”. Mas eu tive alta e ele voltou para o Rio. Adeus.”

    

 

 

Minha mãe eu

Marisa Bueloni

     Minha mãe e eu temos um montão de histórias. É preciso pensar um pouco antes de contar. Já são 24 anos da sua partida e parece que foi ontem.

     Fomos uma bela dupla - minha mãe e eu. Ela se chamava Josefina e eu a provocava, querendo saber por que minha avó lhe dera um nome tão feio. Ela ria e ficava brava ao mesmo tempo. “Eu gosto do meu nome, oras”. Eu respondia rindo: “Mas eu não, dona Josefina!”.

     Ela contava que no grupo escolar era vítima da brincadeira “Josefina da perna fina”. Contudo, minha mãe tinha pernas normais e bonitas. Só Deus sabe o que aquela mulher andou e trabalhou, o bem que ela praticou na vida, as procissões, as rezas, as visitas aos parentes e doentes, o que fez neste mundo de Deus com aquelas pernas santas e laboriosas.

     Ah, mãe querida! Como na linda valsinha, se a gente pudesse começar tudo, tudo de novo! Se pudéssemos ter a chance de voltar a ser criança no seu colo tão doce. Que saudades do seu perfume suave, uma colônia que não sei onde ela comprava. Lembro-me do seu potinho de “rouge”, que hoje é o nosso “blush”. Ela gostava de um batom discretíssimo e usava um esmalte de um tom rosa esmaecido, chamado “Rosa Rei”.

Ela sabia de tudo, sabia falar e calar. Tudo na hora certa. Advertia sempre: “Em boca fechada não entra mosquito”. Minha mãe completou apenas o 4º ano primário, mas saiu da escola com um diploma preciosíssimo: a sabedoria da vida. Quanta lucidez e prudência. Não dava um passo em falso. Conhecia todos os territórios, os próprios e os que a cercavam.

     E quando ela começava a contar do seu tempo de moça na roça, morando no sítio? A gente ficava horas ouvindo na cozinha, com um bule de café e bolo de fubá quentinho. Como foi que ela conheceu meu pai, o noivado, o começo da vida de casados, os filhos pequenos.

Ah, meu Senhor da glória, eu coloquei a foto clássica do casamento dos meus pais, em branco e preto, aquela da “Foto Lacorte”, num quadro de chorar de lindo, na parede acima da cristaleira. Fiz o mesmo com a foto do casamento dos meus sogros. Estão os dois pares ali, eternizados, cheios de esperança e alegria. Afinal, haviam acabado de dar o “sim” um para o outro. E para Deus.

     Minha mãe gostava de rezar. De rezar o terço de joelhos, junto com meu pai, os dois de cabeça baixa, cheios de respeito, diante das imagens do Imaculado Coração de Maria e do Sagrado Coração de Jesus.

     Logo após o seu funeral, num estado de vigília, meio dormindo, meio acordada, de repente, subi. Subi altíssimo. Vi-me numa altura fantástica e olhava para baixo. Tudo era de um verde-escuro estranho. Eu via o rio da minha cidade, o mato das margens, carros passando lá embaixo nas ruas. Foi assustador. Eu não tinha corpo, mas eu “existia” com minha mente apenas, meu espírito. A lembrança daquela subida (seria a chamada “viagem astral”?) ainda mexe comigo.

     Josefina, minha mãe! Eternamente, Josefina! Mulher, moça, menina. Nada de perna fina. Minha mãe, tão grande e tão pequenina! A bênção, minha mãe Josefina.

 

 

 

Bandeja de inox

Marisa Bueloni

     Emocionada com o sucesso e a repercussão de uma antiga crônica intitulada “Sala de jantar”, resolvi celebrar uma outra peça do nosso gentil cotidiano: a bandeja.

     Uma casa que se preza tem uma bandeja digna. Por mais simples, talvez um pratinho de louça improvisado, onde se serve uma xícara de café, um copo de água. Para os mais finos, a bandeja é de prata. Há celebridades que as têm de ouro. Só que a minha bandeja de estimação é de inox, mas de um inox tão bom que está contando 42 anos de vida. Foi presente de casamento.

     Tal uma mesa de jantar com quase 40 anos preserva suas histórias, uma bandeja grande de inox guarda fatos memoráveis, festas e momentos inesquecíveis. Lembro-me que levei tempo para tirar da caixa e usá-la, guardei-a num armário, preciosa. Tinha outras bandejas menores e esta de inox, que é de bom tamanho, esperou sua estreia.

     Mas, depois que a lavei e enxuguei pela primeira vez, brilhava cintilante em sua beleza inoxidável. Na superfície ligeiramente mais baixa que a borda há uns leves arabescos e, nas laterais, as alças que dão segurança e praticidade na hora de servir.

     Depois do jantar para convidados, a bandeja lá estava a postos, com as xícaras do cafezinho. Uma toalhinha rendada cobria seu fundo para um encanto a mais. Senão, os cálices de licor, muito bem arrumados. E os arranjos lindos de frutas que ela já recebeu?

     De quantas festas de aniversário ela participou, cheia de copos, passada pra lá e pra cá, ajudando a compor um cenário que, anos depois, queremos pintar de novo na memória, reforçar essa tinta antiga que nos foge...

     Na família, pediram-me emprestada inúmeras vezes, para que nela fosse colocada a famosa “Torta Mesclada”, receita maravilhosa de minha querida e saudosa sogra. Seu tamanho é perfeito para duas receitas, ou seja, dois bolos de pão-de-ló retangulares, cortados ao meio, recheados com creme, cobertos com um merengue feito de clara de ovos em neve e calda de açúcar queimado, mais um creminho suave de chocolate para mesclar. A cobertura é o show maior da receita que vai passando de mão em mão.

     Minha bandeja já rodou bastante por aí, como se diz. Foi para o colégio do primeiro neto, nas festinhas de aniversário. Foi para São Paulo, quando a levei comigo e fiz a torta para a madrinha adorada. Quantas vezes, carregada no colo, dentro do carro, lá ia a bandeja cheia para mais uma abençoada mesa!

     Ah, minha querida bandeja de inox! Que doçuras exalas! Como é da vida, uns partem e outros chegam. Faz 42 anos que a tenho e a preservo. Vai servindo a todos, aos novos que dela se cercam e a admiram. Vai seguindo emprestada, com meu nome escrito embaixo, porque deve ter ido para algum lugar onde precisava de identificação para ser devolvida depois.

     Uma mesa de jantar com história própria, impregnada de amor em seus veios; uma bandeja de inox que serviu incontáveis vezes; o faqueiro reservado para ocasiões especiais... Tudo isso compõe uma relíquia doméstica que é puro sonho, saudade, beleza e afeto.

 

 

Inspirações de abril

Marisa Bueloni

     O que fazer agora, se já passou da hora? Prefiro a dor da ausência ao dogma da ciência. Fique em minha alma a sugestão da calma. O que mais desejo? De Deus, o Seu beijo.

     Assim desejo saudar o leitor nesta crônica de abril. Para encantar os corações. Para abraçar Marias Eugênias, Lucinhas e tantos queridos que me enviam e-mails amorosos e gentis.

     Na crônica de abril derramo meu coração febril. Aqui no condomínio de casas onde moro, saio lá fora na rua e espio o céu noturno. As estrelas profundas tremeluzem serenas. Um vento suave percorre o casario e eu rezo. Rezo pela Rua Um, rezo pela Rua Dois. São apenas duas ruas, no recanto de conto-de-fadas onde moro. Rezo pela paz!

     Abril é uma casa aconchegante. Onde você mora? Moro em abril e em seus cômodos ensolarados, em suas brisas sussurrantes. Abril abre meu peito, rompe minha alma. Todo ano é assim, o cotidiano da espera, um verso pulsando em cada momento, o instante do sonho que julgamos aprisionar nas retinas e tornar eterno.

     Tenho certeza quase absoluta de que cada coração humano cultiva esta beleza íntima. Algo para se acarinhar e relembrar nas horas doces da memória. Parece que abril cuida de restaurar e reavivar estas lembranças, como um azul que se intensifica.

     Abril, azul, abril. Vamos lá. Está lá, em algum lugar, o que buscamos. Seja o que foi pedido hoje de manhã, de joelhos, debruçado sobre a cama, com as mãos cobrindo o rosto; seja o que se vem sonhando a cada dia. Encontrei um verso bonito, de uma nova canção: “o que não foi possível/ é possível que ainda esteja lá”.

     Belo e intenso é abril em suas entranhas. Beleza que não se esgota e se renova anualmente. A cada ano, vejo um abril ainda mais nítido. Esta nitidez que é lúcida e abrangente. Mudou abril ou mudei eu?

     Ah, meu Deus! Que portentoso encanto vem junto com este outonal sentido? O que me causa? Talvez, a sublime esperança da paz em todas as suas instâncias, como se fosse um prodígio digno da nossa fé. Um frêmito percorre o corpo, toda vez que a esperança acena, promissora. É preciso reagir com algum entusiasmo, porque viver é um acontecimento raro.

     Como sempre digo a uma querida amiga de infância, haveria tanto a dizer! E por que não o dizemos? Porque nem todas as palavras devem ser ditas ou escritas. Cada um conhece muito bem os perigos e os limites dos vocábulos. Há um mundo à parte que é apenas pensado, sentido, refletido e não dito. Fique apenas no pensamento esta reflexão que torna possível conviver.

     Mas por causa de abril, algumas palavras escapam de nós e são fonemas quase intactos. Tento preservar as mais preciosas, para que não sejam exibidas de modo despudorado. Não. Cubram-se, queridas, resguardem-se. Haverá o momento certo de aparecer.

     Talvez, num divinal impulso, alguém possa dizer ou escrever “eu te amo”. E se o dirigir a alguém que verdadeira ama, terá cumprido sua missão de afeto. Ainda existem certas doçuras sobre a terra. O emocionante amor, sim, o emocionante amor.

     Cantemos, apesar de tudo. Cantemos, é abril.

 

 

Livros & dores

 

Marisa Bueloni

     Quando achei que seria capaz de escrever um livro “sobre a dor”, vieram-me à memória os inúmeros livros que já lera na vida. Aprendi algo com eles? Creio que sim. Comecei a ler muito cedo e, ao terminar a Escola Normal, aos 18 anos, eu já tinha lido quase todos os bons autores brasileiros e toda a trilogia “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo, pela qual me apaixonei. Aprecio os romances e biografias, mas textos na primeira pessoa e relatos autobiográficos são os que mais me fascinam.

Nos anos 80, editei uma coluna literária num jornal local e as editoras me presenteavam com livros: literatura brasileira e estrangeira, poesia, psicoterapia, publicações diversas, coleções, lançamentos especiais que eu ia devorando dia após dia. Aquilo caía do céu direto às minhas mãos.

     Ao me mudar da cidade para o campo, em 2002, tomei uma decisão dolorosa: vendi quase tudo para um sebo, pois a nova casa não dispunha de armários e eu não pretendia colocar prateleiras para acomodar os milhares de livros. Recém-operada da segunda cirurgia na coluna, lidar com aquela montanha de obras significava um trabalho impensável para mim.

     Quando estava no hospital, em dezembro de 2005, na terceira cirurgia de coluna, minha filha mais velha deu-me de presente “Quase tudo”, de Danuza Leão. Foi o que me salvou naquela semana tão triste, entre o Natal e o Ano Novo, esperando o médico me dar alta, deitada quietinha, rezando. Danuza nunca saberá o que este livro significou para mim naqueles dias sombrios. Chorei com ela, chorei as suas perdas, sofri as duas dores. Abracei-a em pensamento tantas vezes.

     Deitada, quando a moça da copa chegava cedinho com a bandeja, eu me virava sozinha, sem poder erguer a cabeça. Pedia à moça para colocar o leite e o café na xícara. Ela me ajudava, sempre gentil, perguntando: “Que mais?”. Eu dizia: “Só isso, linda, obrigada”. A mesinha ao lado ficava muito acima de mim, e tentava imaginar onde estava a bolacha água e sal, a manteiga, a geleia, a colher, o garfinho... E ia dando um jeito de trazer a xícara até minha boca, comer uma bolacha, uma fatia de mamão. Colocava uma toalha do hospital como um babador sobre o meu peito, caso viesse a derramar alguma coisa.

     Queria tomar logo o café, para continuar a ler o livro de Danuza. Quando chegavam as enfermeiras do banho, eu louvava a Deus, relaxava com a delícia dos lençóis frescos, a cama refeita, a camisola limpa. Depois, retomava a leitura, até à hora do almoço. O livro ficava do meu lado, junto com os óculos, tudo meio apertado ali na cama, ao lado do controle remoto da tevê, o terço, a medalha de Nossa Senhora das Graças, o celular. Às vezes, uma destas coisas ia parar embaixo de mim, enrolado nos lençóis, e eu tinha de chamar uma enfermeira para me ajudar a encontrar.

     Tenho certeza de que a história de Danuza não se esgotou neste “Quase tudo”, e ali está o “quase” em grande suspense. Não sabemos se ela vai escrever algo como “Agora está tudo aqui”, mas certamente deixou uma inteligente brecha para um próximo livro do gênero.

 

 

Uma Páscoa luminosa

 

Velas

Marisa Bueloni

     Vivendo ainda o tempo pascal, cremos ser possível resgatar alguns valores edificantes e necessários. “Hoje, o nosso mundo é triste e doente. O nosso mundo entrou no terror e no medo. O nosso mundo revestiu-se de tibieza”, escreveu um sacerdote, diretor espiritual de uma mística da França.

     Se entendermos o verdadeiro sentido da Páscoa, em analogia à sublime e possível ressurreição individual, conheceremos a beleza desta festa cristã. Páscoa é passagem para uma vida nova, a força da graça em toda a sua grandeza, revelando-nos a face mais luminosa deste mistério.

      Nestes tempos de tribulações, enfrentando as vicissitudes da vida, e onde somos também espectadores das tragédias e catástrofes perto ou longe de nós, buscamos um sentido para a existência humana. Vivendo em meio a um relativismo onde cada um faz sua própria verdade, ansiamos por um conceito comum, gerador do bem e da paz.

     A festa pascal nos põe em confronto conosco, a partir de uma decisão que diz respeito ao nosso projeto de vida, às nossas escolhas e convicções. Pode-se abrir o coração, renascer para uma nova realidade, quando se tem a coragem de dar um passo decisivo e determinante. A linda mensagem da ressurreição atinge-nos a todos, na caminhada pessoal.

     Vivemos num tempo de violência e nosso cotidiano transformou-se numa batalha onde cada um busca defender-se como pode. Camuflados pelo medo, caímos num triste processo de despersonalização, empobrecendo nossas vidas e nossos atos nada criativos.

     Hoje, até mesmo por causa do “politicamente correto”, busca-se o conhecimento da sã verdade, aquela que faz de cada ser humano uma pessoa de bem, com vontade para criar um mundo mais humano e mais justo, por meio de atitudes e comportamentos responsáveis. É preciso coragem. Coragem de deixar a escuridão do medo e da indecisão, para ir ao encontro da luminosa iniciativa: reconhecer onde há erro e denunciá-lo, para que brilhe a luz da verdade.

      Em nosso moderno mundo, somos sutilmente envolvidos pelo universo da fantasia e pelo que nos é oferecido de forma falsificada e virtual. Somos capazes até mesmo de negar uma fé antiga, sólida e tradicional, por uma promessa nova, quando nos deixamos seduzir por algo de aparência mais concreta e vantajosa.

     É nessa sociedade massificada que o sentido pascal vem triunfar. É no seio de uma comunidade tíbia, de condutas incoerentes e equivocadas, que a mensagem cristã surge com a proposta de uma nova consciência. A consciência da caridade, dos valores que pregam a fraternidade e a justiça, exatamente num mundo marcado pela ganância e pela corrupção, por leis injustas, discriminadoras e desumanas.

     Uma Páscoa luminosa vem abraçar a todos, neste tempo especial. Que ele seja belo e abundantemente proveitoso. Que cada um seja livre na sua ressurreição pessoal.

     O sol rompe as trevas; a luz irradia fé aos corações. Não poderá ser vã a nossa fé, quando cremos na solicitude do amor de Deus para conosco. Rompendo com o egoísmo e a intolerância, caminhamos para a verdadeira Páscoa do amor e da paz.

 

 

Tempo Pascal

 

Tempo Pascal

 

Marisa Bueloni

     Não fosse este tempo pascal, a vida transcorreria comum e corriqueira. Mas surge uma febre outonal, de quando se sente pequenino demais diante do assombro. Elevo os olhos para o vasto céu e vasculho o infinito. Na grandeza cósmica, professo o apagamento, a pobreza no espírito, a solidão mil vezes abraçada. O silêncio é a minha religião.

     Tenho lutado por ele, caro leitor. Sim, Deus sabe como tenho lutado pelo meu inquestionável direito ao sossego e à paz. Há um ditado que diz: “Se queres a paz, prepara-te para a guerra”. De fato, às vezes, é preciso travar uma batalha para se ter um pouco de silêncio e de paz. Nossa arma seja a Espada do Espírito.

     Tempo da Páscoa. Entendo tudo. É a liturgia da vida, compondo um calendário em que as primeiras brisas de outono acenam promissoras, prenunciando alvíssaras. Páscoa. Passagem, iluminação. Digno tempo.

     Para mim, o céu da Semana Santa é diferente dos outros céus. Sempre tão cheio de presságios. Um firmamento magnífico e também aterrador. Um Deus pregado na cruz nos salva pelo amor. Aprendi isto: a lição da cruz é o amor e não a dor. Ó céu da Semana Santa! Derrama sobre nós a tua paz!

     Este digno tempo deslumbra em mim a visão de terras distantes. Dei para decorar os continentes e seus respectivos países. Exercício bom para afastar o temido alemão. Conciliando o sono, repasso os nomes. Sei citar de cor todas as nações africanas, sem pular uma só. Moro na Ilha de Madagascar, a ilha do amor, onde tenho uma casa de madeira na árvore. Avisto o invisível horizonte que transcorre em minhas veias insulares.

     Outono é bem assim, deixando seus rastros por aí. Esta digna estação me reporta ao derramamento da poesia, em estado de completa perplexidade. Ó, geografia do sonho! Em que recanto habita meu pobre e inquieto espírito? Não tenho ideia do que seja este apelo agudíssimo e do que ele me causa. Apenas deixo-me assombrar.

    Estou de vigia. Para ver a queda dos astros, todos os cometas, o segundo sol, a terceira margem, a sétima estrela, a Terra abalada. Todo o fundamento oceânico, as águas vertendo inflexões. Venha sobre nós o colossal aviso divino, a graça em toda a sua plenitude e a glória da ressurreição.

    Haveria ainda tanto a escrever, mas paro por aqui. Santa curiosidade. Ela mata, eu sei. Belo tempo, Senhor. Digno tempo de espera. Santo tempo pascal.

 

 

Teoria da dor - 2

 

Teoriadador

 

Marisa Bueloni

Estou escrevendo um livro que, provisoriamente, intitulei de “Viver dói”. Já adiantei uma boa parte e, no momento, estou corrigindo, refazendo capítulos inteiros, elaborando lembranças e sensações dolorosas que julgo relevantes, sobretudo passagens da infância, esta fase da vida em que criança alguma deveria sofrer.

Sou uma pessoa tocada pela dor. Desde muito cedo. Refiro-me à dor física. Seria eu uma “alma eleita” para sofrer? Não sei. Já tive um pouco de tudo. Quando menina, dores de dente de uivar, dores de barriga, dores insuportáveis pelo corpo. Passava noites em claro, minha mãe esfregando um paninho com álcool nas minhas pernas. Peguei caxumba, sofri com furúnculos, terçóis (hordéolo) de não abrir o olho.

Entre nove e dez anos, tive a boca queimada pela ingestão de um remédio para giárdias. Esvaziei a caixa d´água, de tanto lavar os lábios pegando fogo. Andava com um lenço, pois eu babava sem parar. Nessa idade, brincando com meus primos, próximo dos materiais da reforma de uma casa vizinha, um prego arrancou a unha do dedão do meu pé direito. Ah, como doeu! Mais mocinha, suportei cólicas menstruais de faltar do colégio. A lista é comprida. Minha primeira dor de cálculo renal foi aos 15 anos, com internação em hospital e retirada da pedrinha por sonda. Ao longo da vida, já passei por 11 intervenções cirúrgicas, sendo nove com anestesia geral. Só a coluna, operei três vezes.

O caríssimo leitor sabe o que é uma retossigmoidectomia? O sufixo “tomia” se refere sempre à retirada de algo, e eu retirei 45 cm do intestino, por causa da diverticulite. É coisa para macho, mulher não deveria ter de se submeter a algo dessa natureza.

Durante muitos anos, depois de adulta, fui a maior consumidora de “Cataflan”. O laboratório tinha de me dar um prêmio, ninguém no planeta comprou mais esse remédio do que eu. E “Dorflex”, “Advil”? Para mim era uma balinha.  "Tylenol" anda comigo, dentro da bolsa. Diga o nome de um analgésico disponível no mercado farmacêutico e eu já o tomei.

Alguns anos depois da minha terceira cirurgia na coluna, comecei a pensar em escrever um livro, abordando este tema espinhoso: a dor. Quando acho que estou “inspirada”, abro o arquivo guardado no computador e escrevo mais um pouco. Releio o que já escrevi, há coisas tristes, inerentes a um universo que dói, e há também as passagens tragicômicas, de quando íamos extrair um dente, naquela cadeira de dentista apavorante, medonha, do meu tempo de infância.

Devo ter chegado ao mundo e a dor me disse “olá”. Julguei não ter ouvido a saudação, vinda de algum lugar muito sombrio... Não liguei, não respondi, fiz de conta que não era comigo. Mas era.

Não quero cair no lugar comum de achar que, quando nasci, um anjo torto ou muito aprumado festejou. Que era um Serafim, do primeiro coro dos anjos.

Aos poucos, caro leitor, entre uma crônica e outra, irei vos "brindando" com trechos desse livro que, acredito, jamais irei publicar. Enfim. E se prestasse o que escrevo, hein, Luis Avelima?

E la nave va...

 

  Eu canto um salmo

 

EuCantoUmSalmo

Marisa Bueloni

Há algum tempo, contei que alguém me escreveu em desespero: “O que fazer da vida?”. Não se podia responder em duas ou três palavras a um apelo desta natureza. A vida é tão vasta e tão bela, o que fazer dela? “De onde me virá o auxílio? O meu auxílio vem do Senhor, criador do céu e da terra” (Salmo 120).

     Se eu pudesse começar de onde compreendo a raiz da solução, diria a este alguém para buscar a face de Deus. E que comece rezando toda manhã: “É a Vossa face, Senhor, que eu procuro”. Que não comece o dia sem a leitura de um salmo bíblico. Se as pessoas soubessem o poder curativo da voz do salmista, cantando bálsamos para as feridas da nossa alma, jamais deixariam de recorrer a este remédio dos céus.

     Gosto de louvar e de cantar os salmos, compondo melodias para eles. Conheço uma pessoa que se levanta à noite para louvar, pois é acordada pelo Espírito. E nas madrugadas geladas do inverno, sente o corpo arder de calor. O que se passa, então, nos louvores noturnos, é algo que pertence a um território sagrado.

     Jamais me cansarei de pedir ao Pai: “Dai-me bom senso e sabedoria, pois confio nos Vossos mandamentos”.  Hoje, olhamos para o mundo e vemos grande aridez em toda parte. Há tumulto nas cidades. Rumores de guerra no ar. Violência e corrupção. Multidões ávidas de novidades, cantando músicas sem sentido, alimentando-se de um alimento fraco e sem substância, enquanto os céus oferecem um banquete de rei ao primeiro que chegar.

Reina no mundo um desenfreado apelo de sedução e confusão, não condizente com as coisas do espírito. Meninos hipnotizados por jogos de morte; meninas que deixam para trás a infância e a inocência, para requebrarem lascivas e precoces. Casamentos destruídos por traições, ciúmes doentios, mortes dolorosas. Famílias sacrificadas na sua missão primeira de educar e ser aconchego para os filhos. Lares desestruturados, ausência de caridade e de sacrifício. Em tempos de consumo, como falar de renúncia e desapego? Como levar às pessoas uma mensagem de luta, mas também de resignação, quando o gesto de mortificar-se já  não tem nenhum sentido?

É hora de clamar a Deus e orar. “Fazei que eu compreenda o caminho dos Vossos preceitos”. É hora de se pôr de joelhos e pedir pela salvação deste mundo que parece desmoronar. “Restabelecei, Senhor, o nosso destino”. O salmista diz que “os que semeiam com lágrimas recolhem entre cânticos”.

 Amo especialmente o Salmo 16,6: “A corda mediu para mim um lugar aprazível; bela é a porção que me coube”. Quem lê, entenda. E o Salmo 116,6: “O Senhor vela sobre os simples”. O Senhor sonda o nosso coração, visitando-nos continuamente. A força do Espírito paira sobre a face da terra e a faz estremecer, mas é em nossa alma que o Senhor imprime Sua lei eterna e imutável.

 Canto um salmo toda vez que me sinto frágil e desamparada. Canto um salmo para a vida, rezo para que o Amor seja a maior e única razão da nossa existência.

 

 

Fragmentos de um sábado

 

Fragamentos de um sabado

Marisa Bueloni

Fico assim, sem saber por onde começo. Que dia é hoje? E ouço a música do tempo. Acordo do sono dos séculos. Sou alguém atípica. E rezo para que o tempo sacie minha sede de fé.

Pode crer. Onde está a margarida e o "paz e amor"? Ficaram lá atrás, quando o sonho existia e havia aula na faculdade, no sábado à tarde. O coração não sabia direito o que era o amor, mas, ah, como a gente amava!

Banho tomado, cabelo lavado. O perfume do creme está na pele e a pele é o sábado. Sábado tem a textura corpórea do que existe. Metafisicamente. O que vestir no sábado? Não sei. O que pensar? Não sei. Quero esquecer que é sábado. E que, num sábado, eu te beijei.

O sábado é, talvez, uma conjunção de fatores que alguém determinou, antes que burlassem a regra da semana. Pronto: e foi criado o sábado. Então, existe esta expectativa etérea que só o sábado traz. Ó sábado, ó sábado, vem curar meu coração.

Na medida exata de um parágrafo, o comedimento da vida. Basta! Tudo já foi escrito. Pare com isso. Não paro. E na vertigem da teimosia hemorrágica, sou uma ninfa verborrágica. Ainda assim, canta coração. E corre manso como alguns rios, para não acordar os navios.

No exercício da poética, um pouco de apologética. Apenas o essencial. O substrato do que importa. Para que o poema atravesse a porta. Assim, raso, manso e profundo. Absolutamente discreto. Para não acordar o mundo.

Uma vez escrevi: "E se prestasse o que escrevo?". Não sei se presta, se meu canto passa da soleira da porta e chega até a rua, ou se morre de inanição, cometendo o pecado da mediocridade. Ainda assim, canta, coração. Mesmo sem canções, para não acordar os leões.

     Um poema suspira pelos cantos. Não sei onde está. Tento tocar na matéria em movimento e há algo misterioso na solidez desta hora. Exausta de tanta saudade, não sei onde fica o berçário das rimas. Deixo para procurar amanhã.  

Na noite vasta, minha alma está acesa. Uma chama inextinguível arde ao léu. As palavras são puro fogo. E incendeiam metáforas. A noite apenas acalma em mim o que não pode morrer jamais.

Sofro de azuis. Das opalinas que desabam sobre um céu marinho. Sofro das orlas e dos continentes, das cordilheiras e das planícies. Sofro de tons e marulhares. Sofro de ausências e do que permanece. Sofro da monumentalidade do universo e sua música. Sobre o piano, um dó eterno.

     Reconfortam-me os azuis intensos do dia. Algo penetra minha alma como faca amolada que nos corta o peito, nos despedaça por dentro e, depois, nos junta, nos reconstrói, feito pontes desfeitas que voltam a se abraçar.

Se eu não enxergar o que vem em minha direção, que o Senhor veja por mim. E me conceda o livramento necessário. Ele me livra da flecha que voa durante o dia. Ele me salva de todos os terrores.

Nem mais, nem menos. Apenas o necessário, o  essencial. A vida é feita desta essencialidade, deste sentimento inconsútil. Uma quase poesia da integridade. Dose diária de fé e esperança. Deus abençoe esta nossa terça-feira. E la nave va...

 

 

Enquanto a chuva não vem

 

Enquanto a chuva nao vem

 

Marisa Bueloni

Comecei a escrever um texto nos dias anteriores às chuvas de fevereiro. Enquanto a chuva não vem... Pensava nas estiagens da vida, na aridez de tantos gestos, nas mortes de quem morre tão inocentemente, nas dores e lutas de todos nós.

     Desde que começamos a enfrentar a atual situação de escassez hídrica, houve uma espécie de consciência popular, preocupação real com o assunto, um interesse verdadeiro pelas causas deste desastre e como combatê-lo.

     Tanta gente importante e competente já deu seu parecer. Teve grande impacto a entrevista do biólogo que explicou o fim do cerrado e o quanto isso implicará na falta de chuvas para a região sudeste. Já não há mais dúvidas de que o desmatamento da floresta amazônica também desviou de nós as chuvas abençoadas e necessárias.

     Onde buscar as chuvas, senhores? Onde elas estão? Sentiremos saudades eternas das semanas chuvosas de janeiro e fevereiro, quando a natureza cumpria seu ciclo e nada faltava?

     Enquanto a chuva não vinha, sofismava aqui com meus botões o que será de nós, pobres mortais, sem a água. Nossos governantes parecem não saber aonde enfiar a cara, quando tentam explicar o inexplicável com relação à crise hídrica.

     Os bairros populosos das grandes cidades continuam imundos, os bueiros entupidos e, a cada chuva de meia hora, os alagamentos mostram a imensa quantidade de lixo boiando em toda parte. Todo ano as tragédias se repetem. Vemos na tevê as casas com barro na porta, os moradores de rodo na mão e olhares perdidos na desesperança.

     Sim, o cidadão deve se perguntar, indignado, o que é feito com os impostos que ele paga. De que forma tais tributos são revertidos para o bem da população, para o cuidado com a qualidade de vida das pessoas, com a limpeza das ruas da sua cidade.

     Enfim, as chuvas apareceram. Não o esperado, não o suficiente para encher os reservatórios, tão vitais para o abastecimento das cidades, mas foi melhor que nada, como se diz. O céu fica carregado, as nuvens escuras ou brancas, prenunciando que vai cair um dilúvio. Às vezes, cai mesmo.

     O rio Piracicaba, quando chove, volta a ficar caudaloso e recebe a visita de turistas. Mas trata-se de um fenômeno passageiro. O rio voltará a secar e a mostrar suas pedras nuas, quando a estiagem chegar. Há problemas sérios que envolvem a recuperação do nosso rio. São necessários investimentos e ações que de fato impactem na preservação deste nosso belo manancial.

     Enquanto a chuva não vem, rezo para ela vir, pois necessitamos deste maravilhoso dom da natureza. A arrogância humana e seu olhar fixo no poder econômico já sentiram na pele os efeitos de sua sanha maléfica.

     O que mais falta para o homem tomar consciência de que existe uma lei maior que nos rege a todos? Quando se interfere no ciclo natural da vida, quando se retira a mata ciliar de um rio, quando se acaba com um tipo de vegetação, as consequências são gravíssimas. E isso é só o começo.

 

 

Teoria da Dor

 

Teoriadador

 

Marisa Bueloni

Sou uma pessoa tocada pela dor. Desde muito cedo. Refiro-me à dor física. Seria eu uma “alma eleita” para sofrer? Não sei. Já tive um pouco de tudo. Quando menina, dores de dente de uivar, dores de barriga, dores insuportáveis pelo corpo. Passava noites em claro, minha mãe esfregando um paninho com álcool nas minhas pernas. Peguei caxumba, sofri com furúnculos, terçóis (hordéolo) de não abrir o olho.

Entre 9 e 10 anos, tive os lábios queimados pela ingestão de um remédio para giárdias e uma unha arrancada do dedão do pé direito. Cólicas menstruais (dismenorreia) de faltar do colégio. A lista é comprida. Minha primeira dor de cálculo renal foi aos 15 anos, com internação em hospital e retirada da pedrinha por sonda. Já passei por 11 intervenções cirúrgicas, sendo nove com anestesia geral. Só a coluna, operei três vezes.

Durante muitos anos, depois de adulta, fui a maior consumidora de “Cataflan”. O laboratório tinha de me dar um prêmio. Ninguém no planeta comprou mais esse remédio do que eu. E “Dorflex”? Para mim é uma balinha. E "Tylenol"? Anda comigo, dentro da bolsa. Diga o nome de um analgésico disponível no mercado farmacêutico e eu já o tomei.

Em 2007, dois anos depois da minha terceira cirurgia na coluna, comecei a escrever um livro abordando este tema espinhoso: a dor. Possível título: “Viver dói”. Um dos capítulos trata de ironizar algumas teorias a respeito dessa sensação arrepiante. Deixo aqui parte de alguns conceitos (na base do bom humor...) que permeiam o universo doloroso. Sabe aquelas “pérolas” imperdíveis?  Anotadas e registradas. O capítulo chama-se:

(Des)Montando teorias

A dor é você quem faz – Se fosse possível “criar” minha própria dor, seria bem leve e suave. Mas, vamos combinar, eu não a “criaria” nem por um bilhão. E não somos nós os autores da nossa dor.

A dor é uma ilusão – Não é. Antes fosse! De que tipo de ilusão seria a dor? Ninguém “sonha” com a dor e ela não é uma quimera. Não tem como ser algo “falso”. Ela existe, de verdade e ataca com força. Deveria ser substantivo concreto.

A dor é um passarinho que voa lá fora - Quero voar com ele, quero voar com todos os passarinhos, lá fora, para ver se a dor vai embora.

A dor santificaDepende. Há quem se torne uma pessoa melhor, por causa do sofrimento. A pessoa se apega aos céus, pois os remédios da terra ela já conhece. Há quem acabe oferecendo a sua dor – para as almas do Purgatório, para a conversão dos pecadores, para alcançar uma graça – e muitos as tem alcançado neste oferecimento de vida.

A dor é um fantasma que assombra – Ela não só assombra. Ela também dói. Ela é muito mais temida do que uma assombração.

A dor está no cérebro - Pode ser. Quando alguém está com uma dor de cabeça lancinante, a dor está literalmente no cérebro. Ela pode estar em qualquer outro lugar do corpo. Conhecemos a teoria de que nada chega ao cérebro antes de passar pelos sentidos. A dor percorre o mesmo caminho.

A dor é a prova de que se está vivo – Ainda bem! Quer dizer que, a partir do momento em que não se sente mais dor, se está morto? Bela vantagem. Todos querem estar vivos e, se possível, sem dor.

Dor de barriga é sinal de que você tem barriga – E eu ouvi muito isso, como um gracejo, uma piadinha, durante um bom tempo da minha infância. Até ser levada ao médico e tratada.

A dor nos une – Sim, existe certa solidariedade entre os sofredores. Trocamos nomes de remédios, chás, poções milagrosas, plantas curativas, injeções, unguentos, emplastros, o que vier. A dor tem o poder de juntar algumas almas dolorosas em volta de uma mesa e ver quem sofreu a maior delas nesta vida. Muitos apostam na dor de cálculos nos rins. Seria a pior de todas. Uns dizem que é a dor de ouvido. E, para as mulheres, tem a dor das contrações do parto...

A dor é a purificação da alma – Também creio nisso. Mas, quem sabe, existem outras formas de se purificar, sem tanto sofrimento físico?

A dor não existe - Sem comentário.

A dor é sábia – Sim, ela sabe direitinho como e onde doer. E ela sabe escolher os horários também. De madrugada, de preferência. Nos fins de semana, quando se procura o médico e ele viajou. No dia de Natal. Nas férias na praia. Quando você acha que esta sabedoria da dor vem em boa hora, então, é hora de lutar contra ela.

É bom que doa – Rrrsss...

É preciso sentir dor, para dar valor à vida – O mundo ainda vai acabar, com tanta filosofia. E vai ter de engolir mais esta. (Embora, cá para nós, isso tenha uma ponta de verdade: o dia parece tão mais luminoso e a vida com muito mais sentido, quando a dor passa).

A dor é democrática - Se alguém quiser fazer da dor um instrumento político, ao menos lute para encontrar o alívio para ela. Votarei no primeiro candidato que prometer “acabar com a dor”.

A dor remove montanhas – Perdão, errei feio. Não é a dor, é a fé que remove montanhas.

A dor é uma bênção – Tente ser “abençoado” por uma dor de hérnia de disco.  Esta é uma bênção que dispensamos rapidinho. Cadê a verdadeira bênção?

A dor é passageira – Ela é a passageira, de fato, fica ao nosso lado, no banco do passageiro. Ela nos acompanha nas viagens, é a passageira da nossa existência.

Esqueça a dor – O que fazer? Tentar esquecer a dor ou bater em quem nos sugeriu isso?

“Dor de barriga não dá só uma vez” – Ditado perfeito.

A dor é uma ficção – De que tipo? Científica?

A dor é imaginária – Lembra da série de filmes “Além da imaginação”? Então.

A dor passa quando você não pensa nela – Conta outra. A dor não se “pensa”; a dor se sente. Quanto mais você procura “não pensar”, ui, mais dói.

A dor é uma fantasia - De quê? De Carnaval? Encontrem uma fantasia de dor, que eu quero vestir e ver se dá pra sambar com ela até cair.

 

 

Spazzio de La Pace

 

Spacio de la Pace

 

Marisa Bueloni

Há um desenho no canal Kids da NET muito bom para crianças de qualquer idade. E para adultos também. É o “Show da Luna”, com a linda música de abertura: “Eu quero saber por que o gato mia/ Verde por fora, vermelha por dentro é a melancia/ Eu quero saber, não quero dormir/ O que está acontecendo eu vou descobrir”.

     Luna é a protagonista de um desenho educativo. A menina possui extrema curiosidade científica e, junto com seu irmãozinho e um gato, sai em busca das explicações. Como se formam as nuvens, de onde vem a chuva, o que há nos anéis de Saturno? E por aí vai.

     Tenho visto alguns programas deste canal junto com meu neto Guilherme, de dois anos de idade. Ele adora desenhos e eu adoro pedagogia. A Luna se pergunta por que o gato mia, e eu tento entender por que o cachorro late... Ah, sim, cães ladram por sentirem solidão, fome, frio e maus tratos. 

     Acompanhei a fúria da seção de cartas dos leitores com o “Julius”, e deixo claro que nada tenho contra animais. Sempre os tratei com carinho. Conforme já relatei nestas mal-traçadas da vida, sofria nas cenas de circo, quando punham o urso para andar de patinete e ele tinha uma diarreia ali diante do público. Muitos riam; eu chorava.

     Ultimamente, passei a ter um projeto. Viver num condomínio fechado de casas térreas, onde seja proibido ter animais. Quem comprar um lote, ou uma casa lá, compra sabendo que não poderá ter cães ou outro animal qualquer.

     Estou muito estressada com latidos de cachorros. Já relatei aqui o quanto venho suportando-os ao longo destes anos. Vendi minha chácara, onde sofri terrivelmente com latidos vizinhos, e vim morar num pequeno condomínio na cidade, de aparente sossego, na esperança de estar livre deles.

     O ser humano é alguém de difícil convivência na face da Terra e, em algumas situações, não há o que fazer. O dono do cão sai, deixa-o durante horas, sozinho dentro de casa, e os vizinhos que aguentem. Será que o dono suportaria o seu próprio cão latindo durante uma tarde inteira? Algo me intriga: pessoas doces com animais e grosseiras no trato com o próximo.

     Por isso, tenho um sonho. Reunir um grupo de pessoas com capacidade de empreendimento. Comprar uma área de terra bem localizada, uns 30 ou 40 mil metros quadrados e construir um condomínio gracioso, pequenino e bem cuidado. Ruas contornando toda a área para que as casas não se “encostem” no muro que o delimita. Equipamentos antilatidos para alguma residência neste setor que viesse a ouvir algo como au-au. Paz, paz, paz!

     A seleção dos candidatos a morar ali seria feita por um medidor de educação e sensibilidade. Cultura seria um item desejável. Pessoas cultas, educadas e sensíveis, que saibam respeitar o próximo. Proibido som alto e qualquer coisa no gênero. A lei do silêncio seria exercida de forma intrínseca.

     Ah, faltou o nome do residencial: Spazzio de La Pace. (É brincadeira, desculpe o desabafo e o devaneio, caro leitor).

 

 

Um olhar para o futuro

 

UmOlharParaOFuturo

 

Marisa Bueloni

Temos abordado, freqüentemente, as contradições do nosso tempo e refletido sobre a inversão de valores, que acaba por confundir e promover equívocos irreparáveis. Os paradoxos são gritantes. Pregamos a necessidade de uma vida saudável e não respeitamos nosso próprio solo, produzimos poluição de forma desumana e criminosa.

     Em tempos de massacres anunciados, os desafios são inúmeros e exigem nosso permanente estado de alerta, diante de conceitos que nos são praticamente impostos, embalados com o selo do bem e da legitimidade. Hoje, discute-se muito a liberdade de expressão. Peço licença para opinar: liberdade de expressão, sim; respeito às religiões também. Respeite-se a fé, a crença das pessoas.

     Ao longo dos séculos, a humanidade assistiu às guerras, aos conflitos e disputas, marcados pela ambição desmedida. O espírito de domínio e de poder suplantou a inspiração da solidariedade humana, da vocação para o serviço público, e das descobertas que verdadeiramente representam avanços disponíveis para o bem-estar de todos.

     Um tímido olhar para o futuro do mundo e nos arrepiamos ate à alma, a partir dos incontáveis crimes contra a natureza. A falta de políticas ambientais eficientes, o fim de vegetações importantes para o clima e para as chuvas, são os responsáveis pelo colapso do que é vital para nós. Se hoje estes sintomas se apresentam como sombras ameaçadoras, revelarão potencialmente seus efeitos daqui a alguns anos.

     Quando ousamos lançar um olhar para o futuro, nem pretendemos ir muito longe. Não nos referimos às conquistas espaciais, à viagem para as estrelas e outros planetas; um rápido passeio terrestre pode apontar a degradação do meio ambiente bem próxima de nós. Com as últimas poucas chuvas, a tragédia das enchentes fez estragos em muitas cidades e, em algumas delas, as imagens registravam bueiros entupidos de lixo.

     Olhar para o futuro nos ensina a urgência do presente, sempre imperiosa, necessária e fundamental, sobretudo quanto à educação do nosso povo. Educar nos hábitos mais simples, tipo papel e palito de sorvete, jogados nos cestos disponíveis. Educar os donos de animais e as necessidades próprias de cada espécie. Educar para que os princípios da solidariedade e do respeito sejam vencedores nesta selva de grosseria, falta de educação e pouco caso.

     Ainda que as propostas para reduzir as agressões ao meio ambiente venham a contrariar os interesses dos poderosos, todos devem estar interessados nesta causa primordial. A Terra é a nossa casa, o nosso chão. A ela devemos um amor infinito, respeito e gratidão por todos os seus frutos e dons. E um de seus mais belos e vitais elementos começa a faltar...

     O mundo encontra-se bastante velho e doente. A humanidade também está desenvolvendo sérias enfermidades sociais. São patologias diagnosticadas à luz do amor que todos sentimos pela vida, para a qual desejamos um futuro de bonança, de salubridade e de paz.

 

 

Quando entardece...

 

QuandoEntardece

 

Marisa Bueloni

É no entardecer que a vida se torna mais intensa e ousa perguntar se, até aqui, tudo correu bem. Depois das três horas da tarde (a Hora em que tudo foi reconciliado em Deus), um novo movimento se faz notar por entre os sussurros diurnos. A tarde recebe do céu um vento ornado de promessas.

     Entre as alvíssaras, um anúncio nos assombra. “Jesus está voltando”, eis a frase escrita nas pedras dos caminhos, nos muros da vida, nas camisetas dos crentes e na fé dos que suspiram pela vinda gloriosa do Senhor. Viria Ele purificar esta terra de horrores; viria para deter o banho de sangue na Nigéria; viria em socorro dos pequeninos e dos que carregam cruzes pesadas. Viria para curar e salvar. Alguém pode aguentar mais um pouco só de violência e de corrupção? Quem consegue tomar conhecimento das notícias, sem sentir um profundo desprezo pelo gênero humano?

     Há rumores de guerra no ar. Sempre houve, é certo. Tudo isso terá de acontecer, embora ainda não se esteja perto do fato derradeiro, conforme ensinam as Escrituras. Quem as lê, vislumbra o porvir, e pode preparar-se para um tempo difícil. Tempos sem água e sem luz?...

     Ouvimos dizer que Jesus virá como Rei triunfal. Que falta pouco para a Sua Segunda Vinda se realizar. Feliz do servo que o Senhor encontrar sem culpa, cumprindo os seus deveres, seja no sofrimento, seja na alegria. A felicidade será completa para aquele a quem o Senhor dirigir um só dos Seus olhares!

     O entardecer me faz suspirar por tudo isso. Por esta promessa luminosa, quando as coisas serão novas e perfeitas. Um novo dom percorrerá o planeta, renovado em sua aliança eterna com o Criador. As virgens prudentes da parábola nos inspiram a termos nossa lâmpada sempre bem abastecida de azeite. Não venha nos faltar o óleo da santidade e do merecimento diante de Deus, para sairmos ao encontro do Noivo à meia-noite. Ele passará pela soleira da nossa porta e quem for digno de segui-Lo irá com Ele.

     O incêndio iluminador de uma tarde inquieta me inspira tais pensamentos. Caminhando pelas ruas da cidade, sob o calor intenso destes dias, elevo meu olhar para os céus, de onde imagino que o Senhor descerá. Ele virá sobre as nuvens e todo olho O verá. Aprendi assim e assim guardo o ensinamento no meu coração.

     Meu texto necessita de misericórdia, tanto quanto a humanidade carece de amor. Tanto quanto o mundo sonha com a paz. Letras não podem prescindir de Deus e palavras não subsistem sem a seiva da força suprema e criadora. Do Alto vem o que alimenta cada frase e seu momento intrínseco. Almas não podem ser salvas sem o abraço do perdão divino. Estes conceitos atravessam minha mente, num turbilhão de imagens apocalípticas, quando os santos de Deus se revelarão ao mundo e cumprirão tarefas universais.

     As ruas da cidade são puro fogo. Minha alma é puro fogo. Sou devorada pela paixão do conhecimento, do estudo, da leitura, da pesquisa. Quero compreender o que virá e o que a Revelação divina me diz. Mas nem sempre é fácil. São Jerônimo, grande estudioso e apaixonado biblista, rogai por nós!

 

 

Pobre mundo rico

 

Pobre mundo rico

 

Marisa Bueloni

É lamentável, mas faltam aos nossos tempos os consistentes valores que dão suporte ao desenvolvimento de uma sociedade justa e humana, de bases fortes e dignas. A prática generalizada da corrupção é um exemplo maligno. Hoje, impera a lei da esperteza e escasseiam-se os elementos e conceitos formadores da boa educação. Há um franco relaxamento em toda parte e esta frouxidão é a tônica que vai se tornando regra de vida.

     As sociedades modernas se pautam pelo hedonismo e pela satisfação dos prazeres, na corrida consumista, no desejo de riqueza e poder. Todos querem ter o que é de última geração, sobretudo o celular mais poderoso. Seja para usar, seja para ostentar. A ordem é ter.

     Educadores e psicólogos chamam a atenção dos pais e responsáveis para serem mais rigorosos e enérgicos com seus filhos, uma vez que a tecnologia fantástica chegou cedo demais às mãos dos pequenos e, mais uma vez, é tarefa dos pais colocar limites ao uso destes aparelhos. Alerta-se para o excessivo número de horas que as crianças passam diante da televisão ou conectadas, e que poderiam ser aproveitadas com leituras, lazer criativo ou brincadeiras adequadas à idade.

     Guardei este pensamento do jornalista Carlos Alberto Di Franco: “Hoje, graças ao impacto da TV, qualquer criança sabe mais sobre sexo, violência e aberrações do que qualquer adulto de um passado não tão remoto. Não é preciso ser psicólogo para que se possa prever as distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa iniciação precoce”.

     Em nosso mundo rico em lazer e entretenimento, encontramos inúmeras aberrações deformadoras do caráter e da vontade. Todo tipo de facilidade é apresentado às pessoas, para que não precisem mais pensar ou raciocinar.  Encontramos à nossa volta um volume de novidades e informações, onde muitos de nossos interesses são  programados de acordo com a mídia avassaladora. Neste universo misto, vários deuses são cultuados no intenso fervor das fantasias. A beleza a qualquer custo, o poder, o dinheiro, o luxo, a vida de ostentação estão entre os novos “valores” aos quais se presta culto.

     Daí a necessidade do chamado “espírito crítico”, a importância de saber pensar pela própria cabeça e não se deixar iludir por aparências enganosas. Trata-se da capacidade de refletir, raciocinar e questionar o que nos é apresentado de forma tão sedutora. Ninguém se engane com a fantasia do mundo virtual, do cinema ou da tevê. É preciso ter os pés no chão e considerar o valor do mundo real. É na realidade do dia-a-dia que vivemos e construímos nossa possível felicidade.

Pobre mundo rico, fabricante dos mais sofisticados produtos e máquinas, dos mais fabulosos meios de lazer e diversão. Sim, tiramos o chapéu para ele. Mas encontramos nele disparidades e contradições gritantes. São tantos os contrastes, que acabamos invertendo a ordem natural da vida, para vivermos escondidos, reclusos e cercados por um absurdo aparato que nos dá a ilusão de segurança.

 

 

Um canto de paz

 

Um canto de paz

Marisa Bueloni

Minha alma deseja cantar um canto novo. Uma dessas harmonias benfazejas, capazes de nos fazer sonhar e revolucionar o mundo, o universo eternamente em expansão.

     Busco compreender o sentido da perene recriação cósmica, e o assombro é colossal. Jamais alguém conseguirá decifrar o grande mistério de Deus. É Ele o Alfa e o Ômega, o início e o fim. Assim, fico tranqüila ao pensar que “Deus está no comando”, como se diz, e tento descansar. Penso que de nada irá adiantar me afligir por isso e por aquilo, pois há um plano superior para toda e qualquer situação.

     Meu canto tem a pretensão de pregar a paz deste descanso, desta entrega total e irrestrita a planos que não podemos conhecer, a altitudes celestiais impossíveis de serem alcançadas, a não ser em sonhos.

     Descansar. Repousar. Relaxar. Quantos conseguem fazer isso? Estamos mergulhados na azáfama diária e são tantas as nossas urgências, que não nos resta mais tempo nem para rezar.

     Não quero nunca deixar de rezar. A oração é o alimento da alma e é com ela que nos fortalecemos para a solução de questões aparentemente tão espinhosas e impossíveis de serem resolvidas. Irmã Lúcia de Fátima dizia que “não existe problema espiritual ou material que não possa ser resolvido com a reza do terço”.

     É este o meu canto novo, o meu canto de paz: a oração. Ah, como precisamos rezar. No meu catecismo de menina, preparando-me para fazer a primeira comunhão, a professora disse que “rezar é conversar com Deus”. Levo comigo vida afora esta lição maravilhosa, crendo que estou conversando com o Criador enquanto rezo.

     Será mesmo possível alcançar graças com o poder da oração? Só pode atestá-lo quem já as alcançou, desfiando as contas do rosário, fazendo as novenas tão belas e poderosas. Somente o dirá quem já ficou em silêncio e rezou com palavras do seu coração, refletindo profundamente no sentido delas.

     Meu canto se destina a este recomeço no calendário do tempo. Um canto de paz para um mundo em guerra. Um canto de solidariedade para com todos os povos e nações, para com todas as pessoas na face da Terra, pois como bem disse o papa Francisco, “cada homem e cada povo tem fome e sede de paz”.

     Será tarde demais para cantar a paz? Está muito fora de moda desejar o amor e a paz neste nosso mundo tão decaído? A canção sertaneja diz que “é preciso amor pra poder pulsar/ é preciso paz pra poder sorrir/ é preciso a chuva para florir”.

     Sim, sem paz não pode haver sorrisos nem abraços. A paz constitui a base da nossa felicidade, da nossa alegria, do nosso afeto. A solicitude nasce da paz, da boa vontade entre as pessoas, na ajuda mútua.

     A paz é fruto da justiça e quando todos sentem que têm oportunidades iguais, com direitos respeitados, pode-se entender que dessa forma a paz será possível. Cantemos juntos, caro leitor, este canto de paz. Eu rezo aqui. Você reza aí. Saúde, amor e paz a todos nós. Amen.

 

 

 

 

Velho ano novo

 

VelhoAnoNovo

Marisa Bueloni

Não. Não há feliz ano velho e parece não haver nem mesmo feliz ano novo. Ano vai, ano vem, e as mesmas coisas estão aí: o perigo dos conflitos entre países, a crise mundial, violência e muita corrupção. Além de atiradores enlouquecidos que matam vidas ainda florescendo ou que praticam atos de terrorismo.

     Feliz ano novo. Mas há nações em guerra civil, onde as insurreições não cessam. Israelenses e palestinos continuam em luta; há refugiados pelo mundo todo, à procura de um lugar para viver, catástrofes naturais deixando um rastro de desolação e milhares de desabrigados.

     Como se faz para um ano ficar novo? Dar um belo polimento em 2015 e esfregar bem para ver se ele brilha? Passar lustra-móveis, aplicar gliter, purpurina, colar estrelinhas cintilantes?

     Parece que o tal do “ano novo” está dentro de nós, começa lá no fundo do nosso coração. Não se faz um ano novo somente com um cartão de lindas palavras, champanhe, abraços e fogos de artifício. O que é novo e bom nasce de nobres ideais, construído com a luta e a força do bem.

     Nada será novo se o coração for velho. É preciso uma renovação profunda em muitas áreas de nossas vidas e de nosso ambiente exterior, para se construir um ano novo, quiçá um mundo novo.

     Se alguém muda, o mundo muda. Se uma pessoa passa a ser sensível e consegue estender suas mãos para o próximo, tal gesto será causa de grande transformação! Que mudança formidável, quando, acostumados com a rotina, conseguimos enxergar o outro, sua dor, seu sofrimento, suas necessidades.

     Se alguém pensou em começar o ano novo partilhando, esse ganhou o céu. Olhar nos olhos das pessoas quando se fala com elas, acolher, entender e aceitar o outro como ele é, como ele pensa e como ele vive. Ó, que ano novo!

     A paz nasce de gestos pequeninos, porém concretos, significativos, poderosos. A paz de um ano novo, ou de um mundo novo, não vem de graça. Ela tem de ser engendrada, conquistada, passo a passo, pois não há outro caminho senão o da fraternidade, do respeito, da solidariedade e do amor.

     Sem amor, nunca teremos nada novo. Um ano será sempre velho, repetido na miopia de líderes mundiais que almejam apenas o poder pelo poder. Ainda que todos os homens falassem a língua dos anjos, sem amor, nada seríamos. Sem amor, não se põe tijolo sobre tijolo, e nada se constrói de físico para morar, ensinar, educar, cuidar, sarar, gerir.

     Como se faz a gestão do amor? Será preciso primeiro educar uma geração de pessoas capazes de se doar, de se permitir ser bom e humano. Estamos num deserto de vida. Ao nosso redor, há medo, violência, cidadãos trancados em suas casas. Corações e mentes precisam estar abertos para uma nova produção de sonhos, de ideais, de programas políticos com força para nos levar ao sonhado ano novo.

     Não há glória sem justiça, sem paz. Ah, caro leitor, me perdoe o desabafo. Não me ache pessimista. Não sou. Ninguém, mais do que eu, desejaria finalizar este texto desejando um “feliz ano novo!”.

 

 

 

Deus sabe o que faz

 

DeusSabeOQueFaz

Marisa Bueloni

É ano novo. Frei Saul diria: “Gente, não muda nada, apenas a data na folhinha”. Eu também acho. As nossas batalhas são insignificantes perto das vitórias de Deus. Não temos ideia da Sua grandeza. Todo o universo é pouco para a extensão do Seu poderio. É Ele quem manda no ano novo.

     Depois que os cientistas descobriram a “partícula de Deus”, julgam estar a um passo de desvendar os mistérios da cosmogenia, da origem da vida e seus assombros. Contudo, chega-se num ponto onde não é mais possível avançar. Ali é território divino, impenetrável e, talvez, profundamente simples. Ou complexo demais para a inteligência humana?

     Vi na tevê um físico discursar sobre o assunto, o “big bang”, a explosão colossal de algo que pulsava, contrariando a teoria do nada. “O nada não existe, nunca existiu”. Um entrevistador perguntou se, afinal, seria possível fazer alguma ligação disso tudo com Deus, e o físico disse: “A mecânica do Universo não precisa de Deus; as pessoas precisam de Deus”.

     Estarreci no meu sofá, pensando se Quem criou esta mecânica não seria justamente Deus. Ele não precisa, de fato, de algo que foi criado por Suas próprias mãos, mas rege-o, sem dúvida.

     Esta mecânica é perfeita. Se descuidar um só segundo, ó Deus, o que poderia acontecer? Do maravilhoso espetáculo de planetas alinhados, teríamos colisões monumentais e a pulverização do nosso sistema solar.

     Tentamos prever o futuro do universo, se é que o universo tem futuro. Orbitamos em volta do Sol, uma estrela de quinta grandeza, como insistia irmã Clara, professora de geografia nos meus tempos do Colégio Assunção, no nosso livrinho todo ilustrado com astros celestes.

     Quando um novo professor de geografia chegou, ficou assombrado que tivéssemos aprendido sobre o Sol, a Lua, Saturno e seus anéis, e o pouco conhecimento do nosso país, sua extensão, seus problemas, sua geográfica posição no mapa do mundo.

     Ah, o mundo! Climatologistas modernos discutem o aquecimento global, atribuindo-o às atividades antrópicas, às emissões de carbono e demais gases poluentes causadores do efeito estufa. Junte-se na receita de catástrofes naturais o desmatamento das nossas florestas. Um destes estudiosos afirmou que o aquecimento global não existe. Durma-se com um barulho desses.

     Bem, estamos no início de um novo ano e às voltas com questões ambientais urgentes, pois se trata da nossa sobrevivência na Terra. A crise hídrica tornou-se um fantasma que assusta, mas não faz a população mudar seus hábitos. Não há, ainda, uma compreensão do que é a escassez de água.

     Vamos em frente, avante! Afinal, é ano novo. Alguns arriscam dizer “vida nova”. Que seja. Acredito piamente que Deus sabe o que faz. Só Ele está no controle de tudo, regendo a vida e o mundo. Como teria dito Einstein: “Deus não joga aos dados”.

 

 

Sino ou tambor

 

SinoOuTambor

 

Marisa Bueloni

Meu coração pequenino,

num átimo de temor,

ouve o badalo de um sino

- um sino ou um tambor?

 

Seria o rufar do destino,

a luta, o desatino,

o som confuso da dor?

 

Tambor ou sino, sino ou tambor?

Que som é esse, Senhor?

 

Badala o sino grandioso,

troa o tambor furioso

- são anjos justiceiros, suponho, em terror.

Trazem as taças divinas,

abrem os livros lacrados,

vestem-se de dourados,

que terrível, que esplendor!

 

Que dias, que dias!

Ao som destas melodias,

batidas no bronze

e no surdo das algaravias.

Desperta minha alma curiosa,

desperta uma rosa.

 

Dorme, flor jardineira,

que a Hora não é chegada.

Não é dia ainda, é madrugada.

 

Dorme, rosa do tempo

e deixa que rufem tambores,

que sonhem os sonhadores,

que sinos badalem, eloquentes.

Cuida, rosa querida,

que despertem as gentes.

 

Meu coração pequenino,

às vezes, ouve um sino,

que badala nas alturas,

que se ouve nas lonjuras,

pentagrama de ternuras,

- ah, que sino, Senhor!

 

Meu coração pequenino,

às vezes, ouve um tambor,

que soa como um estrondo,

que bate um bumbo redondo

e para ele respondo:

- Eis! Vem chegando o Amor!

 

 

Profecia

 

Profecia

 

Marisa Bueloni

Uma noite destas

será Natal

 

Uma noite destas

será fatal

 

Para mim, para você

para os que sonham

 

Para os construtores

da aurora

para os autores

da luz

 

Uma noite destas

pode ser a hora

pode ser agora

me dê a sua mão

 

Numa noite destas

haverá festas

sem fim

 

Faço parte da cena

a mais bela que já vi

 

Eu estive nela

e nunca mais saí

 

 

 

 

As primeiras letras

 

AsPrimeirasLetras

 

 

Marisa Bueloni

 

Na época dos vestibulares, é comum a divulgação na mídia das “pérolas” guardadas pelos colecionadores destas espécies genuinamente nacionais: os trechos de provas que se notabilizam, senão pela hilaridade, então pela tragédia que se abateu sobre o ensino como um todo.

     De fato, é difícil achar graça na desgraça. E o que tem ocorrido com a alfabetização e o saber, em geral, é algo lamentável. Se o aluno chega ao vestibular praticamente semi-analfabeto, como completar a prova? Se ele mal consegue entender o enunciado das questões, como saberá resolvê-las? E se o que conseguiu aprender foi um português dos mais precários, como se sairá nas questões que exigem respostas escritas?

Estamos diante de um grande drama: os alunos de hoje concluem o ciclo básico com grandes dificuldades na redação. E isto diz respeito a uma única matéria: a língua pátria. Em termos de cultura, história, ciências, geografia, matemática e demais disciplinas afins, sabe Deus a quantas anda o aprendizado da moçada.

Os professores, certamente, se esforçam e lutam para levar o conhecimento e noções básicas da disciplina que lecionam. Como estará, hoje, a experiência do magistério nas escolas públicas? Com quanto sacrifício não estarão batalhando todos, diretores, professores, funcionários, coordenadores, para cumprirem bem sua missão dentro dos estabelecimentos em que atuam.

O grande antropólogo Darci Ribeiro, durante toda a sua vida, pregou o amor ao saber e ao conhecimento, insistindo que a escola deveria ensinar o principal aos alunos: o domínio da escrita e da leitura, além das quatro operações. Darci dizia que uma pessoa pobre, porém alfabetizada e conhecedora dos números, sempre teria condições de sobreviver, de escrever uma carta a um determinado órgão administrativo da sua cidade, reivindicando água, luz, asfalto, creche, melhorias.

Sem o domínio das primeiras letras, o analfabeto é alguém sem nenhuma dignidade. Trata-se de um cidadão completamente desprotegido, despojado de seus direitos, de sua cidadania. Ele não sabe aonde ir, a quem recorrer, como pedir ajuda para seus problemas, se não consegue fazer uma petição simples e elementar.

Todos, de qualquer classe ou nível, têm direito à ascensão social. Estudar, aprender, dominar um determinado conhecimento é a maior riqueza na vida de um ser humano e faz dele alguém digno, com capacidade para se sustentar e ocupar um lugar na sociedade, sendo útil, produtivo, participando do progresso e do bem-estar da comunidade onde vive.

    Para alguém ingressar na faculdade, é necessário ter concluído o segundo grau. Então, que os professores, diretores e reitores estejam atentos. Talvez ajude no processo mostrar esta frase ao vestibulando, antes de ele entrar na sala: “A pata nada”. Leu em voz alta, pode prestar a prova...

 

 

 

A força da fé

 

AForçadaFe

 

 

Marisa Bueloni

 

 

É maravilhoso pensar no auxílio divino e na maneira como o Senhor nos dá o livramento. Quando chegamos ao limite do insuportável, Ele vem e nos salva, levanta-nos com Sua mão poderosa. Se nossa dor é moral ou espiritual, liberta-nos de alguma forma, transformando uma situação aparentemente incontornável. Quando estamos sofrendo de modo sobre-humano, não mais resistindo às limitações físicas e ao sofrimento da carne, o Senhor nos dá o alívio da morte.

Não há mal que perdure na vida dos que temem a Deus e confiam n’Ele. Rezo incessantemente e renovo de minuto em minuto minha confiança filial. Só o Senhor restaura os caminhos dos fracos, dos desesperados e dos sem fé. O Senhor dá a vez a todos. Penso na multidão de pobres e famintos, no sentido material e espiritual, prostrados no sofrimento e na penúria.  Com um mínimo pensamento de amor, o Senhor os elevaria e os cobriria com Seus favores.

     Creio firmemente no poder restaurador de Deus e na Sua infinita bondade. Ele não pode fazer desaparecer os problemas terrenos, pois seria o mesmo que nos privar da vida que Ele mesmo no-la deu. Não dorme quem guarda Israel e o Altíssimo vem em nosso auxílio para a solução do que nos parece irremediavelmente perdido. O Senhor vela sobre os simples e socorre o justo, diz a Palavra.

     Já fui mais requintada, reconheço, mas hoje busco a simplicidade e o despojamento. Aprendi a tomar da vida apenas a parte que me cabe e que me é necessária. Não há luxo que me seduza, nem vaidade que me contemple. Conheci a beleza da austeridade sem ser exatamente pobre. O voto de pobreza constitui matéria divina, dos consagrados ao Senhor. Mas, se alguém que vive no mundo deseja fazer este voto, tenha a consciência do próprio gesto. E o Senhor estará atento a cada palavra.

     Agradeço a Deus pelos livramentos. Por estas ataduras suaves que Ele põe sobre nossas feridas, a cada dia.  Com o Seu santo beijo, sopra nelas com carinho paternal e sinto o sopro a refrescar minha alma peregrina. Embora vivendo o espírito secular do mundo, peço que me ajude a ter um coração humilde, pequenino, capaz de me interessar pelos que peregrinam comigo, pela dor dos que estão à minha volta, partilhando com eles o meu afeto, os meus bens e a minha amizade.

     O Senhor será o pagador do nosso salário, a paga da vida. A saliva da nossa boca, o sal da nossa comida, o suor do nosso rosto, a vestimenta, o sapato, o copo d’água, o peixe, a verdura e o nosso pão. As nossas intenções, as atitudes de amor e de compaixão, o perfume do corpo e da alma.

     Confesso já ter andado pela “noite escura”, da qual retornei mais forte. Aprendi a lançar ao céu um eterno louvor de gratidão e a desenvolver o dom da paciência, porque os seus frutos são doces. Minha alma se esparrama além de mim, cantando salmos. Que a bênção destes louvores ecoe pelos ares. Neste Advento de graça, guardo no peito a paz da consolação. Na força da fé.

 

 

 

Os cães não têm culpa

 

 

OsCaesNaoTemCulpa

 

Marisa Bueloni

 

     Às vezes, penso que sou uma “alma-vítima”, cuja expiação é ter de conviver com latidos de cachorros. Nada tenho contra animais, ao contrário, sempre tive profundo amor por eles. Contorcia-me de pena ao vê-los sofrendo em picadeiros de circos e cresci respeitando a vida de qualquer bicho.

     Morei duas décadas num bairro onde, por algum tempo, desfrutamos de certa tranqüilidade. Aos poucos, o cenário sonoro foi se transformando. Durante o dia, eram os latidos na casa ao lado, a ponto de pegar meu carro e precisar sair, para aliviar a dor de cabeça. À noite, gatos correndo pelos telhados, miados agudos de felinos no cio.

     Desta casa, meu marido e eu nos mudamos para uma chácara. Posso dizer com autoridade que raramente se vai ao encontro da paz neste recanto sonhado. De início, encantamo-nos com a beleza do campo, mas suportávamos a algazarra e as festas das propriedades próximas.

     Então, um vizinho vendeu a chácara e a nova dona, consta, veio com oito cachorros. Os latidos eram em variada escala de raças e havia um meio rouco. Até que o pessoal da Zoonoses foi lá fazer a vacinação dos cães e a dona foi orientada a ficar com “apenas” quatro. Meu marido sentia vergonha de fazer isso, mas fazia: comprava bombinhas de São João e as estourava de madrugada para que os cães parassem de latir. No Natal de 2010, já viúva, negociando minha chácara e organizando a volta para a cidade, levei uma garrafa de vinho para a vizinha e lhe dei um abraço...

     Se a pessoa sabe que, ao deixar o cão sozinho em casa, ele irá latir por horas a fio, precisa tomar providências quanto a isso. O vizinho não é obrigado a ouvir latidos por uma tarde inteira e parte da noite, até que o dono volte para casa. E o direito à lei do silêncio a partir das 22 horas? Ou das 5 da manhã, num episódio de dois galos que acordavam a vizinhança e foram vencidos com uma ação legal.

     Acompanhei pessoalmente o caso de um cão infestado por carrapatos. Sua dona parecia ignorar o fato e os pequenos aracnídeos invadiram a residência ao lado. O morador desta fez todos os contatos possíveis com os órgãos responsáveis e nada foi feito de efetivo para resolver o problema. Só lhe restou agir por conta própria, comprar o remédio indicado e contratar uma pessoa para aplicar no cão.

     Alguém gosta de encontrar fezes de cachorro na frente da sua casa? O dono do cão não deve deixá-lo se aliviar lá fora, sobre a calçada dos outros. Pode-se passear com ele, esperar a biologia funcionar, recolher com uma pá, colocar num saquinho e voltar para casa. Isso é civilidade, ética, respeito para com o meio ambiente e para com o próximo.

     Os cães e gatos não têm culpa de nada. Seus donos é que têm a responsabilidade de se comportar de forma correta, entendendo que, se eles têm direito de criar animais em casa, vizinhos existem e devem ser respeitados.

     Há contendas irracionais sobre o assunto. Porém, tudo é questão de bom senso, de se buscar a convivência pacífica, baseada nos princípios que garantem a igualdade de direitos e o descanso de todos.

 

 

Surto do bem

 

 

Surto do Bem

Marisa Bueloni

 

Não sei se tenho o que se poderia chamar de “melhores textos”. Às vezes, noto que alguns são melhores que outros, pela reação dos leitores. Aí vejo que peguei a turma na veia. Os e-mails me dão uma medida do que escrevo.

Bom, a gente não pode ter essa presunção, que pode ser tola, pedante. Ou que pode ser humilde e sincera. Apenas um auto-reconhecimento (tem hífen?) de que talvez tenhamos produzido algo que valeu a pena.

Enfim, dou sempre uma volta para chegar onde quero. É o meu jeito simples de ser, de viver. Que mania essa de sempre ter de me explicar. Alguém explica? Nem Freud explicou direito. Ficaram algumas lacunas, não?

Bom, meus “melhores textos”, se os tenho, foram escritos em um surto que eu chamo “do bem” (ui!). Sim, aquele. É uma maravilha quando se tem consciência e controle sobre ele. Alguém perguntou que febre me ataca em certas crônicas. É o surto amigo que me assalta e o teclado todo não é suficiente para meus dez dedos ágeis, pois digito com os dez, fiz datilografia aos 12 anos, pratiquei em máquina de escrever até o surgimento do computador e tive uma Olivetti Lettera 32, cor-de–rosa, companheira e cúmplice. Se eu fosse pra cadeia um dia, levava ela comigo.

E quase fui. Sim, nos anos 80, fui processada pela Lei de Imprensa. Por um ponto de exclamação, acredite. O diretor do jornal, juntamente com o editor da página de recadinhos que fazíamos aos domingos e eu. Os três mosqueteiros. Um por todos, todos por um!

Numa contenda com o prefeito, o diretor de um jornal onde eu colaborava  publicara uma frase considerada tendenciosa, por causa do ponto de exclamação no final. Foi processado pelo ponto exclamativo. O editor da página dos recadinhos e eu, solidários, entramos na onda, brincamos com o assunto e acabamos arrolados no processo.

Concluindo: “tocamos piano”, comparecemos à audiência no Fórum, fomos defendidos pelo presidente do Sindicato dos Jornalistas, que veio de São Paulo para nossa honra, e fomos todos absolvidos. Glória das glórias.

Mas meus “surtos do bem” é que são maravilhosos. Eles me levam a fazer coisas que eu não faria sem esta pequena e deliciosa alteração mental. Eles me salvam em momentos incríveis e, na minha sanidade, me dão uma noção de quão vasto e louco é este nosso mundo.

     Quando o “surto do bem” ataca, podemos ficar ousados e valentes, falamos muito, mais que o normal, e temos um poder imenso. Sim, nos achamos o máximo, somos capazes de proezas inimagináveis, sentimos uma força extraordinária, exterior e interior. Mas com o exato domínio e controle de tudo.

Este fenômeno deve vir do fundo dos neurônios, fruto de um processo químico e emocional que se auto-interage e cria um impulso elétrico formidável e fenomenal dentro da gente. Lá, lá. No cérebro nosso amado de cada dia. Santo cérebro, padre Otto!

Faz tempo que não sinto a maravilha desta natureza. Ando muito cautelosa com tudo e a realidade me faz pisar no freio. Ai, ai, ai... Melhor surtar?

 

 

 

  A água nossa de cada dia

 

 

AguaNossaDeCadaDia

 

Marisa Bueloni

 

Quando olhamos para um rio, vemos apenas o curso d’água que corre, deslizando poeticamente por entre pedras, carregando o murmúrio das águas e o eterno sonho dos peixes. Nossa visão, quase sempre, para aí.

     Um rio, em si, continuará sendo belo e profundamente inspirador, pelo que representa na natureza, como recurso para o fornecimento de água. Mas sua beleza precisa ser mantida, a qualquer preço. E não basta ser belo para compor o cenário dos cartões postais. Precisa ser limpo, fornecer água de qualidade, alvo de carinho e zelo da comunidade que dele se serve.

     O grau de respeito para com a natureza deveria ser a base para uma unidade de medida relacionada ao conceito de preservação, de prática ecológica adequada à educação ambiental. Ou seja: medir a sensibilidade de um povo, sua consciência quanto aos valores éticos e ecológicos, pelo carinho dispensado ao meio ambiente e a toda forma de vida.

     Há um recurso natural que começa a tornar-se escasso em nosso planeta: a água. Do cuidado atual, se é que estamos em tempo, dependerá o uso futuro da água. Ou corremos o risco de, dentro de pouco tempo, termos torneiras absolutamente dispensáveis em nossas casas. Este seria um momento de grande consternação pública.

     A água é um elemento de uso diário, constante e contínuo. Ela é vital. No entanto, neste momento, a ordem é economizar, evitando-se todo tipo de desperdício ou mau uso. Para cada minuto que uma pessoa fica com o chuveiro ligado, o consumo é de 12 litros de água, em média.

As instalações hidráulicas das residências merecem vistorias freqüentes, sem contar que vazamentos em torneiras e vasos sanitários costumam acarretar desperdícios e aumento na conta de água. Outra coisa: a rede de esgoto não deve jamais ser usada como lata de lixo. Portanto, é proibido jogar tocos de cigarros, cotonetes, fraldas, embalagens vazias, absorventes, preservativos, pequenos objetos e lixo em geral no vaso sanitário.

     A água é um bem natural finito. No mundo todo, os estoques de água potável são mal distribuídos e mal  utilizados. A água pode se esgotar, pode apresentar-se contaminada e em condições inadequadas para ser consumida.

     É para evitar qualquer grau de desespero que todos lutamos por uma maior consciência no que diz respeito à preservação dos recursos naturais. A exploração destas riquezas deve ser sustentável, racional e consciente, criteriosa, para que amanhã não venha a faltar os bens mais essenciais à vida.

     Vivemos uma crise hídrica aqui no sudeste do país. E já se cogita sobre a dessalinização da água do mar, com a estação em Bertioga e os aquadutos que conduziriam a água até o Sistema Cantareira. Alguém comentou assim esta notícia: “Vão secar o mar!”.

     Faltou planejamento, senhores? O desmatamento na Amazônia e a ausência da “respiração” da floresta determinaram a escassez de chuvas no sudeste, é o que afirmam os biólogos e climatologistas.

     Será que adianta rezar?...

 

 

 

 

Pobreza imoral

 

Pobreza imaoral

 

 

Marisa Bueloni

Desde que o mundo é mundo, as diferenças sociais existem e as pessoas habituaram-se a elas. Ainda que saltem aos olhos, firam a dignidade humana e causem indignação profunda, pobreza e miséria fazem parte da história da humanidade.

     Os sistemas políticos estão organizados de forma a privilegiar determinados segmentos, exatamente os que dão suporte e continuidade a uma estrutura que tem suas garantias asseguradas. Algo que se pode traduzir pela palavra “poder”. Por causa dele, reinos inteiros já foram destruídos ou conquistaram a glória absoluta.

     A maioria dos governos parece governar em causa própria, cuidando de interesses particulares, deixando a população à deriva, sobretudo nos países pouco desenvolvidos.  Algumas nações possuem organização política e social capaz de atender aos princípios básicos da cidadania e da justiça. E quando isso acontece, em sociedades sofisticadamente desenvolvidas, povo e governo costumam se comportar com certa arrogância, demonstrando ostensivamente sua opulenta supremacia.

Contudo, o mundo e as sociedades modernas vivem momentos de graves contradições. A humanidade tem se deparado com importantes avanços tecnológicos; o conhecimento se expande em todas as áreas e, paradoxalmente, quanto mais se vislumbra o futuro maravilhoso e se descortinam novos horizontes, menos se pode esperar dos resultados destas conquistas. Elas não são distribuídas igualmente para todos, não estão disponíveis no mercado da fraternidade e da solidariedade.

     Em tempos de oportunidades em áreas recém-inauguradas pela inteligência humana, o desemprego e a falta de perspectivas estão presentes, de uma forma jamais vista. Quanta gente perdeu o seu emprego, profissionais competentes e experientes em suas áreas de atuação estão fora do mercado, sem esperanças de retomar a atividade profissional. E para os jovens, quais as perspectivas de trabalho?

     Se com estudo e um diploma, a vida se apresenta muito dura e o mercado altamente competitivo, pode-se imaginar as poucas chances de ascensão social ou de melhoria de qualidade de vida para quem não conseguiu cursar uma faculdade. O sistema se mostra injusto e opressor e, praticamente, expulsa de suas salas impecáveis e equipadas quem não teve meios de estudar ou de desenvolver profissionalmente as suas habilidades naturais.

     Um presidente disse que no mundo de hoje nenhum problema se compara ao desequilíbrio que conhecemos e que mostra, de um lado, o “crescimento imenso das forças produtivas, a capacidade imensa de acumulação de riqueza de que as economias globalizadas dispõem”, lembrando que, do outro lado, mais de 1/5 da população do mundo continua a viver na indigência.

     A pobreza, segundo ele, “é uma imoralidade” e combatê-la, erradicá-la, é uma questão de ética. Todo governante sabe e entende que a pobreza precisa ser diminuída, suavizada, e que o povo não pode continuar vivendo no chamado “vale de lágrimas”.

     “O Brasil não é um pais pobre; é um país injusto”,  afirmou ele anos atrás. Conseguiremos erradicar a pobreza e inaugurar a justiça?...

 

 

O tempo de vida

 

 

O tempo de vida

 

 

Marisa Bueloni

 

A idade, nosso tempo de vida na Terra, confere-nos alguma autoridade. Ou um pouco de rigor moral, para saber emitir juízos de valor, onde a noção de certo e errado, do  bem e do mal, esteja fortemente alicerçada.

     O escritor Pedro Nava dizia que a experiência é um farol voltado para trás. Pode ser. Ele ilumina nosso passado, nos ajuda a enxergar a trajetória que faz de nós o que somos hoje.

     A idade e a contabilidade das nossas lutas e vitórias, dos erros e fracassos, emergem de um ponto onde as nossas forças se destacam solenemente. Aprecio, com imensa gratidão a Deus, os momentos em que nos encontramos combalidos, seja por uma simples gripe, uma enfermidade mais grave, ou um quadro de saúde que passe a exigir uma decisão imperiosa de nossa parte.

     E a idade vem em nosso auxílio. O acúmulo dos anos em nossas costas conta pontos preciosos. O estágio em que já não há os arroubos das atitudes impetuosas e ousadas pode ser uma bênção na vida de muitas pessoas, pois as livra de vexames e gafes inconfessáveis. A ponderação, o bom senso e a serenidade são coadjuvantes honestos nos passos e ações de quem tem a maturidade presa entre as mãos.

     O céu pode desabar sobre nossas cabeças e já não sentimos o peso desta catástrofe, pois aprendemos a usar o capacete da salvação. Privilegiados com o dom da fé, as vicissitudes terrenas passam a ser enfrentadas com amor e sabedoria. E isto independe da idade, mas é fato bem típico de quem começa a provar o lado provecto da vida.

     Olho para trás e nas retinas estão impressas lindas cenas de afeto e de bondade. Nas recordações da infância, sinto o cheiro das frutas colhidas no pé, vejo a beleza das tardes de domingo no sítio dos tios queridos, a madrinha adorada que me cercou de mimos e presentes. O amor e a luta dos meus pais, sua santidade e hoje a saudade profunda. Meus sogros também já partiram e, de certa forma, foram meus segundos pais, pessoas a quem amei devotadamente. Vejo gestos cheios de amor até o último instante de suas vidas.

     Olho para o presente e há uma riqueza cercando os meus dias. Família adulta, fortalecida, netos pequeninos, encanto deste tempo de vida. Olho para frente e vislumbro o mistério. Deparo-me com um oceano de profecias vaticinando a respeito do fim dos tempos, uma área de estudos do meu particular interesse.

     O Senhor virá em breve? Virá fisicamente ou virá apenas em nossos corações, numa experiência mística arrebatadora e individual? Houve um papa, no passado, que disse: “Oh, Senhor, há tantos sinais de que Vossa vinda não está longe”. E nós já estamos em 2014, em pleno século XXI.

     A idade, os anos vividos, a experiência e a prática, as cirurgias já enfrentadas, a força para a superação me fortalecem e me preparam para outros embates, aqueles que a vida tem reservado para cada um de nós.

Todos os dias, de joelhos, diante do quadro da Divina Misericórdia, a imagem do Senhor que Santa Faustina deu ao mundo, digo com fé a oração misericordiosa: “Jesus, eu confio em Vós”.

 

 

O país da esperança

 

OPaisDaEsperança

 

Marisa Bueloni

 

O Brasil já foi um pouco de tudo. Já foi o país do futuro, do milagre brasileiro, o país que vai pra frente, enfim, a nação da eterna esperança...

     Nós, cidadãos brasileiros, amamos esta terra, nossa gente, nossa cultura e desejaríamos conhecer, de fato, a prometida era de grande prosperidade, aproximando-nos do nível social dos chamados países de primeiro mundo.

     Há muitas décadas vivemos desta esperança. Ilumina-nos a ideia de um país onde haja oportunidade para todos, igualdade de direitos, cidadania respeitada, sobretudo para crianças, mulheres e idosos. E o trinômio de sempre: saúde, moradia e educação.

     Por que a aposentadoria de um cidadão brasileiro é vista com tanto descaso pelos nossos governantes? O contribuinte trabalha uma vida inteira, esperando uma aposentadoria digna, com proventos suficientes para cobrir suas despesas. Perguntamos como sobreviverá um idoso aposentado sem moradia própria, tendo de pagar aluguel, comprar alimento, vestuário, remédios?

Haveria esperança para os milhões de aposentados brasileiros? A inflação está aí, ameaçando corroer os salários dos trabalhadores. Os preços sobem, os juros são altos, mas os proventos previdenciários são os mesmos para os aposentados, há décadas. O aumento anual é irrisório, vergonhoso.

Temos um “novo” governo? Deus queira que sim. Deus olhe por este lindo país, de clima tropical, com praias paradisíacas e um povo maravilhoso. Quem visita outras terras, volta dizendo que nada se compara ao calor do brasileiro, sua simpatia, sua generosidade, seu abraço acolhedor.

     Que o “novo” governo saiba enxergar além do poder do Planalto, voltando seu olhar para o povo e suas necessidades, para as metrópoles que nem sempre estão preparadas para receber os que, a cada ano, deixam o campo e migram para os centros urbanos, na esperança de melhores condições de vida. 

     Assim, de esperança em esperança, vive a brava gente brasileira. Quantos governos prometeram “tirar as crianças das ruas”? Quantos prometeram mais escolas públicas e educação de qualidade? Quantos tiveram a preocupação com o saneamento básico e programas de auxílio aos estados e municípios, para que fossem feitas as obras necessárias? Foi lembrado, durante debates de campanha, que um grande contingente de brasileiros não possui um banheiro dentro de casa. Quando um governo sério e de palavra irá cumprir suas promessas?

     Olho com enorme compaixão o jeito animado e alegre do nosso povo, da nossa gente. Contentam-se com tão pouco e, nos cinco ou seis dias de folia, brincam de príncipe, de rainha, na fantasia da vida, para voltar à luta de sempre, cheios de esperança.

     Não podemos ser apenas o país do Carnaval, ou do samba, do futebol, que, aliás... Há muito, muito mais no povo e na cultura brasileira que poderá fazer deste país uma grande nação. Sobretudo, se tivermos um governante sensível, humano, inteligente, capaz de sentir na pele a esperança que, teimosa, renasce todos os dias...

 

 

 

 

Sinfônica

 

Sinfônica

Marisa Bueloni

O maestro é um anjo

De costas

Gesticulando as duas asas.

 

Vibra o corpo retumbante

Seu cabelo em desalinho

Dá-lhe um ar estupefacto.

 

Domina a música e o ar à sua volta:

- o maestro conversa com o sonoro

e rege os ventos!

Da ponta dos seus dedos sai um quase psiu

E ele faz um aqui ó

Para o músico do fagote.

 

Gosto quando ele imita um bailado com as mãos

Concentra-se e fala com Deus.

 

A orquestra toca suave:

O maestro está rezando.

 

 

 

Politicamente correto

 

Politicamente correto

Marisa Bueloni

Hoje, a ordem é ser “politicamente correto”.  Trata-se de uma postura bastante desejável, sobretudo quando se observa a ética, a cidadania, praticando-se a justiça e a igualdade de direitos.

     De repente, tudo passou a sofrer uma vigilância exacerbada, um patrulhamento quase ideológico. Na verdade, em alguns casos, houve um acirramento da questão. Até mesmo os humoristas passaram a reclamar, pois piadas suspeitas tiveram de ser abolidas dos seus repertórios.

     Lembro de mim mesma, muitos anos atrás, respondendo a um longo questionário para uma página semanal, editada por um grande comunicador social na imprensa de nossa cidade. Uma das perguntas era com quem eu não me casaria. E a tonta aqui, para fazer uma gracinha qualquer, respondeu que não se casaria com um “baixinho, gordinho e careca“. Como se um homem com esse biotipo fosse menos merecedor de amor e de atenção por parte de uma mulher.

     Arrependi-me amargamente da tolice cometida. Hoje, seria presa por esta estultice. Foi uma grande estupidez de minha parte. Basta lembrar a torcedora do Grêmio que chamou o goleiro “Aranha” de macaco. Ela mereceu a repreensão e, certamente, vai pensar duas vezes antes de destratar alguém.

     Não se pode julgar ninguém pela aparência, por sua etnia, cor, credo, gosto, jeito, características pessoais, sejam elas quais forem. Cada um é cada um, merecedor de todo o respeito e consideração. Claro que eu sempre soube disso, mas, às vezes, “escorregamos” feio quando deixamos de atentar para valores tão importantes.

     No dia-a-dia, vemos inúmeras situações em que alguém é discriminado por ser “diferente”. A vítima desta agressão se sente humilhada e terá motivos de sobra para protestar, pois estaria sendo violada em seus direitos de cidadão.

     O tal do “politicamente correto” vem ganhando cada vez mais espaço em nossa sociedade e a defesa da pessoa humana passa a ter um valor muito apreciado. Um cidadão que se sente ofendido por ter sido discriminado pode buscar seus direitos na Justiça.

     A ética nas relações humanas volta com toda a sua força, num momento em que se preza a justiça, a dignidade da pessoa e as oportunidades para todos. Além disso, este conceito pode abarcar outros valores, os que dizem respeito ao uso correto dos bens de consumo, do que a natureza nos oferece, de forma que não venham a faltar para as gerações futuras.

     Muita gente torce o nariz para o “politicamente correto”. Eu também já torci. Hoje, vejo que a força deste conceito traz muitos benefícios para todos. Desde o lixo que não se deve jogar no chão, passando pela rigorosa observância das leis de trânsito, até às minúcias do convívio social.

     O universo ainda está sendo criado e o homem que nele vive também está em construção... Desculpem o transtorno, estamos construindo o homem, senhores. E este serzinho arrogante e orgulhoso terá muito a aprender até ser correto, muito, muito correto.

 

 

 

Poema pobre

 

Poema pobre

Marisa Bueloni

Minha pobre poesia

é sem não-me-toques:

diz o que sente

sem retoques

 

 

Pois eu digo sem rodeios

poesia é coisa de muitos meios

 

 

A minha é pé no chão

taipa de fogão à lenha

leite tirado da vaca

sonho que se ordenha

 

 

É cheiro de grama orvalhada

som de trovoada

pulo do sapo na relva

vida renovada

 

 

Roupa de algodão

chinelinho rasteiro

dor no coração

pombos no viveiro

 

 

Pois saibam os senhores

versos sentem dores

e estou aqui

na voragem da vida

rimando sofrida

 

 

Minha poesia paulista

tem som de viola caipira

repica numa ciranda

roda de dança catira

 

 

Minha poesia é pobreza

é sandália franciscana

tem cheiro de café

arroubo de fé

e gosto de cana

 

 

Meu poema pobrezinho

não tem um vintém

não conhece ninguém

é sozinho

 

 

Vive de migalhas

de palavras contidas

veste-se de tralhas

das horas batidas

 

 

Meu pobre poema

não possui esquema

nem estratagema

nem do ovo a gema

 

 

Canta pequenino

as tristes cantigas

varre o chão de pedras

deita-se em urtigas

 

 

Meu poema pobre

sem linhagem nobre

não faz feio:

vai levando a vida

como ao mundo veio

 

 

Se me envergonho?

Nada! Até componho

qualquer um versinho:

vou pelo caminho

brada o meu poema

geme o meu pinho

 

 

Meu poema chora

pela vida afora

 

 

Mas percorre altivo

as frases solares

e rima festivo

solto pelos ares...

 

 

 

Atchim!

 

Atchim

Marisa Bueloni

Meu pai enrolava entre os dedos
Um cigarro de palha caprichoso
Moviam-se ali tantos segredos
Daquele fumo sempre bem cheiroso

Meu pai me oferecia um pedacinho
Do fumo preto para que eu cheirasse
- Faz espirrar! - dizia com carinho,
Para que, em seguida, eu espirasse

Mas num  espirro, a saudade bate
Meu coração mais uma vez se abate
E na saudade, triste, me retiro...

Fumo de rolo e as brincadeiras

Lembranças lindas e tão verdadeiras
Quero espirrar... e só suspiro!...

 

 

 

Primavera anunciada

 

Primaver anunciada

Marisa Bueloni

Quando setembro vier

quero estar de pé no chão

com uma flor no cabelo

uma esperança, um apelo

ardendo no coração

 

Quando setembro vier

serei a mulher

das colheitas

Perguntarei

o que não sei

- e se me aceitas

 

Quando setembro vier

serei a cítara

que alguém citara:

uma oração

uma canção

- kandara

 

Quando setembro vier

na primeira aragem

tomo coragem

e me alisto

- no último pelotão

uníssono cantochão

no exército de Cristo

 

Quando setembro vier

- dizem os astros –

haverá um esplendor

um calor

colossal

Estarei de pé

cheia de fé

de luz e de sal

 

Quando setembro vier

virá o sonho, a arte

Não posso dormir, no entanto

ou perderia o espanto

- a melhor parte

 

Quando setembro vier

darei adeus ao frio

correrei para os teus braços

morrerei nos teus abraços

na corredeira de um rio

 

Quando setembro vier

estarei de plantão

na garagem da casa nova

na época da desova

piracema da estação

 

Entra! – é tua

a Nova Terra

o solo bendito

o amor infinito

da salvação

 

E se for possível

meu bem

se ainda existir

um nupcial bem-me-quer

eu estarei lá, meu amigo

para cantar contigo

quando setembro vier... 

 

 

 

 

Visto

 

 

Visto

 

Marisa Bueloni

 

Minha primeira professora sabia abraçar.

Eu encostava a cabeça em seu peito

e sentia o perfume do céu.

As rendinhas bem engomadas da blusa branca

tocavam o rosto da gente de levinho.

O anel de dona Júlia brilhava como ouro.

Seu lápis vermelho bem apontado

colocava um V bem grande na tarefa de casa.

Nesta hora, a Terra parava de girar.

 

 

O mundo vai acabar

 

 

OMundoVaiAcabar

Marisa Bueloni

O mundo vai acabar e eu não fiz nada. Os sinais são evidentes, o Apocalipse de São João começa a se cumprir, o calendário maia aponta para o fim e fico pensando no que vai dar tempo de fazer até lá. Não sei se caso ou se compro uma bicicleta.

O mundo vai acabar, todo mundo está profetizando. Dizem que uma pedra imensa, um asteróide de nome Eros, está rondando o espaço, em rota de colisão com a Terra. E que haverá uma iluminação nas nossas almas no momento do abalo. Mas, caramba, tinha de se chamar justo “Eros”? Nome mais lindo!

Buuummmm! Vai ser um estrondo e tanto. E nós vamos explodir juntos com este impacto colossal? Oh, não! O que vai sobrar? Vai dar tempo de acabar o meu “Poema Inacabado”? De fazer um bolo de fubá e coar um café? De dar um passeio nas margens do rio Piracicaba? De assistir a mais uma missa do padre Edvaldo? De comer um lombo de filhote na brasa, com cerveja gelada, lá no Remador?

Dizem que não ficará pedra sobre pedra. Oh, eu quero tocar no que vai remanescer. Permiti-me habitar esta Nova Terra, meu Senhor e meu Deus! Não faço conta de tossir a poeira cósmica que será respirada por todos os sobreviventes, após o cataclismo final. Mas, depois, quero inalar o ar puro do novo Éden!

O mundo vai acabar, os prognósticos são os mais sombrios possíveis. Vai nada, penso. Olha a folhinha do Sagrado Coração de 2010, as agendas já estão todas prontas, as gráficas trabalham a todo vapor. O mundo não pode acabar, ano que vem tem o Mundial na África do Sul.

O mundo não pode acabar tão cedo, falta a Copa do Mundo em 2014 aqui no Brasil (ai,ai,ai...) e, depois, as Olimpíadas no Rio, em 2016 (hummm...). Como é que ficam estas agendas mundiais, se o mundo acabar?

Mas eu não paro de ouvir, dia e noite, que o juízo de Deus vem aí. E o atestam todos os cientistas e estudiosos da matéria, os livros escatológicos, os filmes de Hollywood, os astrônomos e os astrólogos. Todas as religiões e todas as seitas. O mundo vai acabar, prepare-se.

Como deverá ser esta preparação? Mudamos-nos todos para o Planalto Central – a única parte do Brasil que ficará totalmente seca, uma vez que quase todo o nosso continente afundará? 

Já fizeram piada disso: mas aqueles safardanas ainda vão se salvar todos? Pois é... Bobos de nós que trabalhamos, suamos a camisa, andamos direito, pagamos impostos, não temos castelos por aí, e ainda vamos ficar debaixo d´água, enquanto eles, lá em Brasília, dão adeuzinhos de camarote para nós.

Mas se acontecer o adeus final, vou me sentir em falta com relação a tanta coisa: às promessas que ainda não paguei, aos amigos que não visitei, às cartas de amor que não escrevi, aos beijos que soneguei, aos sonhos que não sonhei...

Quero ver se dá tempo de falar para algumas pessoas especiais: ainda que mal lhe pergunte, de que conto de fadas você saiu? Uma delas até já me respondeu: “Eu nunca saí”. Bem feito, quem mandou perguntar? Adorei, Eunice!

O mundo vai acabar e não comi açaí na tigela, só me casei uma vez, não conheço a Capela Sistina, nem a Escandinávia, tampouco um fiorde norueguês.

O mundo vai acabar e não dá mais tempo de ser cantora. Nem cronista, nem poeta, nem escritora. Nem ninguém. Diante da iminência do fim, o que é “ser alguém”?

Com o anúncio final, ando numa sofreguidão de dar pena. Se começa a chover, quero aproveitar o fenômeno meteorológico para ler. Depois, não quero mais, quero escrever. Também me desencanto da escrita, ando pra lá e pra cá, zanzando feito besta, numa maravilhosa tarde de chuva dentro de casa. É de arrasar o coração. Ó lenta agonia da alma, como é a tua face?

O mundo vai acabar e eu ainda não construí a minha sonhada “casinha de Nazaré”, como costumo dizer. Dará tempo? A casa mil vezes projetada, o canto adorado que desenho todos os dias. Melhor tirar esta porta daqui e deixar a passagem livre; esta janela dando para o pátio interno não está boa; três quartos ou dois apenas? Lar doce lar!

O mundo vai acabar e nem comecei meu Neruda. Ainda não comprei o livro do Sergio Antunes. Estou atrasada em relação a um monte de coisas, mas a confissão está em dia, graças a Deus. Pode acabar, “mundo velho sem porteira”, como diria o Liroca, personagem de Érico Veríssimo. Pode acabar, mundão, que estou em estado de graça.

Faz 30 anos que espero a bela devastação. Vem, Eros, que te queros, que te queros, dentro do meu coração!

 

 

 

O sabor das maçãs

 

 

OSaborDasMacas

Marisa Bueloni

Caro leitor, estou indignada. Quero saber, e acho que você também, o que é que houve com as maçãs. Elas estão sempre ali, nas bancas de frutas, reluzindo vermelhas e tentadoras. Quero saber onde foi parar o sabor das maçãs.

     Não consigo comprar uma bela maçã doce, suculenta, com sabor de verdade. As maçãs de hoje estão pasteurizadas demais, sem gosto nenhum, algumas são difíceis para mastigar, outras possuem uma casca muito dura, impossível comer.

     Perdoe-me o saudosismo, mas já não se cultivam maçãs como antigamente. Ah, as maçãs da minha infância, aquelas que a gente via no mercado central, dentro de um caixote de madeira feito de ripas clarinhas, todas embaladas num papel de seda roxo, onde se lia “manzanas argentinas”.

     Aquilo tinha um cheiro que impregnava a alma! Nós sabíamos quem da classe tinha levado maçã argentina de lanche, só pelo cheiro que ela exalava de dentro da lancheira.

     Aliás, no meu tempo, somente os alunos ricos levavam maçã argentina de lanche. Os outros comiam pão com manteiga, pão com queijo, pão com mortadela. O meu preferido era pão com mel. Sempre havia algum colega que não havia levado nada. Como não repartir e dar um pedaço do nosso lanche?

     Um dia, pedi a minha mãe para comprar maçã argentina. Levei de lanche e me senti uma princesa naquele dia. O perfume que exalava da minha lancheira não me deixava esquecer o que eu ia comer na hora do recreio. E antesaboreava aquela maravilha com água na boca.

     Ninguém poderá jamais saber o que se passava no coração de uma menina cheia de dores, mas que possuía a mais bela e mais saborosa maçã dentro do peito.

     Sempre associei a maçã à Eva e até hoje me pergunto por que ela fora tão tola, a ponto de se deixar seduzir pela serpente. Eu teria sido mais firme. Sobretudo, jamais desobedeceria a uma ordem dada pelo Criador. Sou alguém a quem se pode confiar uma tarefa. Quando tenho algo a cumprir, faço com paixão.

     Bem, mas a mulher que passeava inocentemente nua pelo Éden não resistiu ao apelo da língua bífida, portanto, deu no que deu. O mundo está aí, cheio de doenças e males diversos. Injustiças e corrupção de toda ordem. Coisa de envergonhar até mesmo à serpente enganadora. Outro dia, li um texto religioso, onde se dizia que o diabo fica pálido diante da maldade humana...

     Elegi a maçã como tema central, mas posso citar também o melão. Quase não se acha mais um melão doce. Mesmo as uvas estão cada vez mais sem graça e azedas. É uma sorte comprar um cacho bom. Outro dia, comprei meia dúzia de laranjas tangerinas. Aproveitei apenas duas. As outras estavam secas, duras, sem sumo nenhum.

     Seria o uso excessivo de agrotóxicos, aditivos químicos, pesticidas e o diabo a quatro para produzir em abundância, dando às frutas uma boa aparência? De que adianta, se elas vão perdendo a suculência e o sabor?

     Ah, a escola primária, a lancheira do recreio, a maçã argentina! E ter o resto da vida para comê-la!...

 

 

 

A alegria da esperança

 

 

AAlegriadaEsperança

Marisa Bueloni

 

Se os tempos são sombrios,existe um contraponto feito da coragem que brota em muitos corações. É precisocrer que ainda existem cidadãos de boa vontade, com força para construir ummundo mais humano e mais justo.

Encerrou-se parte do processo eleitoral de2014 e, no segundo turno, iremos eleger a pessoa que irá governar o nosso paíspor mais quatro anos. Pode ser que não seja o seu candidato, tampouco o meucandidato. Paciência. O importante é a vitória da democracia. O direito derefletir, escolher e votar.

Temos assistido a muita violência eassalta-nos a sensação de desamparo, de abandono. Ficamos indignados com a faltade políticas públicas voltadas para a segurança. Contudo, a força da fé, daesperança e do amor fraternal entre homens e mulheres em torno de um mesmo idealé um sonho a ser vivido e partilhado. A construção de uma sociedade justa, ondeos direitos sejam respeitados, pode não ser mera utopia de quem apenassonha.

Há muita luta quando se tem um sonho dejustiça e todos nós deveríamos nos empenhar nesta tarefa nobre e da maiorresponsabilidade. Porém, não se pode esperar tudo do Estado. Bem ou mal, ele faza sua parte, administra, faz cumprir as leis, trata dos assuntos que lhe sãocompetentes. Há uma organização social e política à qual estamos integrados.Todos são iguais perante a lei e o indivíduo pode ser punido sempre que estaordem é transgredida.

Nestes tempos atribulados, em que se lutacontra tantos males, o homem voltou a sonhar com uma vida feita de maissimplicidade e mais pureza. Talvez o coração humano já tenha se cansado um poucoda abundância de tantos bens de consumo à sua disposição, voltando-se parainteresses mais humanos, de ideais que se comprometam com a qualidade de vida,com a preservação do ambiente em que se vive. O material começa a dar lugar àespiritualidade e a um forte sentimento de amor à natureza.

Possa o espírito humano jamais perder acuriosidade, o ânimo e a coragem. Por mais sombrios os tempos se apresentem, aesperança deverá ser a arma com que lutaremos nesta guerra. Ninguém se alistounela. Não há vontade alguma de conhecer as trincheiras destas batalhasinfernais. No entanto, hoje, todo homem é um soldado de si mesmo. É precisosalvaguardar a vida, a honra, a paz, a fé.

Há guerras santas e limpas, comoas que se travam em favorde uma sociedade onde reine a justiça e a igualdade dedireitos. Trata-se de um revestimento que blinda a criatura humana, a ponto deela resistir ao mais terrível dos ataques. Que nos seja colocada a couraça dajustiça, o capacete da salvação, o cinturão da verdade, o escudo da fé e que setome da espada do Espírito para se lutar como lutaram os santos deDeus.

Quem sabe, haverá um anúncio feliz sob asbrumas escuras do medo e da inquietação. Existe, no silêncio das germinações, aalegria da esperança. É por ela que devemos lutar.

 

 

Infância

 

 

Infancia

Marisa Bueloni

Minha mangueira e um viveiro de pombas

A horta verde, verde a minha idade

A minha mãe - ó tempo, como tombas

No coração o tombo da saudade

 

E de São Paulo chegava a madrinha

No trem de ferro apitando a hora

Toda a saudade que de mim provinha

Era a saudade que abraça e devora

 

A escola era um lugar tão amado

Os livros eram um sonho dourado

E a fé na vida crença verdadeira

 

O amor que vi quando eu era criança

Encheu-me assim desta vasta esperança

Com que vivi por minha vida inteira

 

 

 

Espera

 

 

Espera

 

Marisa Bueloni

Espero

- minha sina é esperar

 

Espero

a flor se abrir

o sol se pôr

a lua chegar

 

Espero

sou a mulher

que espera no cais

 

Espero

até que

Deus venha e me diga

- não esperes mais

 

 

Integridade

 

 

Integridade

Marisa Bueloni

Margarida passou por aqui

agorinha mesmo.

O riso faminto na boca sem dentes,

o olhar brilhando de esperança,

miséria bem distribuída.

 

- Tem nada pra mim hoje, dona?

- Tenho sim, Margarida.

 

E uma  blusa de lã das boas agasalha

o gesto de quem nasceu

para dizer obrigado.

 

- Vamo, fio, que a mãe tá cum pressa.

 

A fila de filhos

escolta Margarida rua abaixo.

Margarida é o miolo: os filhos as pétalas.

Uma flor desce a rua.

Despetalada e íntegra.

 

 

 

A religião do amor

 

 

AReligiaoDoAmor

 

Marisa Bueloni

Perguntaram-me se não haveria luxo demais em certas igrejas, com críticas à “riqueza do Vaticano”. Agora, o alvo é o tal Templo de Salomão, erguido pela Igreja Universal, em São Paulo. De fato, trata-se de uma obra colossal, de rica arquitetura, réplica do que teria sido o templo sagrado.

Uma religião nos reúne numa mesma fé. Ricos e pobres, médios e remediados, todos conhecem o bem e o mal dentro de suas consciências. Quem tem muito sabe que deve repartir. E as religiões podem cumprir um papel social importante, quando pregam o amor, a caridade, a fraternidade, combatendo também as injustiças.

As igrejas não precisam ser pobres de uma vez, no sentido material. Não é preciso renunciar à pompa e aos belos rituais, por exemplo. Deus merece a beleza, o cerimonial cheio de luz e de brilho do Espírito Santo.

Mas no seu coração, na sua essência, uma Igreja pode ser também santa e bela, pequena e humilde. A Igreja que salva almas, que prega o Reino, lembrando que não somos  deste mundo e que nossa pátria é a celeste, é uma instituição de promessas espirituais.

Contudo, ela não seria Igreja se fechasse os olhos às injustiças a sua volta. Se ela pode fazer algo para a promoção do ser humano, "para que todos tenham vida e vida em abundância", que seja feito, dentro de valores morais edificantes, que resgatam a dignidade humana.

Hoje, as igrejas se multiplicam e mesmo na tradição católica há dissidências que são vistas com reservas, como a Teologia da Libertação. Parece haver alguns equívocos ali. Politizaram demais a Igreja?

Vejo o trabalho dos vicentinos. É maravilhoso! Como ajudam os pobres, organizam cestas, bingos, socorrem os necessitados. Tenho uma irmã vicentina e vejo o quanto ela trabalha. São Vicente de Paulo é exemplo de amor, de caridade e não fez política alguma, não fundou nenhum movimento de seguidores fanáticos.

     São Francisco nos inspira a pobreza no espírito e a humildade. São Camilo é modelo de amor aos enfermos. Inúmeros são os exemplos de pessoas e de santos, a figura da Madre Tereza de Calcutá, que se consumiu pelos pobres, desvalidos e doentes. Todos eles trabalharam pela Igreja, por uma causa feita de amor, sem contestar a doutrina que abraçaram, fazendo valer o "amai-vos uns aos outros". 

     Jesus foi tão simples; Deus não é complicado. Às vezes, parece que algumas confissões religiosas tentam sofisticar e complicar a teologia. (Sei que há agnósticos e ateus entre os leitores e a eles apresento meus respeitos).

Aos que acreditam em Deus, ouso dizer que Ele só deseja uma coisa de nós: o nosso coração. O julgamento divino será na base da medida com que amamos.

Possa cada crença ser depositária do amor. Embora diferentes na sua doutrina, que as religiões sejam a bandeira do lema mais belo e fraternal: “faze o bem sem olhar a quem”.

 

 

Onde você estava?

 

 

OndeVoceEstava

Marisa Bueloni

 

Um leitor me escreveu, com uma pergunta gentil e fatal, que tomei como um elogio: “Marisa, onde você estava?”.

    Ai.

    Onde eu estava, meu anjo? Não pergunte que eu respondo, hein? O tempo todo, eu estava por aqui. Conhece Piracicaba? Sempre fui muito quietinha, sabe? Tipo ”na minha”. Estudei, namorei, conheci o meu lindo, me casei, tive duas filhas – a vida transcorreu, feliz e serena, graças a Deus. Fui tão feliz! A literatura, porém, foi sempre o grande e devorador fogo da minha alma. A poesia me pegou pela veia, ali na adolescência. E fui tomada de uma onda hormonal que era muito mais do que amar os Beatles e os Rolling Stones.

    Adoeci das letras e nunca mais sarei. Depois que se foi picado, baby, vem o febrão. E não passa nunca mais. Dos diabos.

    Drummond sempre foi mais que o retrato de Itabira na parede. Dos clássicos aos modernos, lá estava eu, aos 16 anos, indo às bienais, prestando atenção num Olney Cruse que perguntava: “Por que sou avulso?”. Aos 17 anos, eu já tinha lido todo “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo.

    Acho que era isso. Depois de adulta e casada, mãe de duas filhas, com uma família bem constituída, jamais me abandonou este sentimento de ser apenas uma andarilha avulsa pelo mundo, uma alma errante. Sempre estive por aqui, mas o espírito nunca parou em lugar nenhum, se é que me entende.

    Eu estava e estou no remanso das coisas. Sabe quando a gente faz a vida dar uma parada? Ou é ela que nos obriga a parar? Chego e digo: para, vida, que preciso descansar. E ela ouve? Ouve nada. Mas faço de conta que sim e vou em frente. Que jeito?

    Estive sempre por aqui, mexendo com esse negócio de escrever. Enviuvei recentemente, toco a vida. Sigo em frente. O peito varado de lembranças. Meu Anjo chegou. Já o apresentei a você? Ele vem com doçuras inesperadas ao longo do dia. Às vezes, esqueço de agradecer e, ao se despedir, ele diz baixinho: “De nada, tá?”. Fico roxa de vergonha.

    Gosto dos desafios. E de sonhar. Ah, como eu sonho, cara! Tento me entender com as coisas e com os vocábulos. É uma lei pessoal. Eis a razão de tudo. Frequentemente, a vida é tão difícil! Pergunta a minha ajudante da faxina semanal: “E se fosse fácil teria graça?”. Não teria.

    Agora, estou aqui. No meu sagrado cantinho onde soletro o silêncio, a solidão e a paz. Sempre estive por aqui, no lugar onde o peixe para, onde os sonhos brotam nas profundezas inequívocas da alma.

    De maneiras que estou também na luta, como todo bom brasileiro, lutando pelo pão de cada dia. Somos uma gente assim, teimosa, corajosa. Que mania essa, não? De esperar o sol nascer, de acreditar na janela do amanhã e começar tudo de novo, a cada dia. É a dose mais forte e lenta – já cantou o poeta.

    Eu estou aqui, no meu Campestre amado. Não vou contar que estava fumando meu pito no meio da mata, mofio, porque não é verdade. Não sei pitar, não fumo. Larguei faz 11 anos. Ih, ih, ih. Você disse que adora essa risadinha. Tá certo. Tem gente que prefere o ah, ah, ah. E outros, arrasam nos rsrsrsr... Mas o ih, ih, ih é mais sem-vergonha, fala sério. Eu sei. E não?

    Se existe um risinho de galhofa no meio da crônica, é preciso juízo. Fácil descambar para a vulgaridade. Vulgar eu não sou. Nem decote uso.

    De maneiras que sempre estive aqui, à cata do sonho. Monto guarda. Vigio sem cessar. Ah, meu Deus! Quero morrer sonhando, meu leitor querido. Quero ter a sorte de ver a beleza, a terceira margem, a sétima estrela, o segundo sol. Um raio de luar, numa saudade que punge e mata.

    Estou aqui. Piracicaba é berço e morada. Viajo pouco, mas leio muito. Estou viva por dentro e por fora. Interesso-me pelas coisas e pelas pessoas, conheço umas lindas. Tenho amor à vida e a tudo o que me cerca. Sempre por aqui. Jornal de Piracicaba, artigos, crônicas, poemas. Ganhei alguns concursos. Essas coisas. Publiquei uns livrinhos de poesia. Parece que vai pintar mais um. De crônicas.

    Agora, os sites na internet. E o texto assume uma dimensão quase escatológica. No sentido de apocalíptica. Não me iludo. Sei que a palavra virtual também tem peso e repercute. A prova disto é você me perguntando onde eu estava. Obrigada por perguntar. Caramba!

    Achou que eu estava escondida demais debaixo do céu piracicabano, colhendo entardeceres? Dando frutas para os pássaros? Cuidando da minha coluna, fazendo acupuntura e Pilates? Varrendo a varanda? Também.

    Quando quiser saber onde estou, pode procurar no sonho mais próximo. Estou lá. É meu lugar preferido.

    Beijo.

    Ma

 

 

Meu Coração

 

 

MeuCoracao 

Marisa Bueloni

 

‘Oi, tum, tum, bate coração

Oi, tum, coração pode bater

Oi, tum, tum, tum, tum, bate, coração

Que eu morro de amor com muito prazer.’

(Cecéu)

 

Vou morrer do coração. Tenho quase certeza.  Olho para as minhas amadas sandálias de couro, para os meus pés finos e os antevejo unidos, no rigor mortis dos defuntos. Ah, Deus, encasquetei que vou morrer do coração.

Acho clinicamente romântico. Morreu do quê? Do coração. Morte mais digna não há. Nem mais bela. Contudo, não se trata apenas de morrer do desaviso existencial e das coisas que profanam a sagrada beleza do ato respiratório. Não me refiro à morte das ideias e dos sonhos. É morrer de um coração doente, cansado, fraco. Com soro na veia. É morte física. Aquela.

Morrer do coração só morre quem viveu do coração. Morrer porque se desenvolveu uma cardiopatia ao longo da vida – descoberta pelo cardiologista atento -, parece muito simples. Não. Ele não diagnosticou. A paciente é que notou. ‘Doutor: descobri uma doença coronariana’. ‘Como você sabe?’.’“Oras. Eu sinto!’. ‘Vamos fazer todos os exames...’. ‘Nem é preciso; vou morrer do coração. Deixa quieto’.

Andei lembrando aqueles sinônimos espirituosos. Bater com as dez. Abotoar o paletó. Esticar as canelas. Limpar a área. Ir morar no andar de cima. Comer capim pela raiz. Bater a caçuleta. Ou cassuleta (meu ‘Aurélio’ não registra nenhum dos dois). Empacotar. Virar anjo. Desencarnar. Falar com Jesus. Partir. Bater as botas. Vestir o paletó de madeira.

Começará com a típica dor no peito, a famosa angina pectoris? Aí, ela espalha-se pelo braço esquerdo. Dará tempo de tomar uma aspirina, de ligar para uma das duas filhas? Mandar um torpedo? Ou ligo para o meu médico? A secretária dirá: ‘Poderia estar deixando seu número para ele estar ligando mais tarde?’. Mais tarde, eu estarei estando morta, malditos gerúndios.

Ó, se eu conseguir ligar para o plantão do socorro do meu plano de saúde - onde diabos eu anotei o número? - está muito bom. Vou ter toda a calma do mundo, uma vez que vou morrer mesmo. Quero partir calmamente, nada de afobação, né? De apressada, chega a vida. A gente precisa morrer serenamente, conforme desejou o filósofo Mario Sergio Cortella no final da palestra maravilhosa que ele deu aqui em Pira: ‘Que vocês todos morram em paz!’.

É como no meu poema: ‘Mas se o dia raiar/ e eu não acordar/ seja lá como for/ não foi nada, meu amor’. Ora, não foi nada. Apenas morri. Do coração. Ele parou de bater. Já deu pra ele. Alguns meses depois da partida do meu lindo, tive uma consulta de rotina com o cardiologista. Sabedor da minha viuvez, foi logo dizendo: ‘Muito bem, ele já cumpriu a missão dele aqui neste mundo e você ainda tem de cumprir a sua’.

Homessa! Bateu-me uma súbita sensação de importância e responsabilidade. Qual será minha missão? Seria a impossível? Ai, doutor, não me confunda. Eu só quero morrer do coração bem sossegadinha, deitada na chaise do meu sofá, assistindo à santa missa pela tevê e acabou. Sinto a arritmia pegando. E no susto de algumas falhas entre a sístole e a diástole, também minha alma se inquieta. Calma, baby, vamos lá, até o final. Não me atropele.

Juntos, meu coração e eu, já fizemos das nossas! Quantas lembranças lindas! Temos convivido bem. Toca o barco, belo. Tum tum tum. Vai firme aí, que, segundo o doutor, ainda tenho uma missão a cumprir. Não morro antes de saber qual é. Mas quando a ‘indesejada das gentes’ atracar na minha varanda, quero estar, se possível, bem arrumada. Tipo em ordem, sabe? Uma roupinha boa, os cabelos limpos, base translúcida na pele, um batonzinho básico. E a alma limpíssima. Graça sobre graça.

Quando você dá aquele salto colossal, cuore, me assusta, cara! Sabe, você dá umas falhas perigosas e eu sofro aqui, nego. Aí, em seguida, você compensa as paradinhas numa louca disparada de batidas, pinotes, cavalos-de-pau, e sai desembestando feito burro brabo. Assim não dá. Numa destas, empacoto mesmo.

Vou morrer de amores. Vou morrer de poesia. Da brisa sussurrando nas folhagens, das manhãs de sol e vento aqui no meu Campestre amado. Das músicas lindas que vão me matando um pouco a cada dia. Vou morrer da orquestra de Ray Conniff e do CD em MP3 com 205 músicas que a filha mais nova gravou para mim. Love is blue. Moonlight Serenade. Midnight cowboy. Besame mucho. Vou morrer da jactância de Aquarela do Brasil. Vou morrer cordialmente, de uma forma cordata. De uma sinfonia de mim mesma e das pessoas que amei apaixonadamente. Vou morrer de amor.

Vou morrer de tanta coisa, meu Deus! Das minhas blusas de oncinha. Da minha colônia de jabuticaba. Do relógio de pulso do meu lindo que mandei ajustar para mim (e que foi presente meu para ele, num Dia dos Pais). Vou morrer de Bali e da Nova Caledônia. Vou morrer dos dragões de Comores, da fauna de Galápagos e da Amazônia. Vou morrer da Itália, terra dos meus avós paternos. Vou morrer de uma febre talassêmica. Dos biomas da Terra e seus humores; dos ursos polares, do condor e da galinha d´Angola. Vou morrer dos recôncavos, dos arquipélagos, dos lagos e das terras continentais. Vou morrer de Piracicaba. Vou morrer da cidade de Sevilha, poeta João Cabral. Vou morrer do mundo. Vou morrer de saudade!...

Morrer do coração. Muito poético. Os bons poetas, antigamente, morriam de tuberculose. Muito literário? Mas devagar, claro. Haverá tempo de fazer um montão de coisa. E se tiver de ser, tempo de segurar as mãos das duas filhas, uma de cada lado da cama. Beijá-las, muito, muito, dizer que as amo loucamente.  Ter tempo de dizer que parto feliz, que vou ao encontro do meu lindo e fim de papo. Ó coração!... Para não.

 

 

 

 

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Marisa Bueloni

PROCURA-SE

Moça séria, prendada, trabalhadora e de boa situação financeira procura rapaz solteiro, romântico e honesto para futuro relacionamento. Compromisso sério. Está difícil, mas não custa tentar.

 

VENDEM-SE

Uma carroça e um burro. Estão ambos em bom estado, mas um pouco cansados de ouvirem dizer: “Lá vai o burro, puxando a carroça pela estradinha de terra. Vida besta, meu Deus”. Eles querem mudar de paisagem e de poema.

 

TROCAM-SE

Duas bicicletas por um computador. O dono das “magrelas” já pedalou muito e está querendo aprender informática. Também já não é mais exatamente um jovem. É um bom negócio? Falar com Júnior. Embora quarentão, ele é o Júnior. Já virou “senhor Júnior”.

 

FINO TRATO

Vende-se um terno preto. É italiano, de grife. Está um pouco usado, porque o seu dono é um importante homem de negócios, que sofreu um duro golpe financeiro e precisa reorganizar a sua vida. Está vendendo tudo: casa, apartamento na praia, fazenda, carros e o terno. Tamanho médio. (Quem quiser comprar os outros itens, entrar no site www.fimdelinha.com).

 

DOA-SE

Uma porta sem uso. Está encostada no quintal do proprietário há muitos anos, quando comprou uma porta a mais na reforma da casa. Resolveu fazer uma limpeza geral, pois deu para odiar coisas sobrando aqui e ali. A porta é boa, tem a metragem padrão do vão e é de mogno. Falta fechadura, que fica ao gosto do freguês. Quem passar pela porta terá uma surpresa. Só instalando para saber.

 

TÊNIS DE MARCA

Vende-se um par de tênis. Está quase novo. É muito bonito e o seu dono não tem coragem de usar, com medo de sujar a sola. O calçado tem todos os recursos tecnológicos possíveis, só falta fazer a pessoa voar. Na propaganda da tevê, ela voa. Na vida real, não. As pessoas só têm de andar, caminhar, dar um passo após o outro. O tênis é um mero detalhe. Número 43.

 

VENDE-SE

Uma casa. Nova. É boa bastante para se morar nela e achar que a felicidade existe. Há uma garagem coberta para dois carros. A surpresa é quando se abre a porta da entrada que dá para um pátio encantador, chão de pedras, uma pequena varanda e um gracioso jardim. Há uma fonte saindo da boca de um leão que não é feroz. Tudo prático. É só bater uma água no piso e pronto. Por dentro, um sonho, só vendo. Não tem luxo, tem o que é necessário. Não há cachorros latindo nas redondezas e os vizinhos é gente educada, que dá bom-dia quando você sai para colocar o lixo lá fora. Quem comprar, ganhou na loteria.

 

PASSO PRA FRENTE

Meu jipe. Ano 1970. Raridade. Pega na primeira. Mas pra mim chega! (Essa é verídica, li num jornal... ah, ah, ah!).

 

ANEL DE ESTIMAÇÃO

Vende-se um anel. É de estimação, mas a proprietária está passando por um momento difícil e precisa vendê-lo com urgência. A pedra é a ametista, de um roxo delicado. Quem comprar precisa ter dedos finos, porque a sua dona é pianista, tem dedos afilados e longos e comprou o anel para os concertos de piano. Já vendeu o piano e todas as partituras. Só volta a tocar quando puder comprar outro anel. E outro piano.

 

MÓVEIS USADOS

Pede-se a quem tenha móveis usados para doar, ligue-me que irei buscar. Se você tem uma cômoda velha, cheia de gavetas com puxador de metal e não sabe o que fazer com ela, eu sei. Mando envernizar, dou um polimento nos puxadores, ponho um monte de porta-retratos em cima, e fica um sonho no cantinho da sala.

 

DESAPARECIDO

Desapareceu de sua residência o sr. Zé Lindo (gêmeo do Zé Feio), trajando calça jeans, camiseta verde e tênis sem cadarço. Zé adora umas. Foi visto num bar da cidade levantando o copinho e brindando a si mesmo. O bar gritava “Vai, Zé!” – e ele repetia: “Lindo, leve e zolto...”. A família desesperada e Zé Lindo partindo pro abraço.

 

VESTIDO DE NOIVA

Vende-se um vestido de noiva, novo, sem uso. A noiva pensou bem, passou noites em claro, e chegou à conclusão de que não devia se casar. Avisou o noivo uma semana antes e devolveu todos os presentes. E para não ficar nenhuma recordação, decidiu vender o vestido. Manequim 42. (Consta que o noivo entrou em depressão profunda).

 

REFORMA-SE

Sofá velho. Se você está cansado do seu sofá, não compre um novo, que está custando os olhos da cara. Reforme. Basta escolher um tecido do seu gosto, resistente, fazer umas almofadas combinando que fica o fino, ó. Sou um tapeceiro de primeira. Ponho espuma nova e tudo. Ótimo preço. É só ligar, que eu vou pegar e entrego no prazo combinado. Eu existo.

 

MEU PEQUENO PARAÍSO

Vende-se um sítio de 5 alqueires. Tem casa-sede, algumas plantações, pomar e horta para quem gosta de cultivar verduras, frutas e legumes. Os caseiros são do tipo gente boa e moram há anos na propriedade, cujo patrão os trata com respeito e dignidade. O sitio é quase todo plano, pode-se andar a cavalo, apreciar a paisagem e as campinas. Há uma nascente e um lago cercado de flores. É como uma pintura campestre. Não tem canavial por perto, mas não está livre das queimadas. Dizem que até 2014 (ou será 17?), com a mecanização da colheita da cana, o sítio será um pequeno paraíso na terra.

 

AULAS

Leciona-se inglês. A professora, porém, está desiludida e desanimada. Seu último aluno só conseguiu aprender uma frase: I love you.

 

PERDEU-SE

Uma carteira de couro marrom. Não tem dinheiro dentro, só documentos. Quem achou me devolva, eu estimo essa carteira, foi presente de um amigo. Sou aposentado do INSS, tiro o dinheirinho no caixa eletrônico do banco e ele se evapora em alguns dias. O que eu recebo por mês não dá para comprar uma carteira destas. Não tenho como gratificar. Muito obrigado.

 

UM CARRO

Vende-se um carro. Quase novo. Quase. Ele ainda está impregnado da alma do seu proprietário, mas isso é fácil de ser removido. Não, na verdade, não é. O carro adquire o jeito do dono, todas as suas manias, o seu perfume, o cheiro de cigarro, de casaco e bota de couro, das coisas que ele usa todos os dias, chova ou faça sol. O carro é a extensão da casa e o dono tinha o hábito de morar nele. Mas o preço é bom, vale a pena. Se fosse você, eu ia dar uma volta.


PINTAM-SE CASAS

Quando eu levei esse anúncio, o pessoal do jornal discutiu comigo dizendo que era “PINTA-SE CASAS”. Eu, que mal terminei o Colegial, posso dizer que está errado. Se eu colocar na Voz Passiva, fica “casas são pintadas”. O moço do balcão perguntou: “Voz o quê?...”. Continuei: então o correto é ”PINTAM-SE CASAS”. Fui convidado para ser revisor no jornal e mudei de profissão. Mas se precisar de um pintor, pode me ligar. Tenho uma penca de amigos precisando de trabalho. A gente sobe na vida, mas continua ajudando o próximo. Salve a gramática!

 

RECADO FINAL

Prezado senhor ladrão: eu sou a dona Mariinha, aquela que faz empadinha. O senhor já assaltou a minha casa 4 vezes. Desconfio do bonitão barbudo da rua de baixo. Já me levou a televisão, o microondas, o liquidificador, meu rádio, o telefone sem fio e até o meu travesseiro. Traz tudo de volta e vem morar aqui em casa. Quer casar comigo?

 

 

 

Cesta Básica

 

 

CestaBasica

 

Marisa Bueloni

em Deus. Um cartão de Boas Festas. Três poemas de Drummond. Brincos de pingente. Água mineral sem gás. Uma noite de sono profundo. Pôr do sol. Uma praia deserta. A missa de domingo. Um buquê de flores do campo. Guarânias de Violeta Parra e Athaualpa Yupanqui. Chuva. Poesia. Blusinhas de liganete. Pão diet. A Bíblia. Frutas, todas as frutas. Desodorante sem perfume. Queijo branco. O filme “Lendas da Paixão”, com Brad Pitt. Palavras cruzadas. Serenata. Sandálias de couro marrom. Óculos de sol. Semente de abóbora torrada. Bolo de chocolate. Computador. Tarde de vento. Saber dizer sim. Legumes e verduras. Damasco. Amêndoas. Uva passa. Uma saia indiana pelos tornozelos. O tango “Por una cabeza”. Pinhão. Uma assinatura da “Veja”, uma da “Folha” e uma do “Estadão”. Uma assinatura do “Jornal de Piracicaba”. Caetano Veloso. Chico Buarque. Um convite para uma festa. Torradas. Bota de couro de cano alto e de salto baixo. Milho verde cozido. Suco de acerola. Tocar violão. O livro “A descoberta do mundo”, de Clarice Lispector. Torpedo carinhoso no celular. Três biquínis. Duas cangas. Um edredom fofinho. Geléia de amora. Sol. A vida no campo. Os amigos. Músicas da dupla Lennon e McCartney. Os textos da Lia Luft. Ferro elétrico. Bacalhoada. Escova de dentes. Mel. Rezar. O texto “Sobre o óbvio”, de Darcy Ribeiro. O Brasil. Um filme na tevê às 2 da madrugada. Silêncio. Calça jeans. Creme hidratante para o dia e o nutritivo para a noite. Roberto Carlos. Bolsa de palha. Marieta Severo. Música clássica. Ter paciência. Blusa de mangas três quartos. Solidariedade. Sabonete de erva-doce. Vinho tinto. Rede na varanda. Saber dizer não. Peixe. Clareador para cabelos. Balanço de corda amarrado na árvore. Filmes com Al Pacino. Um par de sapatos pretos. Filosofia. As estrelas. O litoral norte de São Paulo. Gente educada. Uma carta guardada. Marco Nanini. Batom. Tesoura. Conversar. Lua cheia. O livro “Maus”, de Artie Spiegelman (para ninguém esquecer). Arrumar a casa. Rocambole com recheio de goiabada. Carinho. Beijo de filho. Linha e agulha. Fogo na alma. Paz de espírito. Classe e simplicidade. Sorte. Uma pessoa interessante. Ovo frito. Água e luz. Lápis, borracha, régua e blocos para desenhar. Alegria de viver. A imagem de Nossa Senhora das Graças. Reich. Secador de cabelo. Roupa no varal. Bolo de fubá. Filtro solar. Um sentido para a vida. As crônicas do Rubem Alves. Um banho quente. Romantismo. Realização pessoal. Uma foto bonita no porta-retrato. Um beijo. O amor. Um relógio. Lápis para os olhos. Corpo. Alma. Autoconfiança. Saudade dos meus pais. Uma árvore frondosa. O padre Edvaldo. Um clip de Michael Jackson.  O Cruzeiro do Sul.  Minhas duas filhas. Minha família. O amor dos meus irmãos. Calmaria. Um galo cantando de madrugada. Bijuteria de feirinha hippie. Esponja vegetal para banho. Um pressentimento. O rio Piracicaba. Pensar. Um pinheiro alto. Coragem. Presilhas de cabelos. Xampu sem sal. Café. Lixa de unha. Um grill. Pinça de sobrancelha. Pente e escova. Um carro. Toalhas de banho felpudas. Humildade. Um canto para morar. Rede na varanda. A orquestra de André Rieu. O mar. Céu azul. Uma estradinha florida. A Igreja do Sagrado Coração de Jesus. As músicas do Ray Conniff. Bolacha água e sal. Roupa que não precisa passar. Saber inglês. Saúde. Um sorriso. Chão de lajota. Camiseta de malha. Um abraço. Acupuntura. Água benta. Cinco óculos para perto. Fio dental. Internet. Rosas vermelhas. Penumbra. A música do filme “Em algum lugar do passado”. Um sofá aconchegante. Um par de tênis. O outono. Generosidade. Inseticida. Força de vontade. Saudade doída dentro do peito. Ordem e coisas no lugar. Uma conversa a dois. A casa dos pais. A nossa casa. Meu cardiologista, Dr. Nelson.  Blusinhas do tipo segunda pele. Banheiro cheirando a pinho. Uma caixa de Advil. Os amigos da internet. Televisão. Alto astral. Colares. Primaveras roxas. Coaxar de rãs. O luar. Lexotan. Inteligência e sensibilidade. Arte primitiva. Medalha de São Bento. Objetos de barro. Cristaleira antiga. Estudar o universo. Meu médico de coluna, dr. Luiz Fernando. Um chapéu de palha. Retratos na parede. Entender de futebol. O time do coração. Tapete rústico. Ter um sonho. Panos de prato. Chá de erva-cidreira. Móveis de vime. Detergente. Cheiro-verde. Manjericão. Anéis e pulseiras. As pessoas de boa vontade. Livros. Roupa de cama perfumada. Tesón y voluntad. Elis Regina. Remédio para pressão. Chinelo. O domingo de Páscoa. O domingo. Sal e açúcar. Um poema de amor. O dia de Natal. Um segredo. Varrer o chão. Um blazer preto. Uma bolsa de couro. Despojamento. Uma revelação inesperada. Ouvir “eu te amo”. Dizer “eu te amo”. Água potável. Uma agenda. Arroz e feijão. Escondidinho de carne seca. Travesseiros da Nasa. Manta de lã. Não ter medo de sapo. Desenho de nuvem no céu. O doce preferido. Castanha-do-Pará. Aveia. Sorvete. Uma base clarinha para o rosto. Blush e rímel. Passarinhos. Creme dental. Uma luminária sobre o criado-mudo. Chorar. Rir. Fazer um sacrifício. As mensagens e aparições de Nossa Senhora. Meu Anjo. Pizza de marguerita. Responder os e-mails. Um cachecol de oncinha. Saber de cor a letra do Hino Nacional. Colônia de jabuticaba. Um crucifixo bonito. Papel de bombom amassado dentro do livro. Caixinha de música. Meias de lã. Bom-humor. A solidão do boi no campo. A solidão. Vida. Paz...

 

 

 

 

Realidade e fantasia

 

Realidade e fantasia

Marisa Bueloni

    A sociedade atual, autofágica e ávida de novidades, absorve tudo o que lhe é oferecido, ainda que tal oferta signifique um golpe mortal na fé e nos corações. O espírito humano parece entorpecido e confuso, debatendo-se entre diferentes correntes do pensamento, sobretudo as que dizem respeito às áreas da religião e das questões espirituais.

     A sede de conhecimento e de aventura também pode  conduzir a caminhos nem sempre elucidativos. É muito fino e tênue o fio que separa o falso do verdadeiro. Hoje, as mensagens da mídia são tão bem construídas e elaboradas, que passam uma idéia de autenticidade e firmeza. Se nos deixamos levar pela excessiva fantasia com que se tenta revestir a realidade, para torná-la mais suportável, temos de arcar com as conseqüências destas práticas.

     Embora estejamos atolados na parafernália tecnológica deste novo tempo, um mundo à parte, feito de fantasia e mágica, serve de complemento ao sonho. A máquina é fria e o coração do homem, supõe-se, é quente. O homem precisa sonhar e parece não poder dispensar um paralelo nas chamadas “asas da imaginação”, para voar ao limite do razoável.

     O que é razoável? A realidade tem sido bastante dura, reconhecemos. O cotidiano exige cada vez mais de nós, sobretudo pelo medo e insegurança com que vivemos. A violência nada tem de simbólica: ela é real e suas histórias são concretas. Casos de sequestros, assaltos e crimes se repetem à exaustão. Pessoas são mortas estupidamente; traficantes medem forças com a polícia, numa guerra que espalha pânico pelos bairros periféricos das grandes cidades. Vemos as cenas na tevê e elas parecem não nos atingir.

     Em oposição à realidade, a fantasia vem oferecer um pouco de sonho, tentando serenar o coração humano. Se no mundo real o processo de sobrevivência é ligado ao trabalho, aos esforços diários, no mundo da ficção tudo é diluído na facilidade, na sorte e na diversão. Mas, a vida de verdade não pode ocultar as tristezas, dores, perdas, sofrimento. Nas fábulas do faz-de-conta, os heróis têm superpoderes, as dificuldades são vencidas num toque de mágica e os pares apaixonados vivem felizes para sempre. Estes elementos servem de contraponto às incertezas da nossa vida cotidiana, de modo a superar-lhe a dúvida principal e essencial: a felicidade existe?

     O espírito humano busca esta felicidade, o homem deseja ser feliz e gozar as delícias de uma vida terrena sem problemas, dores ou fracassos. No entanto, a realidade é feita justamente da mistura dos dois lados muito bem conhecidos de todos nós: existe a tristeza e também a alegria. A sabedoria de como lidar com os extremos da vida real faz parte da maturidade emocional e do caráter bem resolvido.

      Até onde somos incentivados a colocar nossa crença na representação da fantasia, deixando de valorizar a realidade de nossas vidas, com todos os problemas, lutas e sacrifícios? Guardei isso no meu coração: “A vida ser lei e não a lei ser vida”. E la nave va...

 

 

Vida Encantada

 

Vida Encantada

Marisa Bueloni

Depois de sair pelas ruas perguntando se a vida é dura, concluo que este contato ao vivo com seres humanos é algo muito benfazejo e encantador. Em geral, as pessoas são educadas, portam-se muito bem numa abordagem e respondem com boa vontade.

     Falamos tão pouco com o próximo. Cultivamos uma fria distância, para não haver nenhum tipo de comprometimento. Quanto menos envolvimento, melhor. Como se diz: cada um na sua.

     Cada um com seu “aipede”, seu celular inteligente, onde se pode fazer de tudo, tudo. Uma parte da população está de cabeça baixa, digitando o tempo todo, passando o dedo e fazendo a imagem andar. De crianças e jovens a senhores de cabelos brancos, fascinados com esta tecnologia.

     A vida tem um brilho próprio, embora não notemos. Encantamo-nos em falar e nos comunicar por meio de uma máquina, quando se poderia conversar ao vivo, ouvindo a voz e olhando nos olhos de alguém.

     Às vezes, penso que o mundo está passando por uma fase “sem noção”, sobretudo pela exposição excessiva das chamadas “celebridades”. Suas vidas, suas casas, seus amores, seus escândalos. Há um cantorzinho canadense que não se cansa de aprontar e dirigir embriagado. Parece sentir um enorme orgulho disso, uma vez que a notícia policial o expõe na mídia. Mais do que com suas canções.

Há quem reclame por coisas muito estranhas. Uma amiga me escreveu que uma mulher lamentou a morte da sua cobra no facebook. A vida dela estava acabada, pois morrera a cobra, sua grande amiga. Sem o réptil de estimação, a vida perdera o encanto. Minha mãe perguntaria assim: não é um pouco demais?

     Contudo, em meio a sandices e bizarrices, busco o encantamento que a vida pode nos trazer, apesar deste achatamento global, desta mediocridade que parece imperar em toda parte, com coisas boçais passando por genialidades.

     De uns anos para cá, houve uma espécie de reviravolta e, se o mundo anda de cabeça para baixo, temos de nos virar também para acompanhar a loucura geral? “Em terra de sapos, de cócoras com eles”, diz um ditado. Não estou lá muito de acordo com isso, ainda acredito nas cabeças pensantes, em gente com espírito crítico, com vontade de transformar e melhorar a nossa sociedade.

     Ah, vida encantada! Por onde andam as pedrinhas de brilhantes, se essa rua fosse minha, para ver meu bem passar? Estamos a um passo de uma nova novidade. O top de linha será logo superado pelo objeto de desejo do momento, vem aí o “aifoneseis”. Virá o sete, o oito, o nove e o dez. Na latinha dos pastéis, tire um e deixe dez!

     Ouço ainda as vozes sonoras dos meus primos, e eu junto, claro, pulando corda e cantando: “Batalhão, união / Quem não entrar é um bobão/ Abacaxi, xi, xi/ Quem não sair é um saci”.

     Viu a moça do Grêmio, que chamou o goleiro “Aranha” de macaco? Está faltando respeito com o próximo. Quando é que haverá educação e respeito pelas pessoas, este gesto que torna a vida tão bela e encantada?

 

 

Saudade

Marisa Bueloni

Faz tempo essa saudade

que dura

dura

dura

dura

 

Não sei mais

se é velha

ou se é prematura

 

Força

Marisa Bueloni

 

Ser forte,

para suportar um pouco de tudo.

E também o que é indício de dor.

Suportar a lavagem cerebral

dentro da etiqueta.

Mais: suportar que falem mal

e compreendamos.

Saber que pertencemos à finitude

e que jardins florescerão em nossos ossos

até o próximo século.

Ser forte para gerar filhos

e amá-los.

A seu tempo, ser forte

sem desperdiçar a palavra e a voz.

Reprimir um gesto desnecessário

quando necessário.

Estampar na face um desaviso,

uma preocupação leve.

Nada de mais, vês.

Simples com um lápis,

já se disse, e a poesia

repete o inevitável.

 

 

Trova

 Marisa Bueloni

Ser antiga, arcádica

E tentar um feito:

Declarar-te meu amor

Num decassílabo perfeito.

 

A Dois

 

Marisa Bueloni

 

Temos uma

diferença:

 

És todo

ateu

sou toda

crença

 

E quando

digo uva

entendes

chuva

 

Nossa

convivência

é fé

e paciência

 

Discurso feminino

 

 

Marisa Bueloni

 

O amor é  tão belo

que eu tenho medo

de ficar viciada

de virar fanática

de acabar maníaca

 

e de ter, enfim,

quando olhas para mim,

uma parada cardíaca.

 

Mas, se vier filho,

ah! vou querer pasto e vaca

e uma roça

de mandioca e milho...

 

...se nada vier

- e nada vem só porque se quer –

quero apenas ser

em cada amanhecer

a tua mulher.

 

Solidez

 

Marisa Bueloni

É mais ou menos como o canto do galo

Ou a fruta no pé

Semelhante ao vermelho

Tem cheiro de chocolate

É feito da dureza da pedra

Só de olhar, parece veludo

Sem tocar, sabe-se macio

Possui a natureza do hipopótamo

E a leveza da pluma

Não chora, não ri, nem se espanta

Existe e tem fama de coisa boa

 

Cotidiano

 

Marisa Bueloni

 
Gosto do poema

que nasce curto

no comprido das horas

 

E na imensidão do nada

cato um cisco

nesta jaula provisória

onde o tempo não passa

e a vida é estática

feito amor inconfesso

 

Nada é tão sombrio

e profundo

como a agonia

de quem espera

 

A vida é dura?

 

A vida e dura 

Marisa Bueloni

     Um dia, observando um senhor maltrapilho, descalço, puxando uma tosca carrocinha de madeira, lotada de cacarecos, jornais e caixas de papelão, fiquei pensando em como teria sido a vida daquele homem. Tivera, alguma vez, um trabalho digno? Sem aposentadoria, certamente, precisando da pobre atividade para sobreviver. Para ele, a vida era dura.

     A fila de carros andou e o homem não saía da minha mente. Se a vida é mesmo dura, eu queria saber de verdade. E não somente para aquele idoso no meio da rua. Queria perguntar aos bem vestidos, os que vão sobre suas motos, nos seus carros, em seus diferentes trajetos e postos.

     E saí perguntando se a vida é dura. Parada no farol, abordei o motoqueiro ao lado, o menino dos malabares; o garoto que arruma as frutas na banca; o casal vindo de braços dados; a moça da recepção, a frentista do posto e por aí vai.

     Senhores! Posso dizer que minha “pesquisa” gerou uma inquietação em mim porque houve um equilíbrio. Metade dos entrevistados acha a vida dura, e outra metade acha que não, mas depende de certos fatores.

     Há quem julgue a vida muito dura, de esforço e luta, muita luta. Para alguns, a vida não é dura não. Existem os percalços, mas é coisa normal. Uns a acham apenas “um pouco dura”. Mas dei com gente até meio revoltada: “A vida é dura, sim, eu sou formado em administração e trabalho de montador”, algo assim.

     Tem emprego sobrando? Não. Lembro de um engenheiro que tocava um carrinho de cachorro-quente. Não conseguiu trabalhar na área em que se diplomou. Sim, para ganhar o abençoado pão de cada dia, as pessoas fazem qualquer coisa. E todo trabalho é digno, nada deve ser encarado como coisa menor ou degradante. Trabalho é trabalho e ponto final.

     Um moço me respondeu que “a vida é dura, mas a gente luta contra ela”. Isso, meu jovem, tem mais é que lutar. Só não sei se o lado está certo. Seria melhor lutar “a favor” dela? Já para uma mulher muito disposta, “a vida não é dura, a vida é bela!”, assim ela exclamou, parecendo feliz.

     Três entrevistados me responderam que “a vida é dura para quem é mole”... Contudo, não é raro acontecer de a pessoa não ser mole, dar duro, e continuar sofrendo pressões de toda ordem, perdas, fracassos, derrotas...

     Emparelhei com um motoqueiro no farol. Ele respondeu que “a vida é dura para quem não tem fé”. Quase desci do carro para dar um abraço nele. Sim, “andar com fé eu vou/ que a fé não costuma faiá”, diz a música de Gilberto Gil.

     Ao fim de algumas abordagens, fiz uma tabulação dos dados e vi que houve um quase empate. A vida é, sim, dura para uns. E nem tanto para outros. Cada um com seu histórico, seu solo pessoal, suas experiências, lutas e esperanças.

     Eu queria tanto ouvir uma resposta original, uma frase de efeito. Enfim, acho que vou eleger como melhor frase da pesquisa a do moço da moto: “A vida é dura para quem não tem fé”.

 

Setembro

 

Setembro

Marisa Bueloni

E agosto terminou, abrindo para setembro seu véu de flores, infinita primavera de um ciclo bendito. Deitada numa rede imaginária, o sonho desaba sobre mim. Lá no alto, coisas acontecem sem que eu saiba. É um entra e sai de anjos que só vendo. Tem portaria e tudo. Carimbo, não. Protocolo, recibo, nota fiscal, essas formalidades burocráticas são coisas aqui da terra besta. Perdão.

     Com o terço nas mãos, espero a beleza chegar. Há uma beleza proibida aos olhos humanos. E é pecado mortal olhar para ela. Está em toda parte onde pouso meu olhar perdido. Alguém escreveu assim: “O amor canta ao nosso redor”. Na verdade, busco exatamente isso, o incêndio fatal, a iluminação do ser. Hábitat do amor.

    Estamos em setembro, é tempo de uma leve brisa aqui onde moro. Pelo amor de Deus, não me obrigue a contar mais do que isso. Jogo um beijo soprado daqui para as coisas criadas na face da Terra e digo o que não se diz. Há frases que ficam perfeitas quando não ditas, não pronunciadas. Não digo o que penso. É perigoso.

     Existe uma exatidão em todas as coisas. É o quadrado perfeito de Deus, o menorá de sete velas, o número sete em sua magnitude, a regra que não tem exceção, a pródiga numeralidade do eterno.

      Aprendi com meus pais a ser simples e a viver com pouco. “Mais que um prato de comida e um canto para morar, o que mais é preciso?”, perguntava minha mãe, cheia de sabedoria. Eu abaixava a cabeça e subia no pé de manga para pensar.

     Quando setembro chega, chega um amor extremado pelas pessoas e por tudo que me cerca. Ah, se nossos amores soubessem quanto os amamos! O tempo passa depressa demais quando se descobre o amor. E então? O que está feito está feito. Prefiro a incerteza dos acasos e a dor de ver o fim de alguns encantos, do que perder a longa espera da beleza. Não desisto, monto guarda, vigio sem cessar. E rezo.

Como tenho rezado neste meu canto, meu lar sagrado. Vejo que tenho paz, que minha casa transborda de paz! Eu sei, eu tenho certeza disso. É a paz construída com a força da fé, da humildade e da oração diária. Ave, Maria, cheia de graça, vem em socorro de todos nós! Somos tão frágeis e pequeninos e este mundo está nos assustando cada vez mais, ó Mãe.

     Desculpe, me perdi no caminho. Não lembro onde estava. Ah, sim, eu esperava pela beleza. Ela me pertence. Setembro aperta meu peito na floração da vida. Setembro canta dentro de mim esta posse da qual me julgo merecedora. “O amor canta ao nosso redor”.

Tomo posse de setembro e das alvíssaras. Abraço meus pertences, abraço aquilo que não posso comprar. Abraço o mar e sua profundeza abissal. Uma praia deserta, uma casinha com varanda e a paz que brota dos coqueirais. Abraço os amigos queridos, os da internet, os muitos que conheço só de foto, os narradores de e-mails inflamados. Os que me enviam relatos místicos. (Há mais coisas entre o céu...). Abraço os bissextos e os encantadoramente diários.

Um abraço, caro leitor!

 

 

Sonhando

 

Sonhando

Marisa Bueloni

Se o Senhor me permitir, pretendo sonhar um pouco mais que o permitido. Andar ao léu e ver se ainda existe uma casinha com roseiras no jardim. Puro sonho. Caminho nas ruas do condomínio onde moro e então me dou conta de que andei léguas sem fim. Ando dentro de mim.

     Se o Senhor me permitir, quero tocar aquela estrela. Aquela imensa que surge nos céus invernais. Já guiou marinheiros perdidos no tempo das velas. Não estou perdida. Mas preciso me encontrar.

     Se o Senhor me permitir, quero mudar o rumo do velho veleiro navegando em meu pobre peito, nas planícies marinhas desta viagem. Minha alma nômade não se cansa de peregrinar. Há conchas insulares à minha espera e meu olhar se perde no horizonte oceânico eternamente distante.

     Se o Senhor me permitir, juro passar mais tempo de boca fechada, praticando a arte de silenciar. Falar é bom quando o assunto é importante. O silêncio possui o peso das conquistas interiores. Elas sabem quanto valemos. Ó paz, ó quietudes, ó calmarias, estou à vossa disposição.

     Se o Senhor me permitir, enviarei aos meus amados um e-mail incendiário, ilustrado por um ursinho saltitante. Escreverei palavras de fé e esperança. Despedir-me-ei com um caloroso abraço. Mesóclise do sonho.

     Se o Senhor me permitir, quero viver um pouco mais no meu lar doce lar, neste recanto abençoado. À noite, sob o aconchego das cobertas, agradeço pela casa, o carro na garagem, as roupas no armário, o alimento na despensa e na geladeira.

     Se o Senhor me permitir, planejo ter vida longa e risonha. A alegria do coração é a longevidade do homem, diz a Palavra. Apesar das minhas lutas e dores, sou muito alegre. Ó Deus, que a tristeza não chegue sem que eu saiba.

     Se o Senhor me permitir, pretendo chorar. Depois rir. Já viu como o riso é benfazejo depois do pranto? A gente ri com a alma. Que eu chore num dia e ria no outro, porque assim é a vida e isso não posso mudar.

     Se o Senhor me permitir, anseio melhorar bem da coluna e, ao som de uma música romântica, receber um convite para uma dança inesquecível. Ó céus, de onde virá o pedido fatal? Tem de ser um clássico de Ray Conniff, por favor.

     Se o Senhor me permitir, desta vez pego carona no primeiro vislumbre da beleza. Sinto muito, eu vou. Num rabo de foguete. Numa subida vertiginosa e alucinante, sem dar tempo de pensar. Uma elevação destas em que o espírito não sabe por que subiu tão alto e por que a Terra brilha lá em baixo. Seguro firme no cordão prateado, entrelaçado de rosas, e vou ver de perto o sonho: o pote de ouro onde nasce o arco-íris.

Se o Senhor me permitir, gostaria de desvendar o mistério. Que face ele tem. E o que quer de nós. Erguer só uma pontinha do véu. Ó, que fascínio, que estupendo entender coisas como nascimento, morte, vida, paixão. E jamais desistir de sonhar, caso não venha a entender absolutamente nada.

 

 

Em Tempo

 

Valsa das flores

Marisa Bueloni

Parem! Parem todos!

Os que  vão a pé, solitários,

carregando suas pastas, parem.

Os que se espremem dentro do lotação,

desçam e parem.

As filas intermináveis de carros,

parem!

Parem! Detenham os aviões,

fechem os portos,

suspendam a venda de cigarros

e de bebidas.

Parem!

O que está no campo volte logo para casa

e o que está dentro de casa não saia.

Peço a todos que parem,

pelo amor de Deus, eu imploro, parem...

e venham ver a rosa branca desabrochar...

 

 

Vas

 

Vas

Marisa Bueloni

     Conheci Vas por vias não terrenas. Há um momento em que Anjos nos são apresentados por mãos divinas, quando percebemos com clareza não sermos nós os autores e artífices do rumo das coisas. E sim Deus.

     Quando conheci Vas, o céu inteiro baixou aqui em casa. De início, não percebi. E olha que sou treinada e rápida em ver a Luz. Quase ignorei Vas. Ah, quase.

     Deus, o que eu teria perdido! O que eu estaria perdendo, se tivesse escrito a Vas “grata por suas palavras, elas me emocionam, continue sendo meu leitor, o que muito me honra, um abraço, Ma”.

     É a primeira resposta, sempre, ao e-mail gentil do leitor, que chega de mansinho e faz elogios. A tônica da minha conduta ao responder é o respeito e o agradecimento. Mas forças desconhecidas agem e atuam e há os que escrevem mais uma vez, buscando contato com a cronista. Glória! Bem-vindos sede todos vós!

     A cronista, então, tocada sabe-se lá por quais humores divinos, responde também. E quando vê, já fez mais um amigo. Ou amiga. E trocamos nossas figurinhas – e fotos. Quando a coisa aperta de verdade ou fica bonita demais, fazem-se confissões e rola assunto que não acaba mais.

     Vas não mandou foto. Nunca. Vas é alguém que vive no segredo da mais anônima das virtualidades, protegido pelo secreto caminho da beleza. O que é isso? Não sei. Assim que souber, vos conto.

     Admirando as estrelas profundas no céu, pergunto a Deus quem é Vas. E por que entrou na minha vida. E por que me escreve tão lindamente, das lágrimas pingarem no teclado enquanto leio. Por que suas frases, de uma sintaxe confusa e sofrível – “e até os erros do meu português ruim” - não me incomodam. Sou meio chatinha com quem escreve mal...

     E olha que Vas, pelo jeito, não fugiu da escola. Ele conta que se esforçou. Já o “Rei”, pelo jeito, fugiu e bem fugido, porque não sabe como se forma o imperativo negativo e o afirmativo dos verbos. Atrapalha-se nos pronomes. Na música para Nossa Senhora, o “Rei” a trata de “você”, de “tu” e de “vós”, numa salada pronominal para a qual ninguém liga. Afinal, a música é linda, o “Rei” é lindo e os críticos, cansados, pararam de pegar no pé dele.

     Eu não pego no pé de Vas. Só de vez em quando. Mas nem vi o “poetiza”, com z. Passou batido. Vou eu lá dar importância à ortografia diante da imensa beleza que é a alma de Vas? Mas ele também se enrola todo nos pronomes. De repente, de “você”, eu viro “tu”. Mais à frente, eu sou “vós”. Tudo bem, Vas. Licença poética. Foi dada ao “Rei” e será dada a você também. Não serão os pronomes que nos farão o confronto final. Amigos?

      No caso do “Rei”, tapam-se os ouvidos. No seu caso, não há como fugir. Tenho de ler, não posso tapar os olhos. Não. Ler Vas é sentir a respiração da beleza, ou ficar ali, de paquera com ela, ainda que à distância. Porque Vas é belo, belo, belo. Vas é de uma linhagem nobre. Feito da mais límpida integridade. Vas é desses Anjos que o Senhor envia à terra de tempos em tempos para acalmar o mar, serenar os ventos, deter a tempestade.

     Vas torna o mundo melhor. Se Vas partir, a Terra sofrerá o que chamamos de “perda irreparável”. Porque enquanto o planeta tiver a honra de que Vas o pise, estamos todos salvos.

     Ah, Vas!... Que beleza de ser humano é você, cara! Como eu amo esse seu jeito de escrever apressado, misturando os assuntos e usando a “realidade cósmica” para acabar de vez com uma questão espinhosa e danada que é o encontro de duas almas.

     Encontre-me, Vas! Ache-me, se for capaz! Decifre-me, meu Anjo de verdade. Venha me caçar com suas flechas embebidas na ternura e na bondade. Resta pouco tempo – eu digo sempre - e ninguém acredita. Riem de mim. Podem rir, seus bobos. O céu vai se abrir. Esperem.

     Vas espera. Eu espero. E quando o céu se abrir e se enrolar como um pergaminho, nessa hora eu gostaria de pedir a Deus a graça de segurar na mão de Vas. Mas penso que será impossível. Vas existe de verdade? Como saber? Vas é gente ou ficção? Vas tem CIC e RG ou é uma falsidade ideológica?

     Quando o céu se abrir, por mais Vas se esconda, saberei quem ele é. Porque todas as coisas serão reveladas. Até os segredos dos corações. Nada haverá de oculto, nada resistirá à Luz colossal. E eu verei a face radiante e luminosa de Vas. Por trás do amor, pela passagem secreta dos caminhos de Deus, há de se revelar o conteúdo do cofre.

     Guarde no cofre, Vas.

 

 

 

Carta para um Príncipe

 

Carta para um principe

Marisa Bueloni

Campestre, setembro de 2010.

Vai chegar a primavera. O Reino está atento?

Um hálito de frescor percorre a Terra. A vida cumpre um ciclo. Somos cíclicos, como as flores. Tangida pela dor, já dei 60 voltas em torno do Sol. Consta que Vossa Alteza também. Veja só, a gente em órbita, assim, em torno do Astro-rei esse tempo todo. Sessenta voltas – e eu nem percebi.

Nada disso importa, diante do acontecido. Nada aconteceu, fique sossegado – além do fato astronômico. No entanto, que acontecimento retumbante! Que grata revelação saber desta estima, deste apreço, deste sentimento. Meu coração dispara e se curva ante tal beleza, premido por metáforas obrigatórias.

Vossa Alteza trouxe sonho a minha vida – uma vida que já teve sua juventude, seu viço, sua plenitude. Agora, na fase da maturidade, depois de um casamento lindo e felicíssimo, de duas filhas adultas que são o meu orgulho, vivendo uma viuvez serena, agradeço que se apresente com esta solicitude reservada e anônima.

Lembra do poema? “Ofereço-te meu ombro/ meu assombro/ e minha amizade”? É isso. Oferta sem pretensões. A não ser estender minhas mãos cansadas, no outono das nossas existências. O inverno, de fato, virá dentro de alguns anos. Em todo o caso, esta carta é escrita na quase primavera do planeta azul. Mera coincidência?

Escrevo não só para os nossos, mas para todos os corações. Os que pulsam na maravilha do ato respiratório e batem vigorosamente e também para os que sentem a ameaça das arritmias da vida e seus sustos. Talvez sejam os mais longevos. Os que resistem bravamente às sacudidas. Porque, nos hospitais, querem ficar perto da janela e ver o sol lá fora.

Eu quero sempre ver o sol lá fora. 

Nosso corpo, de jovem, amadurece de uma forma fatal. Viramos pessoas fatais na lógica do implacável. Olho mesmo é para frente e para o alto. Diz o Senhor a uma mensageira: “Não te desvies, não olhes nem para a direita e nem para a esquerda; mantém-te fixa em Mim”. Tento fazer isso. Enfim. Como fugir de nossas rotinas absurdas? Devo ter algumas receitas alquímicas para não deixar morrer o fogo que nos queima a alma. Ele será nosso eterno farol.

A luz deste que me guia agora, localiza-se em alguma ilha deserta, onde nunca aportamos. Lá deixei meu coração. Tarde demais, eu sei. Meu barco passou. O seu barco passou. A aduaneira não viu. Uma carta náutica não registrou. E os peixes ovularam debaixo d´água um poema oceânico. Aprisionado dentro de uma garrafa, à deriva. Além mar. Além terra. Além tempo.

Esta carta é bem singela, pode ver. Porém, incandescente. Saiba que estou aqui, assustadíssima com tudo isso, pensando nas virtudes de quem conseguiu tão bem guardar os seus segredos. Guarde no cofre.

Nós, mulheres, também os guardamos, quando queremos – ou quando precisamos. Tenha a certeza de que o coração de uma mulher é um poço sem fundo de segredos e mistérios. Nele cabem - além dos brincos, do perfume e do batom -,  todas as lendas, as fantasias, as histórias e os contos de fadas mais belos – como estes, escritos a cada novo e-mail. Deus salve a internet!

É uma beleza! É uma beleza – eu sei. Vossa Alteza também sabe. Como é vasto este assombro! Nada pode ser desperdiçado. Nem uma vírgula pode se perder. Nesta fábula retardatária, uma vírgula é potencialmente um poema de amor. Um romance de Tolstoi. Uma ópera de Verdi. O Bolero de Ravel. A Carmina Burana, em toda a sua glória.

Vírgulas – eis a carta! -, elas fazem uma frase respirar mais bonito. E eu estou sem ar. Eu preciso respirar. Tudo o que tenho aprendido com Vossa Alteza, meu amigo da fase outonal, é a retomada de uma música antiga, que dançamos na sala do mais lindo castelo. Meu bem, já não precisa falar comigo dengosa assim. Você me tirou para dançar, um dia. Um dia, gatinha manhosa, eu prendo você no meu coração. Comportou-se como um príncipe. Quero ver você fazer manha então. Presa no meu coração. Quero ver você...ê.

Não podia ser diferente. Um príncipe tímido que não conseguiu se declarar. Tão nobre. Tão digno da realeza dos bons costumes e bons sentimentos. Já não se fazem príncipes como antigamente.

Vamos deixar tudo como está? Passei da idade de usar sapatinho de cristal. E já bateu meia-noite. Da minha torre, tenho uma visão perfeita da história. Contudo, ninguém sabe o que pode acontecer na próxima volta do relógio, porque tudo muda o tempo todo no mundo. Essa é mais atual.

Talvez, para um príncipe de contos de fadas que se preze, Vossa Alteza guarde como trunfo o outro pé do sapatinho. Aquele que deixei cair, perdido nas escadarias do tempo. Ié, ié, ié.

Na carta de agora, quero mais que dizer “olá!”. Não sei se fica bem um simpático “muito prazer em revê-lo”. Não sei direito qual é a sua turma, se do “data venia” e do “subscrevo-me atenciosamente”. Eu esculacho, assim, tipo “oi, cara”.

Contudo, Alteza, não queria, jamais, dizer “adeus”.

Sua Princesa

 

Fenômenos de Aporte

 

Aporte

Marisa Bueloni

     Caro leitor, você já ouviu falar em fenômenos sobrenaturais e em aporte? Bem, minha crônica também é cultura. Aportes são, segundo o Google, “surgimentos repentinos de objetos provindos de locais diversos que não apresentam qualquer limitação perceptível em suas ocorrências: desde frutos até cães e pássaros, tudo parece ser passível de ser aportado”.

     Alerta-nos nosso bravo auxiliar Google que “os aportes não devem ser confundidos com transportes ou materializações”. Entendeu?

Vou dar um exemplo concreto. Sabe aquela tesoura que você tinha certeza que havia guardado numa determinada gaveta? Você vai lá pegar a dita cuja e ela não está. Vasculha a casa inteira atrás da tesoura. Reza o “Responso” para Santo Antonio e ela não aparece.

     Você fica intrigado (rendo-me à decisão linguística do gênero masculino para nos dirigirmos ao leitor). Dias depois, precisa costurar algo. Pega a caixa de costuras e tchan, tchan, tchan, tchan... a tesoura está lá.

     Óóóh! Ei-la que surge! Você tem certeza absoluta de tê-la posto na tal gaveta. Como ela foi parar na caixa de costuras? Este é o chamado “aporte”. Também são conhecidos por esse nome fenômenos de “aparições” que nos chegam do nada. Algo que caia na nossa frente, de forma inesperada.

Deve haver um “buraco negro” (não pode ser branco?) regendo o curso e a existência de todas as coisas, no tempo e no espaço. Invisível fundamento, substrato impalpável, imaterial visão do mistério.

     Acho que ando testemunhando estes fenômenos à minha volta. Há dias não encontro uma blusinha marrom, do tipo segunda pele. Depois de lavada e seca, guardei-a numa gaveta. Concretamente fiz isso, com minhas próprias mãos.

     Então. A blusinha não está lá! Já vasculhei a casa toda, já arrumei duas vezes meu armário. Ela é tão fininha, pode ter caído sem eu perceber no meio da gaveta onde guardo lenços, echarpes e cachecóis. Nada.

     “O acaso vai me proteger / enquanto eu andar distraído”, diz uma canção. A frase musical é uma premissa discutível. Não tem base científica e não tem lógica. Como o acaso irá nos proteger? Inda mais se alguém anda distraído.

     A questão é mais filosófica do que se pensa. Haverá aporte nas palavras? Enfim, o verso remete a uma reflexão do cotidiano e das nossas distrações. Onde guardei minha blusinha marrom, senão nesta santa gaveta?

     Dizem (e eu não assino nada disto que escrevo aqui, bem entendido) que nos fenômenos de aporte, os objetos podem atravessar paredes. Ir de um cômodo para outro. É por isso meus óculos andam pela casa e eu fico louca atrás deles.

     E as chaves? Da casa, do carro. Onde está a chave do carro? Eu pus ali, meu amor. Mas não está. Então, não sei. É o momento de você encontrá-las no bolso da calça ou do paletó. Ou dentro da bolsa.

     Uma vez, um frei querido disse que o anjo da guarda dele se chamava “Onofre”. Batizei o meu de “Jeremias”. Penso que “Jeremias” se diverte comigo, escondendo coisas de mim. Tudo bem, mas me ajude a encontrar depois, meu anjo?

 

Vote em mim

 

Vote em mim

Marisa Bueloni

Estamos num ano eleitoral. Ano interessante este de 2014. Tivemos uma Copa do Mundo (já passou?), que não foi lá essas coisas para nós, os brasileiros. Ui!... Melhor não tocar no assunto daquele fatídico 7 X 1. Vade retro!

     Bem, amigos, vamos juntos pensar nas promessas de campanha. Você pode ir imaginando aí, com seus botões, o que é que os candidatos vão começar a dizer no horário político gratuito que amamos de paixão.

     Confesso que assisto e tento ver quem está falando coisa com coisa, em bom português, apresentando propostas decentes ao eleitor. Vejo se alguém acena ao povo com políticas sociais sérias, animando-nos a sair de casa para votar.

     Então. Vote em mim, caro eleitor, que vou acabar com todo tipo de conflito, nem que seja no grito, e com toda tristeza na face da Terra. Assim, Terra com T maiúsculo, que é para impressionar as almas. Calmas!... Tristeza não mais haverá e a alegria imperará por toda a parte, como um toque de mágica e de arte. Como vou fazer isso? Não sei. Apenas prometo. Vote na Tereza, ela acaba com a tristeza.

     Você que está aí sofrendo com dívidas e contas. Ora, lontras! Eu serei para o meu eleitor um bravo lutador, do tipo radical. Prometo saírem rapidinho do cheque especial. Vote em mim, eu sou o Hilário, o rei do saldo bancário.

     Meu amigo, se você está sofrendo de azia, má digestão, enxaqueca, cólica renal e hérnia de disco, sou pastor, venha para o meu aprisco. Suas dores acabaram! No meu mandato, ninguém mais tomará um comprimido. Toda forma de dor será banida e você mudará de vida, sem analgésico e sem anti-inflamatório. Vem pra cá, seu Osório! Vote em Alaor, chega de dor!

     Para acabar com a corrupção, só mesmo votando no Assunção. Porém, não prometo isso ou assado porque já estou velho e cansado. Arrumaram este slogan para mim agora, ora, e eu nem gostei dele, sabe? Mas, a gente faz o que pode. Assunção, o homem do bigode.

     Vote em mim, caro eleitor, meu partido é o PAMOR: Partido do Amor, claro. E de quem tem bom faro. Achamos esse nome muito legal. O mundo está uma loucura, afinal. Pessoas vagando sem rumo e sem destino. É um desatino. Vote no PAMOR, se ainda acredita no amor.

     Posso não ser a sua melhor opção, mas existe outra? Ninguém mais deseja ficar apostando para ver a coisa andar. E se vai mudar. Pode haver mudança? Deus queira! Sim, mude com o melhor, mude com o Pereira. Sou pequeno no partido, mas não estou perdido. Pereira, o que não fará asneira.

     Vote em mim. Entrei de gaiata e não tenho assim um projeto para lhe apresentar. Ar. Minha melhor ideia é a de que nós precisamos urgentemente, gente, de novos conceitos. E de atitude. Para construir um açude. Meu nome é Maria, a que entrou numa fria...

 

Essa febre…

 

Marisa Bueloni

Houve um tempo maravilhoso, com gosto de espiga de milho assada na brasa, no sítio mais lindo do mundo. Deus Pai! Quanta conversa deliciosamente jogada fora, sob o luar de prata, enquanto São Jorge lutava com o dragão.

Neste sagrado reduto da crônica, dá uma baita vontade de evocar o pano de louça branquinho, secando no varal; verdura colhida na horta; fruta apanhada no pé; pijama de flanela; leite tirado da vaca cedinho; doce de mamão verde; queijo fresco; cheiro de café coado na hora e os causos de lobisomem, Saci-Pererê, assombração. E depois, pra pegar no sono? Lá vinha a mão peluda saindo debaixo da cama, apertar o pescoço da gente. Misericórdia.

Hoje não há mais noites, galos e quintais. Raros exemplares destas preciosidades resistem aqui e ali, mas não com o mesmo lirismo e a mesma beleza. Tudo mudou tão drasticamente, que evito argumentar. Houve um tempo digno em que os professores eram respeitados na sala de aula, pedia-se a bênção aos pais e aos parentes mais velhos. Os homens tiravam o chapéu, numa reverência respeitosa, quando passavam em frente de uma igreja. Cansei de ver meu pai fazer isso. As moças eram chamadas de “casadoiras” e as pessoas sentiam vergonha de dizer certas coisas em público, porque se tratava de intimidades absolutas.

Ainda guardo no peito essa febre antiga. E assim, em estado febril, vem o delírio. Haja alumbramentos na madrugada. Mas haja também um coração à escuta. O que é que você ouve? Eu ouço tudo, no silêncio duro de pedra. Se não houver esta capacidade auditiva de captar o insonoro, nada feito.

Há coisas invisíveis e impalpáveis no reino imaterial. Contudo, atuam fortemente dentro e fora de nós. São Bernardo dizia que não podemos ver o Espírito Santo, mas percebemos Sua presença pelo movimento do nosso coração.

A casa do coração, creio eu, pode ser a mais simplesinha possível, mas é este sentimento poderoso que conta. Sem ele, construímos nossa morada na areia. Temos de edificá-la sobre a rocha. Não é preciso cultivar uma erudição muito da cultíssima, nem anel, nem diploma. Dona Vida tem ensinado uma porção por aí. Importa aquele brilho nos olhos, a festa da alma.

Bom, e a poesia? A febre da palavra? Ainda tem poeta remanescendo nos desvãos da vida. Um amigo me escreveu que está grávido dele mesmo. Pode uma coisa dessas? De turrona, vou lá de mansinho, sem fazer barulho, penetro surdamente no reino das palavras, e fecho a porta. Pego o verso dele e rumino as ideias. Oh, e não é que isso me acontece o tempo todo? Vivo grávida de mim. O parto não acontece. Estou entalada no meu próprio ventre. Autoconcebida para sempre. Quando é que a gente nasce de verdade?

Temos de nascer, em algum momento. E cumprir o que nos cabe. Com a febre na alma. Você está pensando exatamente isso: que a vida carece de um sentido. Pois meu objetivo não teria sido outro, senão o de chegarmos juntos a esta sábia inquietação. Pois me diga, tem coisa melhor? Você aí, diante do jornal, tomando seu café. E no infinito de todas as coisas, a vaga nostalgia de abril. Febril.

 

Meu reino por um travesseiro

 

Meu reino por um travesseiro

Marisa Bueloni

Bom dia. “Ó, céus! Ó, vida!”. Assim lamuriava a hiena nos desenhos da Hanna-Barbera. Cá estou, novamente, a lutar com os travesseiros a noite toda. Pode rir, mas é a pura  verdade.

     Eu até havia “acertado” um bendito, de uma marca conhecida, aquele “da Nasa”. Lembro do meu primeiro contato com essa espuma que afunda e volta ao normal. Estava à procura de um bom e macio travesseiro e o vendedor mostrou vários modelos até chegar “ao da Nasa”. O artefato era feito com a mais moderna tecnologia espacial e educadamente recusei. Muito obrigada, moço, mas prefiro um daqui da Terra mesmo...

     Andei experimentando marcas e diferentes modelos recomendados, até provar um destes de espuma com tecnologia do espaço. Quem sabe a gente sonha que está nas nuvens, num céu cheio de estrelas? Vá lá. Comprei um. Eureka! Descobri a roda, a pólvora e inventei a lâmpada, que maravilha!

     Adorei o travesseiro, acabaram-se as dores no pescoço quando acordava. Fiquei dois anos e meio com o meu amado. Mal podia acreditar. Então, alguém teve a infeliz ideia de me alertar que é preciso trocar todo ano. Sim, o tempo de uso, os ácaros, etc. Bem, lá fui eu, pressurosa, à cata de um novo.

     Rodei a cidade. Cadê o modelo que eu tinha? Nada. Ah, que angústia mortal. Moça, mas como assim, acabou? Eu comprei aqui mesmo, há uns dois anos. Moça, pelo amor de Deus (implorava de joelhos), procure melhor aí, deve ter! Não tinha. Consolei-me adquirindo um modelo sugerido por ela, o preferido de nove entre dez lutadores com  travesseiros durante a noite.

     Claro que não era igual ao meu antigo. Jamais seria. Eu queria matar a moça que me vendera aquela ilusão fatal. Mas ela não tinha culpa de nada. E as dores no pescoço voltaram.

     Minha filha mais nova, vendo meu desespero, deu-me de presente um “da Nasa” que ela descartara, novinho. Esse é bom, mãe, você vai gostar. É bom, mas é alto demais para mim. O difícil é achar o meio terno, nem muito alto, nem muito baixo. Ó, céus! Ó, vida!

     Sofri a trigésima tentação e comprei um que “levita”. Muita gente comprou e gostou. Foi-me recomendado também por uma leitora querida. Contudo, o que é bom para alguém nem sempre é bom para nós. Noite destas, lutando com o que “levita” (ahahahahah!), abri o armário e pensei: deixa ver se  tem algo aqui. E achei dois bonzinhos, acho que paguei 20 reais por eles, destes que a gente guarda para quando precisa compor uma cama, com porta-travesseiros. Peguei um, fininho, simplesinho, ninguém dá nada por ele.

     Pois dormi a noite inteira, com menos dores no pescoço ao acordar. Vá entender. Uma porcariazinha barata, que nenhum ortopedista recomendaria. Bem dizia minha santa mãe: nem sempre o mais caro é o melhor.

     E tome tecnologia: o que nos faz “levitar”, o de espuma da Nasa, o com bolinhas, o que tem degraus, o magnético, o modelo inglês... Não, pra mim chega!

     E depois do bom dia, desejo uma boa noite de sono, caríssimo leitor!

 

A sétima estrela

 

SetimaEstrela

Marisa Bueloni

A você, que me faz tantas perguntas, dedico o texto desta semana. A você, que me escreve tão lindamente, por favor, não pergunte o porquê deste título - “A sétima estrela”. Eu não sei. Surgiu, assim, de pronto, um título profético, mais ou menos como “O segundo sol”, uma música de Nando Reis.

 Com o título desta crônica, estou também homenageando um dos meus autores preferidos, Rubem Alves, quando cita “A terceira margem do rio”, um conto de Guimarães Rosa. Não existe a “terceira margem do rio”, Rubem argumenta. Só conhecemos duas, a direita e a esquerda; a de cá e a de lá. E qual é a terceira? Seria a da palavra? A da literatura?

 A você que me criva de indagações, deixe-me pensar. Está bem, vou mandar bala. Você também tem veia literária, pois se expressa com clareza e limpidez. Um texto tem de ser claro, ou não alcança o nosso entendimento. E não me refiro à parte cognitiva e intelectual.

 Estou sendo clara? Shakespeare disse que “somos feitos da mesma matéria dos sonhos”. E é isso que move cada um de nós nas suas respectivas direções. Quando rompe o dia, algo tem de transformar a base da nossa alma pequenina. Ou não valerá a pena. Se existem mortes e ressurreições à nossa volta, é porque estamos todos imersos no sonho diário de viver. Isso é tudo que importa: viver um dia de cada vez.

 Uns assimilam perfeitamente esta proposta e acolhem, fascinados, o primeiro raio da luz nascitura. Até o momento da reverência à sétima estrela que aponta no céu noturno. Tiveram da vida uma visão apocalíptica, viveram um dia inteiro. Para outros, esta conversa mística constitui um enigma tolo e pedante. Talvez inútil. Uma linguagem de metáforas improdutíveis.

 Mas, ah! E quando se entende a profundidade deste tema cotidiano? E quando capturamos a beleza do invisível, a jactância do que nos arrepia, a sensação de que o corpo ultrapassa a si mesmo, qual um cavalo solto na planície? Então, de minha parte, busco vos dar isso: um texto que represente a redenção. Um poema de vida e de morte. Algo muito óbvio, muito evidente, sob nossas fuças, e que não vemos por cegueira absoluta.

Creio não estar apta a responder todas as suas perguntas. Possuo apenas a competência da minha fé, e preservo este dom espiritual como meu bem mais precioso. Para onde vamos depois da morte? Quem me dera saber! Existem crenças e uma delas é que vamos para o julgamento diante de Deus. Nessa hora crucial, espero ter as mãos limpas, um coração puro, sem muita vaidade e um tantão assim de amor.

Você prefere o texto de rasgar o peito, aquele que beija o assombro, ou as respostas? Sabe, sinto uma profunda gratidão pelas palavras. Com elas, me derramo aqui e em qualquer lugar. Há momentos em que elas são: tomate, queijo, maçã. Depois, mudam para: banho, cabelo, creme. Também podem ser: cama, coberta, sono. Mas me pegam mesmo: tílburi; roldana; anacoluto; inconsútil; ameba; catapulta; solstício... E eu desfilaria aqui um dicionário dessa estripulia vocabular.

Nunca sei se há luz demais no meu texto. Se ele escancara uma boca enjoativa de verbos. Se também preciso depurar esta hemorragia textual, excessivamente feérica, recorrendo à estratégia de pintar alguns sombreados, um pouco de penumbra, para que um bruxuleio misterioso o torne mais poético – a conselho dos sábios poetas.

Estou disposta a negociar tudo isso, em troca da beleza a qualquer preço. Aquilo que nos toca a alma: sabedoria, liberdade, inteligência, beleza. Esta última, por exemplo -  a beleza –, habita os lugares mais recônditos. Para que ela apareça é uma luta. Quando quer, se mostra, de graça. E há quem perca essa hora divinal, preocupado com as seduções deste mundo.

Eu não. Monto campana. Estou sempre de vigia, esperando por ela. Não dorme quem guarda Israel. Não durmo eu, sentinela das coisas profundas. Começo pelas mais simples, a imagem da menina empoleirada no galho alto da mangueira, aquele no qual se amarrava um balanço de corda, para o corpo balançar o sonho. Acima da árvore, um céu puríssimo.

Eu sonho, meu anjo. É isso que, afinal, você quer ler aqui? Que eu sonho. E partilho essa ousadia com os leitores. Sonhar faz um bem enorme à alma, ao corpo, à mente, à vida. Se vai nos dar longevidade, não sei. Mas acredito que somos feitos da mesma matéria dos sonhos. Ela não amarrota, não enferruja, não cria vincos. E é eterna.

Portanto, uma existência toda vislumbrando o que habita o invisível, lá no fundo do coração, no reino da esperança, e já não se pode baixar a guarda. Ou esquecer o mais importante. Notou como andamos distraídos? Que triste ir embora sem ter visto o essencial! Não permita, Deus, que eu morra sem ter visto a beleza. Ou o segundo sol. Ou a terceira margem. Ou a sétima estrela.

 

 

Santo Elesbão

 

Santo Elesbao

Marisa Bueloni

Sou católica e feliz por ter nascido num lar católico, vendo meu pai e minha mãe rezando o terço de joelhos, todas as noites, diante das imagens dos Sagrados Corações de Jesus e Maria.

     Ser católico é ser universal e acolhedor. Tenho amigos evangélicos, espíritas, budistas, judeus, agnósticos e vejo que até mesmo os ateus crêem num Ser Superior que rege todas as coisas.

     O católico de verdadeira fé, com profunda vivência dos valores cristãos, possui uma alma nobre, compreende e perdoa. Ama a todos, de todas as confissões religiosas, respeitando-os, como nos ensina o Papa Francisco.

     Recentemente, fui destratada, insultaram-me pela internet. Faz parte. Foi-me dito que nós, católicos, fazemos “barganha” com Deus. Nossas orações, novenas e promessas, seriam meras “negociações” com Deus, para obtermos algo em troca e que não passamos de um bando de hipócritas.

     Claro que doeu. Contudo, não posso revidar de forma rude ou grosseira. Não seria cristão. O gesto de amor é pagar o mal com o bem, numa atitude de perdão e caridade, buscando ser compreensivo, sem julgamentos.

     É difícil viver esta filosofia do amor? É, sim, é bem árduo este caminho. Quem já não sentiu ganas de dar uma resposta “à altura” quando é ofendido? Diz a Palavra para oferecermos a outra face, se nos baterem numa delas. Ah, meu Deus! Como isso é complicado! Jamais levantar a espada contra o nosso inimigo. Deixar a justiça para Deus, pois somente Ele é o perfeito e justo Juiz.

     Então, ao ler que os católicos “pedem coisas” aos que morreram em santidade, veio-me à lembrança uma entrevista que vi na tevê de um estudioso, especialista em vida de santos.

     A matéria foi muito boa e interessante. O entrevistado sugeriu não fazer pedidos aos santos de praxe, como a Santo Antonio, por exemplo, tido como um grande casamenteiro. (Consta que havia uma imagem de Santo Antonio numa igreja aqui de Pira, já com os pés gastos e sem pintura. Reza a lenda que as moças solteiras passavam demais as mãos nos pés do santo, pedindo um bom casamento...).

     Rindo gentilmente, o entrevistado opinou que se façam os pedidos aos santos “menos ocupados”, àqueles de quem ninguém quase se lembra. Um destes pouco requisitados seria Santo Elesbão. Eu o desconhecia e comecei a investigar sua vida. Elesbão foi um rei católico do século VI, um negro etíope, estimado pelos seus súditos e seu reino propagava a fé cristã. Mas o reino vizinho era chefiado por Dunaan, que promoveu um massacre no qual morreram cerca de quatro mil cristãos. Elesbão declarou guerra a Dunaan e liderou o seu povo, saindo-se vencedor.

     Mais tarde, sentindo o chamado de Deus, Elesbão entregou o trono ao seu filho e dividiu seus tesouros com os súditos pobres. Partiu para Jerusalém, onde depositou a coroa real na Igreja do Santo Sepulcro. Retirou-se para o deserto, vivendo como monge contemplativo até sua morte no ano de 555. Sua festa se celebra no dia 27 de outubro.

Santo Elesbão! Rogai por nós!

 

 

Bola pra frente

 

Bola pra frente

Marisa Bueloni

Esta é uma expressão muito usual entre todos nós. Costumamos dizer “bola pra frente”, quando nos referimos ao contínuo ritmo das coisas que devem prosseguir, apesar dos pesares.

     O final da Copa foi trágico e amargo para a seleção brasileira? Pode até ter sido, mas deixou suas lições de que, em qualquer atividade ou profissão, é importante estar preparado, treinado, apto, capaz.

     Vimos, praticamente, a decadência do nosso futebol. Aquele futebol brasileiro que um dia encantou o mundo parece não existir mais. Contudo, pode ressuscitar, se houver gente disposta a apostar nele.

     Há de ser um árduo trabalho técnico e talvez tenha de ser abolida esta convocação às pressas e às cegas, chamando zagueiros longínquos; um atacante que jogou bem o último campeonato europeu ou um volante que se destacou lá fora e chamou a atenção do treinador.

Ah, quantos lamentos por causa desta perda, desta derrota memorável no Mundial de 2014! Sim, jamais a esqueceremos. Não foi uma queda honrosa, digna, porque o placar nos levou, além da vergonha, a um estado de terror onírico. Não parecia realidade, não era verdade. Aquilo foi um pesadelo que passou por nossas vidas. A ponto de um torcedor, enfurecido, ter jogado a sua tevê de 42 polegadas na rua, malhando-a no chão... Que culpa tinha ela?

Uns dizem que se a Copa tivesse sido na Cochinchina, não teria doído tanto. A dor maior se deveu ao fato de sermos os anfitriões, os donos da casa. E ainda por cima, oferecendo aos visitantes as deslumbrantes arenas para que um estrangeiro lançasse mão à taça.

     Ouvimos o tempo todo: “Graças a Deus, não foram os argentinos”. Confesso que nada tenho contra esse povo irmão, que veio para cá aos milhares durante a Copa, fazendo rasgados elogios ao nosso amado país.

     Sim, bola pra frente. Se até para o Felipão “a vida continua”, por que não haverá de continuar para nós, pobres mortais, que não somos chamados para fazer aqueles comerciais engraçadinhos no avião?

     Um comentarista (foi o Neto?) afirmou que o técnico fez comerciais demais e esqueceu de treinar a seleção. Enquanto ele filmava, os alemães trocavam os passes geniais no gramado construído em Cabrália, com o sol a pino.

     Bola pra frente. Há tanta coisa para acontecer neste país. Vêm aí as eleições, estamos num ano eleitoral e   nossas expectativas são as de que sejam feitas profundas mudanças, a começar pela tão cobrada reforma política, reforma de um sistema também decadente e viciado.

     Quem deverá governar o país? Em quem depositaremos nossas esperanças? O povo brasileiro, agora um tanto ferido em seu orgulho nacional, deseja erguer a cabeça, revestido de dignidade, direitos, justiça, qualidade de vida, sobretudo aos aposentados e pessoas de baixa renda da nossa população.

     O que nos espera? Só Deus sabe e talvez os oráculos de plantão, aqueles que nem sempre nos respondem com a verdade. De agora em diante, só com muita reza e água benta. Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, rogai por nós!

 

 

A glória pequenina

 

A gloria pequenina

Marisa Bueloni

Vejo, com alegria, e cada vez mais, que as coisas pequeninas ocupam um lugar especial no coração de todos, ou, pelo menos, no coração da maioria das pessoas. Sobretudo, das pessoas sensíveis, atentas, capazes de  captar lá no fundo da palavra a sua essência salvadora.

      Assim é quando escrevemos sobre um tema do cotidiano, a mesa em volta da qual uma família se reúne. Não importa se de mármore, de cristal, importada ou nacional, ou feita de tábuas rústicas. Não existe glória maior para o cronista do que esta: ser compreendido pelos seus leitores.

     Sim, temos de nos dedicar a esta tese relevante: a de que as coisas não devem ser tão facilmente descartadas. Muitas pessoas  se cansam logo do que possuem e se atiram, irrefletidamente, à troca de tudo o que é passível de substituição; fazem decoração nova na casa a cada ano; renovam também o guarda-roupa; compram e consomem de forma quase irracional, pondo de lado objetos e peças em perfeito estado de uso. Talvez por modismo; ou por pura veleidade.

    Hoje, a ordem é reciclar e aproveitar tudo o que pode ser reutilizado. Vivemos tempos críticos, onde a questão do aquecimento global tem inspirado alguns líderes políticos na cruzada em defesa do planeta, como é o caso do ambientalista americano Al Gore. Quem ainda não viu, não perca o vídeo “Uma Verdade Inconveniente”. Ali está toda a realidade que muitos preferem ignorar. O consumo desmedido e irresponsável deverá ser repensado, pois ele tem sua parcela na contribuição do aquecimento. Será necessária uma revisão dos nossos hábitos e estilos de vida, da cultura da abundância e do desperdício, por meio da conscientização de que devemos extrair da Terra o suficiente para a  nossa sobrevivência.

     Vemos em toda parte uma brutal incitação ao consumo. Todos precisamos adquirir aquilo que é necessário para o bem estar do dia-a-dia, todos devemos consumir o que está ao nosso alcance. Contudo, a febre de comprar pode se transformar numa armadilha perigosa. E, quase sempre, os desavisados caem nesta rede sutil, sem  considerar muito bem por que estão gastando uma fortuna em algo prescindível.

       Quanta coisa inútil é adquirida porque é moda e logo depois descartada, jogada numa gaveta. Se ao menos as pessoas se lembrassem de doar, de repartir com quem nada tem.

       Diz um leitor que, nos dias de hoje,  até mesmo os casamentos são “descartáveis”, as uniões duram pouco tempo. E por que isso está ocorrendo numa escala assustadora? Mudou o casamento ou mudaram as pessoas?

        Minha mãe dizia que, para casar, uma pessoa precisa ter uma virtude primordial: a paciência. E batia nesta tecla o dia inteiro. Quando reclamávamos disto ou daquilo, ela nos consolava com sua sabedoria simples e dizia: “tenham paciência”. Bastava dar tempo ao tempo e tudo se resolvia, como nas palavras certeiras da previdência maternal.

     Parece que hoje poucos filhos ouvem os pais. É uma pena. E quando os jovens cometem toda sorte de delitos, culpam-se os pais. Na tevê, o pai de família reage assustadíssimo, ao saber que o filho participou de uma gangue que pôs fogo num morador de rua.  A sociedade está vivendo um momento de grande desequilíbrio, os valores estão se invertendo de uma forma cruel e não nos causam mais admiração que filhos matem seus pais, que jovens drogados agridam e tirem a vida dos avós, que a esposa mande matar o marido e vice-versa, que a funcionária da empresa seja assassina da colega de trabalho, que a jovem mãe atire o bebê num córrego infecto, etc. A crônica policial da vida é extensa e os casos são aterradores. O que haverá por trás de cada um deles? Certamente, a falta de amor, falta de Deus.

     Ninguém mata, se tem Deus no coração. Ninguém manda matar, se ama e se é amado, se conheceu um dia a grandeza do amor e da caridade. Cresce feliz e saudável aquele que abraçou e foi abraçado, ainda que seja na pobreza e na falta de  tudo. Quem ama, se doa generosamente. Quem é amado, guarda no peito a gratidão. São sentimentos que dão estrutura ao coração bem formado – o ideal do amor, da paz e da  fraternidade.

     Então, uma leitora escreveu: “Acredito que os momentos passados com nossa família sejam marcantes para sempre em nossas vidas, e em uma mesa de jantar não seja diferente. Em minha infância, não foi em mesa, mas sim em cavaletes e tábuas, uma vez que meu avô era pedreiro, que toda nossa família se reunia, para aquele almoço de domingo. Agradeço por ter me levado ao passado, revivendo momentos que jamais serão esquecidos”.

     Esta é a glória pequenina: a mesa rústica, uma tábua apoiada sobre dois cavaletes, em volta da qual uma família se reúne para a abençoada refeição, para alimentar-se do pão de cada dia. Esta é a ceia do amor.

     É belo ter uma família reunida em volta de uma mesa. É rica em dons de Deus a família cujos membros se amam e se respeitam.  Que bom quando os filhos podem contar com pais que os ouvem; quando os pais podem confiar nos filhos que criaram. Quão importante é a confiança, o colo da mãe, o ombro do pai, a força do relacionamento franco, equilibrado e amoroso. É esta disponibilidade, esta aproximação de afetos que enche de glória o coração da vida.

 

Casar por amor

 

Casar por amor

Marisa Bueloni

Recentemente, numa conversa, falava-se do casamento e dei um palpite acertado. O assunto era “casar por amor”. E o outro lado da moeda: “casar sem amor”, ou seja, casar por interesse, casar para juntar e preservar fortunas, patrimônios; casar para sair da casa dos pais e tantas outras razões.

Não sei se nos dias atuais os jovens sentem pressa de casar. Parece que não. Os moços de hoje demonstram gostar bastante do ninho doméstico, ter o quarto deles, comida e roupa lavada, usufruindo de toda a estrutura da casa dos pais.

Vi uma reportagem na tevê, mostrando filhos quarentões que optaram por não abandonar o “lar doce lar”. E são bobos? Pretendem ficar na mordomia enquanto os pais ali residam, a pretexto de que cuidam deles e são indispensáveis.

Na reportagem, alguns pais reclamavam: “Mas não está na hora de você casar, filho?”. E o moçoilo desconversava, alegando não ter ainda encontrado a mulher da sua vida e tampouco o emprego dos sonhos. Os pais, como sempre, acolhem com carinho toda esta gama de explicações dadas pelo filhote que não quer voar.

Mas, casamento tem de ser por amor, creio eu, e essa será minha tese eterna. Costuma-se dizer: “Se com amor já é difícil, imaginem sem...”. Pois é.

Tudo isso me fez lembrar de uma confissão maravilhosa que tive com um sacerdote muito inteligente e bastante idoso também. Eu havia recebido um pedido de casamento. Viúva, a corte e o pedido me trouxeram, digamos, algum entusiasmo. Um novo encanto à vida. Aproveitei o momento da confissão para pedir uma orientação ao frei e vi que ele gostou da conversa.

Comecei com minhas dúvidas, não tinha certeza de amar a pessoa... O frei argumentou: “Mas para casar não é preciso amar. O amor vem depois, com o tempo, minha filha”. Peraí, frei! Alto lá!

Então, expus a minha convicção imutável de que o casamento deve ter somente o amor como razão principal. “Engano seu”, disse o frei. E acrescentou: “Você julga que todos os casamentos são por amor e que todos casam apaixonados, minha filha?”.

Sim, sim, sim, frei querido! Eu julgo, eu acho que assim deveria ser. Para mim, matrimônio é sacramento, é coisa séria demais, é o passo mais importante que se dá na vida. E é preciso levar a sério aquelas palavras célebres, “na tristeza, e na alegria; na saúde e na doença...”.  

     Contudo, mostra-nos a vida uma outra realidade. Este juramento nem sempre tem a força de unir corpos e almas eternamente. Há casos e casos de incompatibilidade. Até alimentar. Um não aceita o que o outro gosta de comer.

Enfim, caí na tentação de contar ao frei que o pretendente possuía um cheiro muito bom e especial. O frei deu o veredicto: “Minha filha, case-se com este homem”. Respondi que não se deve casar com alguém por causa do cheiro; tem de haver amor.

O frei e eu rimos juntos. Mas não me casei. Refleti noites e noites. No fundo do meu coração, precisava da certeza do amor.

Hoje, na condição de viúva, com a recordação de um casamento maravilhoso e feliz, mantenho a convicção de que só se deve casar por amor. E por nenhuma outra razão. Não é, frei?...

 

Venceu o melhor

 

Venceu o melhor

Marisa Bueloni

Quase sempre, para amenizar os ânimos e deixar que um determinado resultado seja justo, dizemos “que vença o melhor”. Nesta Copa do Mundo de 2014, o melhor dos times já despontava, porque ouvíamos e líamos sobre tudo o que a seleção da Alemanha havia feito lá em Santa Cruz Cabrália, na Bahia, com o objetivo de vencer este Mundial.

     Os alemães construíram um complexo hoteleiro, um Centro de Treinamento aqui no Brasil e treinavam à uma hora da tarde, com sol a pino, para se adaptar bem ao clima tropical. Pavimentaram estradas próximas ao local, souberam conviver com os índios pataxós, encantando-se com a exuberante beleza nativa.

     Até a grama do campo onde treinavam era da mesma qualidade das arenas oficiais, em que as partidas seriam disputadas na base do suor e sangue, como vimos na final, durante o emocionante jogo realizado domingo no Maracanã.

     Se houve um senão na trajetória alemã, foi o empate com Gana na fase inicial. O time de Gana não é superior à seleção do Brasil. Mas a partida no Estádio Castelão de Fortaleza terminou em 2 X 2. Gana enfrentou bem a Alemanha e lhe deu um certo trabalho.

     Já lemos de tudo, já ouvimos o suficiente sobre a fragorosa derrota brasileira e o inacreditável placar de 7 X 1. De fato, uma seleção pentacampeã jamais poderia perder um jogo com esse número de gols. É absolutamente humilhante, senão desmoralizante.

     Ninguém entende o que houve. O tal “apagão” deixou uma nação literalmente em trevas. Por que nosso meio de campo estava vazio? Por que o técnico não reagia, não pensava numa substituição? E David Luiz jogando numa posição diferente, o “banco” atônito, uma passividade inaceitável.

Aprender com os erros é uma lição maravilhosa. Argumenta-se que nossos "craques" não jogam aqui no Brasil, encontram-se um ano antes em função da Copa e o entrosamento em equipe é complicado. Já os alemães vêm jogando juntos há uns oito anos e prepararam-se técnica e taticamente para ganhar esta Copa do Mundo.

No fatídico jogo de terça-feira passada, era possível ver claramente a falta de esquema tático, além da escalação errada. Todos nos perguntávamos onde Felipão estava com a cabeça. Os alemães partiram para o ataque, limpidamente superiores, encontrando espaço de sobra para os gols. Com o orgulho ferido, hoje vemos os germânicos, aparentemente frios, jogando um futebol caloroso e inteligente, como os nossos craques já jogaram um dia. Em priscas eras...

Foi um mundial digno. Derrubou-se o estigma de que aqui as coisas são feitas ao acaso, na base do famoso “jeitinho” e temia-se pelo fracasso da Copa. Os brasileiros foram receptivos, souberam receber os estrangeiros e, aos nossos olhos, tudo transcorreu como nos demais países que sediaram uma Copa. Nem mais, nem menos. Dentro do padrão Fifa.

Contudo, fica o gosto amargo da derrota, da vergonha, da inferioridade da nossa qualidade técnica e a necessidade de mudanças na confederação dirigente. Aventou-se até mesmo uma “intervenção” no futebol brasileiro, rapidamente repelida pelos cartolas de plantão.

E la nave va...

 

Benquerenças

 

Benquerenças

 

Marisa Bueloni

Quero o sabor da infância, a bolsa de couro, novinha, do antigo primário, com um cheiro que impregnava a alma e os sentidos. Quero uma lancheira com alça de cruzar no peito e um bolo de fubá feito pelas mãos da minha mãe.

Quero de volta a inocência da vida. Aquela que todos perdemos, um dia, quando se descobre a verdade. E aí, não tem mais volta. É preciso dignidade no contato com o assombro, e foi de rasgar a alma, não foi?

Quero ter um dia na semana para ficar letargicamente deitada ao sol. Como um lagarto, espreguiçar-me no espaço solar da minha casa terrena. Que a pátria celestial espere um pouco, pode ser? Tem um montão assim de coisa que eu ainda preciso fazer.

Quero agradecer a Deus pelos amigos que Ele me deu. São muitos, cara. São centenas e centenas. Coisa mais linda. Nunca pensei ter tantos amigos assim. São bons como um pão feito em casa. Cheiram a pêssego maduro, a jasmim. Têm a doçura da cana de Piracicaba. A gente precisa e eles estão lá, prontos para uma palavra, um carinho, uma força.

Quero ver você, pelo amor de Deus! Mostre-me seu rosto, mande uma foto. Precisamos nos conhecer. Esta tal de internet é uma coisa ótima, mas nossa amizade precisa de laços mais consistentes. Qual a cor dos seus olhos? E que perfume você usa? Seu prato preferido? Essas coisas. Dê notícias sempre, não vire sabão.

Quero esperar o inesperado. O segundo sol, a terceira margem, a sétima estrela. Quero ver de perto a beleza. Vou me extasiar à sua chegada e será arrebatador. Espio devagarzinho, fecho um olho, tapo a vista, faço de conta que ela não chegou. E pergunto: posso olhar? Não, ainda não.

     Quero cantar uma canção sob as estrelas e pegar num raio de luar. Depois chorar. Preciso chorar. Meu peito está trespassado de dor, de saudade, de esperança! Vinde,  arauto da paixão. Algo novo rumina dentro da minha alma e não sei o que é. Se soubesse vos diria. Mas não sei.

Quero ganhar, assim, de graça, sem pedir nem insinuar, um buquê de rosas vermelhas, destes que se manda quando se quer muito bem uma pessoa. Rosas vermelhas. Como resistir, meu Deus? E que venha com um cartão indecifrável.

Quero ler um livro onde haja uma história de amor,  esse dono das nossas almas e que canta ao nosso redor. Quero ler até cansar e depois dormir o sono dos séculos. Acordar plena e com o coração batendo a alegria de viver.

Quero a plenitude dos momentos inexatos. Aquele onde tudo falta e, no entanto, tudo preenche. Você não entendeu. E não é para entender mesmo. Não se preocupe.

     Quero que este texto sem pretensão nenhuma leve a cada coração o meu coração. Que a vida pegue leve conosco. Que as dores sejam suportáveis, nada que um Advil não resolva. Nenhuma cirurgia à vista, por favor. Nem para mim, nem para os que me leem neste momento.

Quero dizer o que ainda não disse. O que fica lá, no substrato de todas as coisas. E em algumas delas, resiste, forte e infinito, belo como nunca, algo chamado amor.

 

Ataque do demo

 

Ataquedodemo

Marisa Bueloni

Sofri um ataque do demo. Foi. Deste mesmo que você está pensando. Do capeta. Vade retro! Três dias e três noites sem dormir e sem comer. Tomar banho, tomei. Bem que ouvi um rumor de patas a minha volta, mas julguei fosse o tropel dos cavalos do Apocalipse. Não era. Era o tinhoso em pessoa me atacando pelos flancos. De frente, ele não tem coragem. Covarde das trevas.

Acredite ou não, sofri o ataque. Por um breve descuido do meu Anjo. Deu brecha, o “encardido” entra. Por onde menos se espera. Pérfido, ardiloso, sorrateiro. E faz um estrago geral. Desgraçado! Aparece agora, e espeto teu traseiro com a ponta da minha espada afiada no zelo apostólico! Vem, que te expulso com um cabo de vassoura e meu terço bento, vindo do santuário de Fátima.

Como aconteceu? Ah, foi só começar aquele primeiro parágrafo: “Madre Tereza de Calcutá sentia a escuridão, o frio e o vazio dentro de si....” – e ele atacou. Ele é a treva, o coisa-ruim que faz insinuações, feito a serpente seduzindo Eva: “Olha lá, sua tonta”. Sua tonta... Quem é tonta?  

Valei-me Nossa Senhora das Graças! São Miguel Arcanjo, príncipe da milícia celeste, defendei-me! Meu santo padre Pio de Pietrelcina! Santa Brígida da Suécia, minha protetora e padroeira das viúvas! 

     Bastou invocar o nome de São João da Cruz no texto, para o cão raivoso uivar das profundezas abissais, lá da sua quentura eterna. Disse, me desafiando: “Não vai publicar, não vai.” Respondi: “Pois vamos ver”. Ah, seu devorador de almas! Ainda há Quem vença esta batalha. Existe Alguém acima de ti. 

     Sim, a fera me atacou. Foi ele. Aquele que ruge à nossa volta como um leão. Foi esta criatura tenebrosa que espreita nossas portas, camas e mesas, passa por todos os vãos, sobe no telhado, espia lá de cima, conhece o que fazemos e o que amamos. Por Deus, como não adivinhei de imediato? Caí que nem pata em suas artimanhas. 

     Ah, que eu tenho bem guardado meu vidrinho de água benta, o sal exorcizado, a vela de sete dias, o escapulário marrom, o óleo de São Rafael e a água da fonte de Lourdes. No pescoço, a medalha de São Bento, que só tiro para fazer cirurgia. Mas vem cá, seu miserável duma figa! Vem, se tu és homem, que eu sou uma mulher destemida. É isto que te incomoda? Que um considerável contingente de bonitas e cultas se esforce para imitar as virgens sábias da parábola, e mantenham bem providas de azeite as suas lâmpadas? 

    Vem, que te arrebento as fuças, seu traste imprestável. Estou pronta para te enfrentar com minhas santas armas. Há um exército de anjos acampando em torno da minha casa e não perdes por esperar. Corre daqui, seu sacripanta! Ou faço espumar o teu rabo. Some, ou meto uma bala de prata na tua testa. Vou ficar de tocaia, montar campana e, ao menor sinal de teu rastilho, empunho meu pequenino crucifixo do Senhor no Calvário, bento por frei Haroldo. 

    Lutei, lutei. Santa Tereza d´Avila lutava com o demônio e o santo padre Pio também se esgotava. Consta que a cela do padre amanhecia toda revirada, a cama fora de lugar, os objetos atirados no chão. De noite, no convento, os frades ouviam o barulho de cadeira voando, arremessada contra a parede. “Escuta lá, é Pio lutando”. 

     Ah, combate de glória! Conheci uma mísera parte da árdua peleja, eu que nem santa sou. Sim, o lençol revirado, a noite duríssima. Mas o que é isso, afinal? É minha alma em luta, meu espírito intrépido no combate. Minha Bíblia sempre aberta nos Salmos, sobre a cômoda. Meu terço embaixo do travesseiro. Minha lâmpada cheia de azeite. Meu equilíbrio precário buscando sustentação, mas para cair é um sopro. E o tinhoso soprou, soprou... 

    Só que minha corda não era tão bamba assim. E maior minha fé, meu amor pelas coisas que amo. Imensurável a minha estima pelas pessoas. Todas. Sem exceção de nenhuma. Consegui resistir, seu velhaco traiçoeiro. Aparece, que te espanto com reza brava. Brava de tão boa. Como é que, aí nas Gerais, os mineiros fazem uma reza bem forte? Mostrem para nós onde mora o cálix bento e a hóstia consagrada.  

Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Amen

 

Conseguimos conquistar com braço forte

 

Conseguimosconquistar

Marisa Bueloni

Permita-me, caro leitor, mais uma crônica futebolística, pois o que aconteceu no sábado foi um sonho intenso, um raio vívido. Que de amor e de esperança a terra desceu. E num formoso céu, risonho e límpido, a imagem do Brasil resplandeceu.

     Desde que a Copa começou, minha vocação é escrever sobre ela. E hoje pressinto no coração que o caro leitor poderá vir até aqui, para ler algo a respeito do terrível “mata-mata” cardíaco de sábado passado.

     Sim, aquilo quase nos matou também. Foi uma partida das mais difíceis, uma luta sangrenta de dois gigantes num campo de batalha. Assistindo à árdua peleja, uma multidão verde-amarela torcia e jogava junto com a seleção brasileira.

     Penso eu que os do “contra a Copa” se renderam todos, depois da partida de sábado. É bonito ver raça, garra, espírito bravio e amor àquela camisa que todo jogador brasileiro sonha em vestir um dia. Creio que muitos não agüentaram permanecer diante da tevê, após a prorrogação, quando a decisão seria nos pênaltis. É brincadeira?

     Mas, havia um braço forte de um goleiro chamado Julio César, que já começara a derramar suas lágrimas antes mesmo de tomar posição junto às redes, para enfrentar as cobranças mortais. Emoção? Medo? Insegurança?

     Belchior compôs uma música, cuja letra diz: “Estava mais angustiado / que um goleiro na hora do gol”. Ó, a angústia de tomar um gol! Menor não deve ser o desespero do zagueiro que marca um “gol contra”. Paciência, isso acontece. É próprio de quem defende a bola como um leão, numa destas arenas fantásticas que exigem tática, disciplina, talento, concentração.

     Trata-se de coisa séria, senhores. Uma partida nas oitavas de final, entre Brasil e Chile, é façanha que exige respeito. Silêncio. Vai tocar o Hino Nacional. Eles cantam lá e nós cantamos no nosso sofá, a mão direita sobre o peito. Impávido colosso. Terra adorada. E choramos também.

Ah, que Hino Nacional mais lindo é o nosso! Que orgulho nos dá cantá-lo e ouvir os craques cantarem a todo pulmão, as cordas vocais rezando o amor à pátria.

     Pronto. Apita o árbitro. Não é hora de ficar olhando para as chuteiras douradas e lindas, que irão bater o pênalti com precisão e arte, se preciso for. E assim foi. Noventa minutos de pura tensão, acertos, erros, chutes na trave, a bola no chão, a bola no ar. Ambas as equipes mostrando por que chegaram até ali. E que vença o melhor. Mas, por favor, que vença o Brasil, pois somos duzentos milhões em ação.

     Que ação? Esta que acontece de quatro em quatro anos, de vestir a camiseta verde-amarela e comprá-la também para os nossos pequeninos de um aninho de idade, e ensiná-los a tocar as cornetinhas, a brandir no ar a bandeirinha linda e a falar “gooool”.

     Bem, amigos, que venha a Colômbia! De qualquer forma, já estaríamos livres do canibal Suárez... Que foi bem recebido no Uruguai, cuja seleção manda dizer que há espaço para ele nos vestiários. Mas para de morder, cara. Coisa feia!...

 

Depois da Copa…

 

Depois da Copa

Marisa Bueloni

A Copa começou, a seleção brasileira venceu o primeiro jogo, empatou o segundo e venceu o terceiro. É lider no seu grupo. E  as partidas prosseguem. Seja o que Deus quiser, mas conforme prega o incrível Kajuru, do Canal Esporte Interativo, está tudo "certo e arranjado" para o Brasil. A taça já é nossa e queremos ver para crer.

     É bom lembrar que, após a Copa, haverá a preparação para as Olimpíadas de 2016. É fatal lembrar também das lágrimas de Lula e Pelé, emocionados com a escolha da Cidade Maravilhosa.

     Que me desculpem os apaixonados pela ideia, os entusiastas do fato e os extremamente patriotas, mas faço coro com os que não veem com muito otimismo a escolha do Rio de Janeiro como sede das olimpíadas em 2016.

     Sabemos que há uma visão nada sentimental de empreiteiras e construtoras ávidas em participar de mais este evento. Como será gerido o dinheiro público para os investimentos, para a construção da Vila Olímpica? Sugiro uma conta aberta, na internet, propiciando aos brasileiros com acesso à rede poder ajudar a administrar.

     Fervorosamente, convoco os economistas, os bons contadores e contabilistas, os homens e mulheres inteligentes deste país, com vocação para a honestidade e para o voluntariado, a se comprometerem de corpo e alma com esta causa pátria.

     Um dos principais argumentos favoráveis à realização das olimpíadas é o de que o Brasil passará a fazer parte do chamado “primeiro mundo”. Será? Somente pelo fato de sediar os jogos? Não estaria o Brasil, primeiro, precisando disputar “outras olimpíadas”, como as da saúde, da educação, do transporte, do saneamento básico em localidades que desconhecem o que seja isso?

     A própria Cidade Maravilhosa enfrenta problemas gravíssimos com o tráfico de drogas, os confrontos diários com a polícia nos morros, a insegurança num nível jamais visto. Trata-se de uma cidade que vive sob o signo do medo. Como sede das olimpíadas, seria necessário colocar o Exército nas ruas para garantir a ordem, a paz e a segurança das pessoas. Para a segurança dos atletas, das autoridades, dos jogos e da cidade, propriamente dita.

     Nosso amado país necessita disputar as olimpíadas do crescimento, da justa distribuição de renda, da verdadeira e concreta diminuição da violência e da miséria, conforme prometido pelos líderes do partido que se encontra no poder, nas suas campanhas eleitorais.

     Fugaz e de pouca lembrança será a glória de sediar uma olimpíada se, após a cerimônia de encerramento, quando a força policial deixar as ruas da bela cidade, tudo voltar a ser como antes no quartel de Abrantes. E o povo à mercê das balas perdidas, dos comandos criminosos cujo aparato é superior ao dos policiais, numa guerra sem fim.

     Os discursos pré-olímpicos não nos convenceram. Basta pensar na administração da admirável verba da qual já se falou: algo em torno de 30 bilhões de reais.

     Talvez o dinheiro brote da mesma “fonte” que sustentou as construções das arenas para esta grandiosa Copa. Certamente, haverá mais protestos nas ruas. Ah, brasileiro! Profissão: atleta olímpico. De que modalidade? Esperança.

 

 

Mulher entende de futebol?

 

Mulher entende de futebol

Marisa Bueloni

Bem, amigos da Amen, bom dia, boa tarde ou boa noite. Bem, amigos! Em pleno mundial de 2014, essa Copa do Mundo não desce nem redonda nem quadrada, porque há muita coisa entalada em nossa garganta canarinho.

     Explico que comecei a me interessar por futebol aos oito anos de idade, no Mundial da Suécia. Porque via meu pai grudado no rádio, os olhos cheios de lágrimas. “O senhor tá chorando, pai?”. “É, mas de alegria”. E porque num domingo maravilhoso (a final foi num domingo?), vi meus tios e primos festejarem feito uns loucos, em volta de um rádio ligado. Eles passavam por baixo da mesa, pulavam e se abraçavam.

     Um dos meus primos teve a bondade de me explicar o que estava acontecendo. Voltei correndo para casa: meu pai ria e chorava. “Pai, eu sei o que é tudo isso, o Brasil ficou campeão do mundo, não é?”. Ele me abraçou com uma alegria que poucas vezes vi em seus olhos.

     Desde então gosto de futebol, pois o associei à alegria. Não vejo os jogos para admirar as pernas lindas dos jogadores, e sei que não estão posando para uma foto no momento da barreira. Aprendi muita coisa perguntando ao meu lindo que, pacientemente, ia elucidando minhas dúvidas.

     Na Copa de 1962, que foi no Chile, eu tinha 12 anos, e então Didi, Garrincha e Pelé eram os ídolos de uma nação apaixonada. Em 1966, aos 16 anos, ouvi do diretor da Escola Normal, onde eu estudava para ser professora: “Amem o nosso país. Ele é lindo. As pessoas que foram para a Copa na Inglaterra nos contam que lá é frio, cheio de neblina e tem um ar triste.” A classe queria ouvir mais, porém ele encerrou aí. Afinal, aquele ano fora terrível para a nossa seleção. Mas já éramos as garotas que amavam os Beatles e os Rolling Stones. Rá tá tá tá...

     Veio a Copa de 1970 no México, eu fazia faculdade e lecionava em escola de zona rural. Havia uma explosão de ufanismo no ar. Não sou aquela torcedora brasileira de quatro em quatro anos. Desde menina, torcia pelo glorioso XV de Novembro de Piracicaba, vendo a paixão do meu pai pelo “Nhô Quim”. Nos tempos de namoro, me apaixonei pelo torcedor são-paulino com quem me casei e também pelo time que ele amava.

     Homem sempre acha que mulher não entende de futebol e da regra do impedimento. Nem sempre ela é aplicada com retidão pelo árbitro, que pode se enganar, anular gols legítimos ou marcar impedimento quando há condições legais de jogo.

     Meu lindo dizia que a beleza e a graça do futebol residem nos erros da arbitragem, dando faltas demais, marcando pênaltis duvidosos, expulsando injustamente. Ponham um chip na bola e o futebol perderá a graça. Não pode haver esse detalhamento de falhas, em busca da precisão: é vital para o nobre esporte o desempenho limitado do homem imponente de calção preto, em seu papel técnico e humano, para o bem ou para o mal.

     Finalizo com minha homenagem ao mais notável dos árbitros na história do futebol: Armando Marques. Rigoroso, folclórico e muito respeitado. Eu o vi no Programa do Jô noite destas. O eterno juiz continua lúcido, sagaz e inteligente. Olé!

 

 

A Copa e as críticas

 

A Copa e as Críticas

Marisa Bueloni

Logo mais, estaremos (estaremos?) todos envolvidos pelo espírito esportivo de mais um mundial. A “pátria de chuteiras”, como dizia o saudoso comentarista Armando Nogueira, com o povo torcendo pela nossa seleção.

     Mas, para chegar até aqui, neste pouco efervescente clima de Copa do Mundo, um longo caminho foi percorrido e o povo demonstrou uma sabedoria louvável. Entre protestos e manifestações, ficou claro que nem só de ufanismo nos gramados vive a nossa nação. Palmas para quem compreendeu que ainda temos gritantes injustiças sociais e problemas graves para resolver.

Há muito mais coisas entre o céu e a terra do que samba, praia, mulheres de biquíni, cerveja, cachaça, bola rolando, craques de brincos e cabelos espetados, cartolas comandando o show, e a onipresença de ex-jogadores que, segundo seus pares, seriam poetas se ficassem de boca fechada.

Quem havia dito que “Copa do Mundo não se faz com hospitais e sim com estádios” parece ter refletido melhor. Menos mal. O país carece de cabeças pensantes, de pessoas inteligentes, com luz e conhecimento acerca dos diferentes setores do cenário nacional.

     Mestre Zagallo não deixou por menos e botou a boca no trombone, revelando uma saudável lucidez política. Em anos idos, disse ao povo: “Vocês terão de me engolir”. E se foi humanamente indigesto, salvou-se de qualquer forma, por seus longos anos de serviços prestados ao futebol brasileiro.

Zagallo deu uma entrevista a um jornal carioca e saiu-se com estas palavras que percorrem a internet e incendeiam os “feicebuques” da vida: “As bandeiras não tremulam, apitos, camisetas estão encalhados nas lojas. O Brasil, às vésperas da Copa, não está vibrante em verde e amarelo. O Brasil está vermelho. Vermelho de vergonha. Vermelho de ver tanta corrupção. Vermelho de ver tanta maracutaia, tanta cara-de-pau dos governantes. Estamos vermelhos vendo grande parte de nossos políticos e poderosos sendo calados e comprados pela corrupção. O PT conseguiu tirar o brilho até do que o brasileiro mais gosta... É o vermelho tingindo de corrupção nosso verde e amarelo”.

Talvez o nosso coração esteja mesmo solidário com os milhões de brasileiros que esperam mais deste governo. Saúde, transporte, moradia, educação. Um povo que saiba ler e escrever, fazer as quatro operações, conforme sonhava Darcy Ribeiro.

Mas nem tudo está perdido. Ainda que as arenas não estejam prontas e algo fora de controle possa tirar o brilho da festa, resta-nos o esforço de passar ao mundo uma imagem de país hospitaleiro, sério e competente. Afinal, o evento da Copa tem sua importância, trata-se de uma modalidade esportiva que é a paixão do brasileiro e pode ter uma função social digna. Os campinhos de várzea se multiplicam em cada canto, atraem milhares de meninos que podem ter suas vidas transformadas para sempre.

     Mas, já se fala em recolher os mendigos de algumas capitais e vedar com tapumes os lugares feios, esgotos a céu aberto, obras inacabadas, aquela maquiagem de praxe.

     E la nave va...

 

Pessoa de fé

 

Pessoa de Fe

Marisa Bueloni

Acho que sou uma pessoa de fé, destas que acreditam na vida, nas outras pessoas e mantém acesa a chama da esperança e da caridade. Talvez, quem sabe, alguém meio fora de moda, que ainda reza, em descompasso com este louco mundo onde já não há lugar para o sagrado, para Deus, para a espiritualidade, para a partilha e o perdão.

Nota-se, cada vez mais, a falta de bons valores, de princípios, de honradez, em muitas atitudes onde a lisura e a honestidade deveriam ser leis. A esperteza, sim, é um valor apreciado. Talentoso é quem é esperto, sabe passar a perna nos outros, sabe tirar vantagem de todas as situações e conseguir para si proveitos e regalias.

Não é fácil ser uma pessoa de fé nos dias de hoje. É preciso muito discernimento e espírito crítico, para não se deixar levar pela mídia atordoante dos nossos tempos. Existe à nossa volta um intenso bombardeio, a propaganda insistente, induzindo-nos a consumir mais do que precisamos. Ou que nos faz crer em milagres e prodígios, vindos de lugares estranhos, onde nem sempre está o Senhor.

Temos de aprender a distinguir o que é de Deus e o que não é. Sábio é quem consegue enxergar a diferença entre a luz e as trevas, entre o bem e o mal, podendo ensiná-la aos seus filhos e netos, preservando a moralidade, a decência e a honra. Não podemos fechar os olhos à nossa realidade ou simplesmente “deixar rolar”. Não. É preciso regras, ordem, equilíbrio, limites, ou estaremos apenas acelerando o processo fatal da decadência de uma sociedade permissiva, sem noção do pecado, da falta de amor para com o próximo e para com o Criador.

Ser uma pessoa de fé no mundo de hoje é remar contra a maré, tamanha a força da correnteza que nos puxa para trás. Mas nós somos criaturas do dia, permanecemos no Senhor e buscamos as coisas do Alto. Não nos preocupamos com as riquezas, com o luxo e os prazeres terrenos, pois nosso pensamento está em Deus.

Às vezes, nos sentimos como um peixe fora d´água. Já não pertencemos a este mundo e as coisas passageiras não conseguem nos atrair, pois desejamos “as que não passam”, as belezas prometidas por toda a eternidade no Reino dos Céus. Nossa fé só faz aumentar, mesmo se estivermos vivendo dias de dor, de luta e de sofrimento; ainda que nosso coração pequenino se parta em mil pedaços e as lágrimas sulquem nossa face, cujos olhos jamais perderão a esperança de ver os novos céus e uma nova terra.

E assim, com o espírito cheio de fé, prosseguimos, carregando nossa cruz diária, pisando serenamente sobre as pegadas sempre árduas d´Aquele que deu Sua vida por nós na cruz. Se alguém conhece outro caminho, que o diga. Se existe uma via diferente, cujo destino final seja as promessas do Reino, que nos anuncie.

Resistimos. Confiantes no rumo que escolhemos trilhar. Somos o povo santo e pecador, Israel eleito de Deus. Obedecemos as Suas santas leis e cremos no poder da Palavra, lida com o coração em chamas. Conheço muitas pessoas de fé, fervorosas, belas, iluminadas, e aqui deixo o meu abraço, em união espiritual.

 

Vasto mundo

 

Vasto mndo

Marisa Bueloni

Estamos presenciando uma era absurdamente fantástica. O evento da Internet está aí, para que a humanidade se extasie diante de uma prodigiosa tecnologia. Este pode ser considerado um tempo de grandes transformações para as diferentes sociedades no mundo inteiro. A velocidade dos meios de comunicação de hoje constitui um fenômeno à parte e conquista para o homem um honroso lugar na sua história.

Talvez, em nenhuma outra época, assistiu-se a tão brilhante desenvolvimento da ciência e dos avanços tecnológicos, nas mais diversas áreas do conhecimento. Este início de século nos mostra, a cada momento, o que é espetacular e o que é puro assombro.

Naves viajam pelo espaço, tiram fotos de planetas distantes, buscando descobrir a origem do vasto universo que se recria ao infinito. Se o homem desta era soubesse agradecer a Deus pela própria inteligência e capacidade de pensar, projetar e realizar!

O destino do homem na face da Terra é algo que sempre inquietou e fez sonhar... Apesar das guerras, do sofrimento dos sem pátria, dos que perderam os seus lares e esmolam pelas estradas da fome e da desesperança, apesar de tudo, o coração humano não se acanha em contemplar o horizonte de um novo tempo. Ele virá?

Contudo, nós sabemos, a grande mudança deve começar pelo coração do homem. É preciso mudar o homem primeiro, para depois mudar a face da Terra. Que mundo novo será esse onde já não haverá lugar para o ódio, a cobiça ou o egoísmo, nem o desenfreado desejo de enriquecimento, nem injustiças, um mundo em que todos possuam um espírito renovado, transbordante de amor e de bondade?

“E o leão comerá palha com o boi”, diz o profeta Isaías. Porque a Terra estará cheia da ciência de Deus. Eu quero ver isso. Quero brincar com um tigre, correr com um búfalo, abraçar um urso polar, nadar com as baleias, voar com as águias e condores. E cantar com as aves canoras.

Em toda parte sinto o frêmito destas maravilhas anunciadas. Este vasto mundo me causa muitos arrepios. Espero um tempo em que o homem se desapegará das coisas terrenas, para entregar-se aos apelos de sua consciência em favor de um mundo mais justo e mais humano.

Então, sim, que transformação! Que Terra nova teremos, que mundo vasto e belo será, quando cada criatura compreender o significado do amor, da paz, da justiça, do respeito ao próximo! Novos céus cobrirão nossas cabeças,  quando todos se puserem de joelhos, humildes, dando graças e louvores pelos dons da vida. Será uma vida de abundância espiritual e terrena, cada um manterá consigo a marca do sopro divino. Nenhum cientista ou líder político ousará manipular os códigos secretos de Deus.

O mundo vasto, a Terra vasta! Morada digna, rios limpos, ares despoluídos, fontes cristalinas, pastagens verdejantes. Não nos molestará o sol durante o dia, nem a lua durante a noite. E nada permitirá que nossos pés vacilem. Porque não dorme nem cochila Quem guarda Israel.

Um Paraíso, uma nova cidade, uma nova consciência, um novo povo. É sonhar muito?

 

 

Amorosa consciência

 

Amorosa consciência

Marisa Bueloni

Costumo cultivar uma tese relevante: a de que as coisas não devem ser tão facilmente descartadas. Muitas pessoas se cansam logo do que possuem e se atiram, irrefletidamente, à troca de tudo o que é passível de substituição. Fazem decoração nova na casa a cada ano, renovam também o guarda-roupa, compram e consomem de forma quase irracional, pondo de lado objetos e peças em perfeito estado de uso. Talvez por modismo, ou por pura veleidade.

Hoje, a ordem é reciclar e aproveitar tudo o que pode ser reutilizado. Vivemos tempos críticos, onde a questão do aquecimento global tem inspirado alguns líderes políticos na cruzada em defesa do planeta. O consumo desmedido e irresponsável deverá ser repensado, pois ele tem sua parcela na contribuição ao aquecimento. Será necessária uma revisão dos nossos hábitos e estilos de vida, da cultura da abundância e do desperdício, por meio da conscientização de que devemos extrair da Terra o suficiente para a nossa sobrevivência.

Vemos em toda parte uma brutal incitação ao consumo. Todos nós precisamos adquirir o necessário para o bem estar do dia-a-dia, consumindo o que está ao nosso alcance. Contudo, a febre de comprar pode se transformar numa armadilha perigosa. Os desavisados caem fácil nesta rede sutil, sem considerar muito bem a razão de se gastar uma pequena fortuna em algo dispensável. Quanta coisa inútil se compra no apelo de um impulso e logo depois descartada. Se ao menos as pessoas se lembrassem de doar, de repartir com quem nada tem.

Diz um leitor que, nos dias de hoje, até mesmo os casamentos são “descartáveis”, as uniões acabam em pouco tempo. E por que isso está ocorrendo em escala assustadora? Mudou o casamento ou mudaram as pessoas? Minha mãe dizia que, para casar, uma pessoa precisa ter uma virtude primordial: a paciência. Paciência para a vida a dois, paciência para criar os filhos.

Os pais de hoje, embora se esforcem, devem estar inseguros e confusos no quesito “educação”. E quando os jovens cometem toda sorte de delitos, culpam-se os pais. Na tevê, o pai de família reage assustadíssimo, atônito, ao saber que o filho participou de um roubo, de um crime.

A sociedade está vivendo um momento de grande desequilíbrio, os valores estão se invertendo de uma forma cruel. A crônica policial da vida é extensa e os casos são aterradores. O que haverá por trás de cada um deles? Certamente, falta de amor, falta de Deus.

Ninguém mata, se tem Deus no coração. Ninguém manda matar, se ama e se é amado, se conheceu um dia a grandeza do amor e da proteção. Cresce feliz e saudável aquele que abraçou e foi abraçado, ainda que seja na pobreza ou na posse de poucos bens.

É feliz a família cujos membros se respeitam, onde os filhos podem contar com pais que os ouvem. Grandiosa é a bênção da paz e da harmonia no lar, quando se reconhece a autoridade paterna. Quão importante é a confiança, o colo da mãe, o ombro do pai, a força do relacionamento franco, equilibrado e amoroso. É esta disponibilidade, esta aproximação de afetos que fazem bater mais forte o coração da vida.

 

 

O bom combate

 

O bom combate

Marisa Bueloni

A vida é um poema. E não fui eu que inventei isso. Vejo em toda parte uma poesia que se exibe e se expõe. O mapa da noite é um só e desenha mais que continentes e litorais. A luz do dia maravilhoso me permite ver ainda melhor. Vejo poesia nos objetos que toco pela casa, no guardanapo que enxuga a louça, nas roupas que visto, no teclado do meu computador.

Trata-se de uma poesia que permeia cada passo e cada momento, deixando gravada suas digitais no zelo com que se reconstitui a vida, em sua exata definição.

Não sei definir a vida, claro, e tampouco ousaria. Contudo, a cada instante, um novo sopro vital infla-me o peito e sinto um inenarrável amor pelo que me cerca, um vivo interesse por todas as coisas criadas, cada qual cumprindo sua função no universo.

Ah, o arqueológico trabalho de escavar lembranças, buscando suas origens e razões. Nossa alma, entre gratificada e atônita, recorre ao expediente da saudade, num súbito instinto de autopreservação. Nada escapa ao trágico e belo olho da memória.

Eis que este senso primoroso faz de nós especialistas em nós mesmos. Está tudo na palma da mão, tudo aquilo que é espelho da nossa própria imagem. Narciso atualmente construído por meio de “selfies” e demais recursos que incensam e endeusam as faces em movimento.

Há força e fragilidade em todos nós. Eis o poema em toda a sua glória e plenitude. Literário ou não, ele repousa entre a luta pelo pão de cada dia e a riqueza dos que constroem Dubai, sobrevivendo à crise, no luxo do Burj Al Arab.

Na contramão do previsível, há um poema pequenino, que mais se esconde do que se mostra, porque prefere o apagamento, o anonimato e a solidão. Na nudez de toda intimidade, há o reconhecimento de nossa ambivalência e de uma latente inclinação para extremos. Então, todo cuidado é pouco.

Sidarta descobriu o chamado “Caminho do Meio”. Mais ou menos assim: “Se esticar demais, a corda arrebenta; se ficar frouxa, não produz som”. Desta premissa, nasceu a sabedoria do necessário equilíbrio, a mesma harmonia cósmica que rege todas as coisas, todos os planetas em suas respectivas órbitas, denso mistério para as criaturas humanas.

São tantos os prodígios de hoje. Os dedos digitam números e por eles uma voz é ouvida. Sonoro poema, lírico fonema. Quilômetros são vencidos em paz, ao toque de um teclado silencioso. Quero enumerar algumas doçuras essenciais: a textura do lençol que se acabou de trocar; o canto estridente da cigarra (elas sumiram?) anunciando o verão; um canteiro onde se plantou amor além de flores; a música de um rádio ligado; o lápis e a borracha; a bênção de um copo de água; a caixa de fósforos e uma vela acesa com fé.

Esta fé que faz da crônica semanal um poema de amor e de esperança. Escrever é vocação irreprimível e pedimos todas as licenças poéticas de plantão, para levarmos adiante este canto que não cessa. Nada pode cooptar a força do alfabeto sem que este o permita. E que toda a palavra nos conduza ao bom combate.

 

Em busca do tempo perdido

 

Marisa Bueloni

 “Tempo Rei, Oh Tempo Rei, Oh Tempo Rei/ Transformai as velhas formas do viver/ Ensinai-me, ó Pai, o que eu ainda não sei/ Mãe Senhora do Perpétuo socorrei” (Gilberto Gil).

Saber administrar o tempo – eis algo que nos interessa – nesta era de modernidade, em que julgamos ter os mais sofisticados aparelhos eletrônicos à nossa disposição, exatamente para que nos sobre mais tempo.

É inacreditável a quantidade de novos apetrechos e utensílios de cozinha que surgem a cada dia. Para que se poupe tempo. Nos canais que vendem de tudo na tevê, aparecem parafernálias complicadíssimas que só mesmo alguém absolutamente fascinado por novidades se dará ao luxo de comprar.

Que tempo nos sobrará, se depois de utilizarmos o aparelho infernal, temos de ficar um tempão desmontando aquele trem todo, separando lâminas que cortam de mil e uma maneiras, desenroscando aqui, desatarraxando ali, para finalmente poder lavar tudo e deixar secar? Se tiver de enxugar pecinha por pecinha, a gente acaba perdendo o jogo do São Paulo. 

Às vezes, penso que, só no tempo que leva para montar,  e depois desmontar, uma geringonça destas que descasca batatas, pica cebolas, tritura coco, mói café em grão, o diabo a quatro, eu já fiz um almoço inteiro. Conheço uma pessoa que sonhava com um juicer. E só o usou uma vez na vida. Desistiu. Depois de pronto o suco, havia seis peças para lavar. A polpa e as cascas da fruta ficam numa parte interna da máquina. Tem de retirar e lavar logo após o uso. Se deixar para o dia seguinte, aqueles resíduos grudam e só saem com maçarico.

Nesta irracional busca pela facilidade, rapidez e economia, às vezes, acabamos sendo enganados quando pensamos que nos sobrará “mais tempo”, se adquirirmos algo que só falta falar. Na verdade, já começamos perdendo um tempão para aprender a lidar com as coisas de última geração. Estou me lembrando de um escritor que, desesperado e se descabelando diante do computador novo e travado, atirou-o em fúria pela janela do apartamento. E voltou à velha Olivetti companheira de tantos anos...

O tecnocrata desta era trepidante, que inventou tudo para que todos descansem muito,  este homem está sem tempo. Para ir ao dentista, cortar o cabelo, brincar com os filhos, ir à missa, sem falar na promessa de viajar num final de semana com a família.  Não tem tempo de ler, de se divertir, de parar para ouvir quem lhe dirige a palavra. Não sabe mais rezar, nem sonhar. Não tem tempo. Nem para um sorriso. Nem para um chamego, mulher-que-me-toma-o-tempo.

E o que faz o homem-relógio quando vê que tem alguns minutos preciosos para si mesmo? Talvez tire os sapatos e dê uma volta no quarteirão, como sugeriu Borges, pisando nas folhas secas, andando no gramado da pracinha, colhendo uma flor caída no chão, parando para acarinhar um gatinho na rua? Sim, porque sua alma estará sedenta disso.    

O homem que não tira o relógio não sabe mais para onde ir. Perdeu a noção do tempo. Vive para trabalhar e o trabalho é uma obrigação constante, tirana e egoísta.  Quando pode desfrutar algumas horas livres, entra em pânico e não sabe o que fazer com elas. Liga para seu analista, mas ele viajou. Os terapeutas sabem da necessidade de respirar novos ares e ampliar horizontes.

Mas, afinal, nosso super-herói não está cercado de um monte de coisas criadas para que ele tenha mais tempo? Para que possa contemplar um pouco o cenário da varanda envidraçada, no alto da sua torre inteligente, embora lá embaixo a fila de carros conduza uma multidão de outros personagens tão ansiosos e obcecados quanto ele com a questão do tempo. Ah, a delícia de chegar em casa...O banho quente, o pijama, o lanchinho, a tevê, a internet. Fala sério.

Hoje, as sugestões para que todos relaxem e se divirtam são tão dispendiosas e estressantes, que há quem desista da viagem, pelo simples cansaço de planejá-la. Já vi gente que, ao cumprir roteiros e programas turísticos, voltou do passeio mais cansado do que quando partiu... E precisou de muitas horas de sono para se recuperar.

Enfim, ninguém se iluda julgando que, adquirindo o máximo dos máximos, agora sim, vai ter tempo. Não vai, se não tiver a sabedoria necessária para isso. Nem que se compre o aspirador que anda sozinho pela casa. E a máquina que lava, seca e passa toda a roupa num tapa. Isso não existe. A poeira no móvel vai estar lá todo dia. Ainda não inventaram um robô que tira o lixo. E se não calcar o ferro, o jeans fica todo enrugado. Até nas novelas da Globo as empregadas continuam passando roupa.

Costuma-se dizer que, se você precisa delegar uma tarefa a alguém, entregue-a a quem não tem tempo; somente esta pessoa poderá executá-la. Os que nada fazem na vida, certamente, a recusarão. Por absoluta falta de tempo...

 

Esperança

 

Marisa Bueloni

Era uma vez a vida. Linda, linda. Feita de beleza e força. De afeto e de ternura. Mas também de sofrimento, lágrimas e dores. Como a vida costuma ser. Contudo, em meio aos amores impossíveis, às despedidas para sempre, às limitações contra as quais lutamos, ao desalento e à desolação, vemos algo que não teria nome, se não trouxéssemos tal riqueza dentro do coração.

O que seria de todos nós, sem a esperança? Eu já vou avisando: seria a primeira a desistir. A esperança acende o sonho em nosso peito. E não existe nada mais belo que sonhar. Fala sério. Lua cheia, céu estrelado, o vento noturno sussurrando nos ouvidos de uma princesa. Ela pega o caderno guardado a sete chaves e começa a escrever. Eu a imagino na torre, perdida de amor.

O luar que tinge a alta muralha tem algo de mais profundo a lhe dizer. Mas ela se recusa a escutar. Não aguenta ouvir seu próprio coração. Nele há uma sentença da qual ela quer fugir. Por medo. Por recato. Por respeito. A coragem lhe acena, de longe. Esta princesa tem princípios. E é o seu jeito de se comportar diante da vida.

Ah, que princesa prudente. Seu castelo é sua alma, sua mais fina agonia. Seu reino, um cantinho memorável construído dentro de si, nas mais árduas e dignas batalhas. Ela mesma se pergunta se haverá salvação. Se houve entendimento, alguma vez.

Princesa da história errada, eu torço por você! Pela sua dignidade, pela integridade dos seus sentimentos, pela altivez da sua decisão. Pode contar comigo. Estou lendo sua saga heroica e sei que ainda vou me comover muito mais.

Mas agora quero mudar de assunto. Era uma vez a doçura. Ah, que doçura, o tempo em que os homens faziam uma reverência às senhoras, erguendo levemente o chapéu. Não faz tanto tempo assim, faz? Eu vi isso tudo. Para quem não sabe, houve um tempo em que alguém roubava uma rosa de um jardim. Entardecia. As moças e moços com seus uniformes indo para o curso noturno. As meninas usavam meias soquetes brancas e sapatos pretos. Saias pregueadas, abaixo do joelho.

Deus Pai misericordioso, onde estão estas maravilhas todas? Onde estão os prodígios que sentíamos lá no fundo da alma, quase impossíveis de tocar? Será mesmo, como diz um amigo querido e irmão de armas, que o tempo é esse “roedor silencioso de todas as coisas”?

Houve um tempo em que a lua surgia no céu!... As figuras que povoaram a nossa infância gentil. Eu era menina e um homem muito estranho morava perto da minha casa. Eu morria de medo. Minha mãe dizia: “Não olhe para ele”. O tempo leva embora tudo isso, os assobios, os homens de chapéu, as rosas nos jardins, os uniformes, e até mesmo a lua cheia.

As lembranças da infância dão lugar às saudades da juventude. O corpo era uma glória feita da mais imortal carne, a vida nunca acabaria, o futuro estava ali mesmo, bem pertinho, e nós ríamos a bandeiras despregadas, embriagados de sonho, esperança e felicidade.

Era uma vez, havia toda a beleza à nossa volta. Hoje, no presente, ela é feita de passado. Falo de uma beleza atemporal, romântica e ascética. Algo semelhante à noite passada em claro, nas profundezas da dor existencial. A dureza de pedra no peito, as referências do desconhecido, e uma fome eterna. A limpidez dos sentidos.

Eu vi uma beleza destas. Você vai argumentar que isso nada tem de belo. Pode ser. Mas é destas trevas densas e superiores que nasce o esplendor. Primeiro, a noite escura da alma, a passagem secreta, a madrugada sem fim. Depois, a volta à normalidade, à rotina de comer, tomar banho, dormir, pensar, sentir, amar. Esta beleza que não tem preço. 

A beleza da cura. A beleza de sarar, esperando que o corpo corresponda. Acho lindo quem, no auge da esperança, espera. Creem que existem outras oportunidades, escondidas atrás da porta, debaixo da cama, no fundo do armário, dentro do carro. Enquanto dirigem, esperam. Esperam e rezam. Sabem tudo da esperança, esta matéria prima e alma gêmea do sonho.

Eu também, confesso, espero. E sofro as “demoras de Deus”. Mas digo sempre cá com meus pobres botões: Ele é quem sabe. Eu não sei nada e não ouso dizer um milímetro a mais. E como é bom esperar, Senhor! Não existe nada mais belo e revelador. Que cais maravilhoso é este em que nos postamos, à espera...

 

No meu canto

 

Marisa Bueloni

Vai chegando uma altura da vida em que muitos de nós fazemos uma opção voluntária pelo enclausuramento. É quando nos envolvemos num casulo de meditação e de paz. Tenho um amigo que já se enfiou nesta “caverna”, neste útero ancestral, e de lá não sai por nada.

A obsessão de viver quietinha no meu canto é o mel da minha vida. Silêncio e paz. Apaixonei-me por ela de todo o meu coração e rumino cá com meus botões que só serei completamente feliz (como se isso fosse possível...), quando tiver construído minha casinha mil vezes desenhada, vivendo como os passarinhos, lendo, escrevendo, meditando.

A construção deste canto pequenino me faz sonhar. Eu mesma desenhei a planta. Tudo simples como um lápis. De exótico, apenas uma fonte nos fundos do pátio interno, com uma cabeça de leão projetando-se da parede. A água cai por ali, filtra-se em canteiros de seixos redondos, ladeados por pinheiros de ares altivos e neoclássicos. Só.

Planejo ficar no meu canto, só espiando a vida passar. Tenho idade e autoridade para isso. Se bobear, compro até uma cadeira de balanço. Só não sei fazer tricô. Nem crochê. Prefiro ler. E decifrar o olho azul da ave  num rasante na varanda, dar boa noite às estrelas e bom dia ao sol.

 Um outro amigo me revela que entrou nessa fase. Não discute mais porque o arroz grudou nem porque a torneira  está aberta. Todas estas reflexões tomam de assalto meu espírito, quando encontro gente igual à gente, que também não quer mais estar “em reuniões onde desfilam egos inflados”. Deixar de lado os “projetos megalomaníacos” e fugir do que nos parece a proposta do absurdo. Nada de assembléias ordinárias, nem extraordinárias.

Espero que não seja tarde demais. Que o tempo tenha reservado uma parcela generosa de horas para nós todos que buscamos o mérito da paz e do aconchego. Seja feita a janela onde debruçar o sonho, para espiar um céu noturno salpicado de astros. E ter o instinto natural de seguir a “nossa estrela”, porque a encontramos para sempre. Se não pudermos ir atrás dela com os pés, que seja então com a alma em chamas.

Bem, possa esta clausura voluntária nos fazer crescer em sabedoria e graça. A nós, que já passamos dos 12 anos e não estamos perdidos no Templo. Seja este berço primevo e último a nossa casa definitiva, a concha onde nos refugiamos para nos conhecer a nós mesmos, na busca de uma identidade que se fragmenta a cada dia.

Quem sou eu? Quero descobrir enquanto é tempo. E me encontrar, toda vez que for possível. Juntar de mim as partes inteiras e amalgamar o meu retrato verdadeiro.

Deverá ser auspiciosa esta “caverna” projetada para intensificar o autoconhecimento, o mergulho na alma, à procura da mais profunda essência do ser. Possível gruta ancestral, onde nos reconhecemos, finalmente, primitivos e atuais. Os amigos sólidos já moram no nosso coração. Assim, no rarefeito encontro com o outro, fitá-lo a uma distância salutar, mas com os olhos atentos da solidariedade e do amor.

 

Se o céu desabar...

 

Se o céu desabar

Marisa Bueloni

Se o céu desabar, não haverá como sair de baixo. Feliz de quem construiu seu próprio refúgio dentro do coração. É coisa espiritual, que não se compra com dinheiro do mundo. Não é coisa física, tipo uma construção segura, senhores.

Se o céu se abrir, direi que ainda estou nocauteada de sonho. Mas também indignada. As coisas dão uma volta muito longa para chegar aonde desejam. Dona Vida é cheia de nove horas, reparou? Ela se adianta, se atrasa, chega bem no meio da festa.

Às vezes, sai de fininho. Ninguém pode abrir a boca. Resta um caixão tristíssimo, flores de um perfume estranho, uma cova na terra, a conta maior que tiveste em vida. É de bom tamanho, nem largo nem fundo. É a parte que te cabe neste latifúndio.

Saudosista, dou drible em Dona Vida e volto ao passado. Ele lembra que dançamos três músicas seguidas. Eu me lembro que gostava de dançar, de valsar, de viver muitas vidas. Aos 15 anos, pode ser diferente?

Os homens gostam de fazer a corte às mulheres. Clarice Lispector eternizou a abordagem masculina num texto onde ela conta do homem da fronteira, que a convidou para um “passeíto”. Hummm... A escritora, como sempre, espertíssima. Clarice romantizou o evento numa crônica soberba e respondeu: “Eu, hein?”.

A vida é sonho, a vida é parte do que planejamos. Mas nem sempre acontece como se deseja.  E há o avesso de tudo, o lado que poucos se interessam em conhecer.

Na vertigem da vida, quero a voragem do que não acontece. Do sonho não realizado. Da sorte que nunca tivemos. Do concurso que não ganhamos. Do encontro jamais tido. Do beijo não dado. Dá para entender? É como digo: melhor o mistério eterno que a revelação absoluta.

As coisas da Terra, às vezes, são um tanto sombrias. Devem ser mais belas e mais alegres as do Céu. Buscai as coisas do Alto. É para as alturas que dirijo meu olhar solene, à espera de solenidades.

Neste outono da vida, encanta-me o frêmito das folhas secas. E a inaudível música do tempo. Acordo do sono dos séculos. Abraça-me a força de que todos nós precisamos para ir em frente. Ainda se o céu desabar.

Aposto sempre na esperança e evito os presságios. Pego o atalho mais curto que leva à solidez, à prudência e a um pouco de juízo. Só o necessário.

Minha irmã mais velha é sábia e repete sempre este ditado: “Você é escravo da sua palavra e senhor do seu silêncio”. Quero ser a senhora de mim mesma, enquanto viver. E que Deus nos conceda a lucidez necessária.

Contemplo as frutas verdes e a floração de algumas coisas imperecíveis. Maturação, parto, sonho. Adivinho um inquietante fragor de astros despertando. O rumor das folhagens ao vento, o coração da Terra pulsando. O Sol se movendo entre as palavras. Perdida de amor, pergunto: Deus, por que fizestes tudo isso, assim, sem ao menos nos avisar?

Uma vez, quando a manhã se abria, me fechei. Foi a pior coisa que fiz na minha vida. O coração não pode se fechar. Nunca. Nem um dia sequer. Não é verdade, meu anjo?

 

Eis os tempos?

 

Eis os tempos

Marisa Bueloni

Há algum tempo, venho lendo matérias proféticas. Sempre com o devido discernimento e na certeza de que estejam de acordo com a doutrina da fé que professo.

     É certo que avançamos de uma forma irreversível, em vários campos do conhecimento, do pensamento e, sobretudo, no âmbito da tecnologia, onde ocorre o que existe de mais moderno e espantoso.

     A tevê e a internet são os dois grandes veículos de comunicação da atualidade. As notícias chegam instantâneas, segundos depois de ocorridos os fatos. É a chamada “instantaneidade da informação”. As imagens das crianças vítimas de armas químicas na Síria; os terrores das chacinas; os tumultos das passeatas; a não condenação do deputado já condenado...

     Ficamos ali, diante do nosso monitor, pensando o mundo. E as notícias de morte chegam sem parar. Aqui em Piracicaba, uma mulher tão jovem foi morta por adolescentes que portavam uma arma. Dizem que ela teria reagido, tentado sair com o carro, quando abordada. E quem não reagiria de forma parecida?

     Não é fácil entregar tudo o que se conseguiu com o suor do trabalho, da luta, das conquistas diárias que cada um empreendeu e sabe o valor que possui. Sobretudo, quando se trata de um bem de estimação. Não é fácil entregar a carteira, o relógio, uma pulseirinha de ouro, o anel, o carro...

     A lição número um diante de um assalto é: não reaja. Contudo, reagir parece ser o primeiro impulso de quem é assaltado, na tentativa de não permitir que levem o que se ama tanto, o que se adquiriu com muito esforço e empenho!

     E ao reagir, paga-se com a vida. Os criminosos atiram sem piedade. Seja próximo de um hotel de luxo europeu, numa praia com muitos turistas, num farol em São Paulo, na rua de um bairro tranqüilo em Piracicaba.

     A violência está em toda parte e atingiu um nível insuportável. Temos de ficar atentos, olhar para os lados antes de entrar e sair do nosso amado carrinho, todos os dias. Deixar nossa residência, com todo cuidado. Quem tem o privilégio de morar em condomínio fechado sente-se um pouco mais seguro.

     Contudo, não se passa o dia todo dentro de casa. As pessoas precisam sair, têm compromissos a cumprir, compras a fazer e estão expostas, nas ruas, entrando e saindo de estabelecimentos comerciais, bancários, residenciais, podendo ser abordadas a qualquer momento.

     Diante da tela do computador, o assombro é fatal. O que dizem os textos proféticos a respeito deste nosso temido tempo? Que um cidadão de bem teria de portar uma arma para sair à rua e fazer valer o seu direito; que o poder civil seria abolido e imperaria a violência, o caos, o medo; um tempo em que os pais devem ir pessoalmente buscar seus filhos pequenos na escola.

     Não sabemos se as palavras proféticas carregam um peso confiável. Porém, não se pode negar a mudança brutal em nossa sociedade num espaço de algumas décadas. Um aumento colossal da violência, da corrupção, do crime organizado. As pessoas se sentem acuadas, cada vez mais prisioneiras em suas próprias casas.

     E a impunidade corre solta em nosso país. Até quando?

 

 

A vida é feita de escolhas

 

Avida e feita de escolhas

Marisa Bueloni

Parece que o título acima constitui a frase campeã do facebook, em todas as suas formas e estilos. A frase vem enfeitada de fotos apaixonantes e emblemáticas. Sim, a vida é feita de escolhas. Feliz de quem acreditar nisso e apostar toda a sua energia nesta verdade fundamental.

     Temos muitos caminhos à nossa frente, basta escolher. Há uma música do “Rei”, que diz “se o bem o mal existem/ você pode escolher/ é preciso saber viver”. De fato, pode-se escolher entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre a luz e as trevas. E buscar a sabedoria que o universo nos oferece, em todo momento.

     Temos, dentro da nossa alma, um intrínseco conhecimento do que é correto e do que não é. Embora se afirme hoje, exaustivamente, que já não se consegue distinguir o certo do errado, pois estamos sob um bombardeio de falsos valores, a verdade é que sempre reconheceremos o bem em toda e qualquer circunstância e em sua inquestionável magnitude.

     Se a vida é feita de escolhas, a palavra-chave é “decisão”. Tomar decisões exige reflexão, raciocínio, um espírito seletivo e determinado. Se alguém deseja algo na vida, tem de lutar por isso e tomar atitudes que caminhem neste sentido.

     Esta é a luta mais bela, porque é a luta da vida. Lutar por um ideal, por uma profissão que se pretende exercer com zelo, esperando dar sua contribuição como cidadão do mundo, como pessoa humana interessada no bem e na paz, na transformação de uma sociedade que pode ser mais humana e mais justa.

      Um olhar mais atento e veremos a necessidade de mudanças profundas. Muitas mudanças precisam começar dentro de nós mesmos. Se eu mudo, o mundo muda. Analisar um problema de forma isenta e não passional, ajuda a interpretar com mais lucidez e mais inteligência.      

A grande questão que se coloca é a escolha pessoal. O rumo de nossas vidas, o que pensamos e como agimos diante dos impasses. Aprendemos com nossos erros, claro, e preferimos não repeti-los. Cada um tirou sua dolorosa lição de um passo errado, de uma atitude impensada ou de  uma escolha mal feita.

      Esta é a eterna temática da vida: as nossas escolhas, as nossas decisões. Ir ou ficar. Lutar ou jogar a toalha. Casar ou comprar uma bicicleta... O repórter perguntou ao vencedor qual o segredo da vitória e o maratonista respondeu: "Enquanto outros desistiram, eu continuei e acreditei em mim".

      Ao lado da frase campeã "a vida é feita de escolhas", há uma outra que é "nunca desista dos seus sonhos". Então, aí está um binômio perfeito, pedagogia para o início de uma longa jornada. Tal como se diz no ditado chinês: "Uma caminhada de mil passos começa com o primeiro".

      Decisão. Escolha. Não desistir dos sonhos. Pensar alto, pensar grande, mas com a consciência dos limites, da capacidade própria, do que é realizável e não apenas tolas quimeras.

       Que ninguém se esqueça de colocar nesta empreitada maravilhosa algo que nos faz sempre vencedores: o nosso coração.

 

 

Luz para o mundo

 

Luz para o mundo

Marisa Bueloni

Quando é que um texto se torna luz para o mundo? Quando ele provoca, de alguma forma, uma revolução formidável na vida das pessoas? Quando ele causa uma iluminação interior? Quando ajuda alguém a pensar em coisas como justiça, cidadania, direitos? Quando ele faz um ateu acreditar em Deus? Quando mata a fome de beleza? Quando , afinal, um texto se torna luz para o mundo?

Fui assistir a uma missa na capela do Carmelo, aqui em Piracicaba. Vi uma freira carmelita, majestosamente paramentada com o hábito marrom e branco. Igual a Santa Tereza d´Avila. Uma verdadeira aparição. Não resisti, aproximei-me dela e disse: "Vestida assim, a senhora é luz para o mundo". Ela me respondeu: "Reze por mim".

Uma banca de frutas é luz para o mundo? Sacos de arroz e feijão, ovos, verduras e carne, é luz para o mundo? Ó, a fome dos lugares miseráveis, em guerras civis, as mães e as crianças esquálidas da Somália. As meninas entre 9 e 13 anos que têm o clitóris extirpado a facas e agulhas. Os doentes em “hospitais” psiquiátricos, acorrentados aos pés das suas “camas”. Alguém consegue ir até a Somália, com a coragem de ser luz para o mundo?

Há muita fome e miséria em muitos  países, nós sabemos. Não é preciso que ninguém vá à África, para ir ao encontro da barbárie, da crueldade e da falta de amor. Temo pelos pequeninos do Reino. Rezo pelos humilhados e sem dignidade. Aqui, no recanto da minha casa, o que mais faço é rezar. Rezo pelos suicidas. Alguém me disse: “Não se reza pelos suicidas”. E a misericórdia divina? Somente Deus sonda os corações. A misericórdia divina é luz para o mundo.

Um poema pode ser luz para o mundo. A poesia carrega o germe da emoção e palavras são como bênçãos. Se a poesia não trouxer o alívio esperado, ao menos soprará em nosso ouvido um fonema qualquer, se lida em voz alta. E teremos louvado a Deus pela graça da audição. Ou da visão. Nossos cinco sentidos – e todos os outros – são luz para o mundo.

Frei Betto conta que, certa vez, com seu carro parado num farol, aproximou-se dele um menino de rua, pedindo dinheiro. Frei Betto deu. Dali a pouco, outro menino chegou e o frei foi logo se desculpando por não ter mais nenhum trocadinho. O garoto disse: “Não, não precisa me dar nada. Só quero que o senhor passe a mão na minha cabeça também”. Ai, a fome de amor!... Ela ainda vai trazer luz para o mundo!

Os que cozinham a sopa para os pobres e a distribuem nas noites frias; os que ajudam a derrubar ditaduras; os que não têm medo de perder a própria vida, porque acreditam na alma; os que consomem seus corações e ideais na prática da coragem e da ousadia; os que se doam, anônimos e felizes – estes, certamente, são luzes para o mundo!

Os pacificadores e os laboriosos; os que respeitam o próximo e são delicados em seus gestos e atitudes; os que arregaçam as mangas e os que repetem mil vezes a mesmíssima tarefa diária, porque, perseverantes, acreditam no milagre do sonho - estes possuem no peito a chama que é luz para o mundo!

Como se faz para manter acesa a centelha que incendiará o mundo? Como se sopra sobre esta fagulha frágil, para que não se desvaneça debaixo de nossos pés indiferentes? O que é preciso para alimentar este fogo benfazejo e nutritivo, este luminoso apelo de lutas e esperanças? Quem, hoje, neste mar revolto e escuro, pode ser luz para o mundo?

Vi na tevê um homem pelas ruas, carregando sua geladeira nas costas. Foi o que pôde salvar da enchente. Olhou para a câmera e disse:”Não tenho onde morar, vou dormir dentro da geladeira, eu e meus filhos”. Um teto, camas, cadeiras, pão e café sobre a mesa é luz para o mundo.

Há tanta mediocridade à solta. Tanta mentira. Tanta incúria. Tanto desperdício. Tanta lady gagá. Tanta nudez. Tanta falta de gosto e de bom senso. Tanta injustiça. Tanta desgraça. Onde está a graça que dissipa as trevas do erro e da ignorância? Onde está aquele amor ao saber e à honra que eram luz para o mundo?

Ah, meus queridos, lindos da minha bem querença! Quem somos nós, neste exército de cansados? Contudo, lutemos juntos para acender esta lâmpada necessária. Lutemos juntos para manter aceso o fogo que aquece os corpos, mais que mil cobertores. Lutemos juntos para soprar sobre as brasas do zelo apostólico e do afeto, da concretude e da solidez. Lutemos juntos para que um novo mundo surja das sombras terríveis. Lutemos lado a lado. Ainda que meros simulacros de cabecinhas de fósforos, lutemos - luz para o mundo!

 

 

Antenas da raça

 

Marisa Bueloni

Uma vez, uma amiga a quem não via há muito tempo, e que morava em outro estado, veio me visitar. Viu uns poemas meus e se espantou que, no mundo hoje, ainda exista “gente que faça poesia”. Emitiu sua opinião de forma quase irônica, como se este ofício estivesse decadente demais ou fosse algo absolutamente desnecessário e inútil.

     Muita gente pensa assim e torce o nariz para a poesia. Claro, não se pode impor um verso, sob pena de ser expulso do ambiente. Poeta? Já ouvi: vade retro! E respondi: a que metro?

     Eis que poetas são “as antenas da raça”, como bem definiu o autor Ezra Pound. Eis que poetas constituem uma espécie em extinção e o pouco que resta deles não causa boa impressão.

Antigamente, poetas morriam moços, de tuberculose, num fenecer romântico e idílico. Hoje, de que morrem os poetas? Talvez de balas perdidas, dos alimentos altamente cancerígenos, das investidas de loucos ao volante, ou do próprio cansaço de viver. A dualidade da vida e da morte, presente nos versos dos poetas, remete-nos a este cotidiano violento e sem poesia.

A vida se tornou tão perigosa, senhores, que estar vivo é um milagre, uma dádiva absoluta. No facebook, a maioria saúda um novo dia que começa, pede graças, espalha graças, celebra a vida e depois agradece de novo quando o sol se põe.

Se a poesia é necessária, um dia saberemos. Ainda é muito cedo para se tirar conclusões. A Terra nem é tão velha assim e a humanidade caminha do jeito que todos estamos vendo.

     Anulem a poesia de um gato na janela, de um céu estrelado, de uma foto antiga e nada sobrará. Ou do cair da tarde, tristonha e serena. Sentimos medo que nos seja roubada toda a poesia do mundo, as rosas e os sonhos.

Vejo a salvação por perto, enquanto um poeta exprime a inspiração de sua esperança. Não proponho tese alguma. Apenas vejo que os poetas existem e suas almas palpitam. Deixam impregnados os livros, as mentes, os corações, as telas de alguns aparelhos luminosos, diante dos quais nem é preciso pensar.

Poetas se imolam para que outros leiam sua dor, sua luta, suas inquietações e sua insônia. Para que penetrem no que corre em suas veias, enquanto há vida, vista por uma janela íntima, interior e particular. Vejo, com apreço, que estas criaturas subsistem, sobrevivem, não obstante a artilharia pesada da aspereza que os cerca.

Poetas existem para isso: para polir um pouco a superfície de todas as coisas. Para lustrar com a força da palavra um tempo que perdeu sua fé. Não para que o mundo brilhe por inteiro, porque isso não é tarefa de poetas, mas para que se manifeste um chão bonito e habitável, digno de ser cultivado, e que se conheça um pouco da beleza.

     Estes seres de outra galáxia julgam que ainda existem olhos e ouvidos interessados nisso. No derradeiro fonema, apocalíptico e fatal. Céus que se enrolam como pergaminhos. Ou pétalas de rosas jogadas ao ar.

     Poetas! Quanto vos amo!

 

 

Coisas que desaparecerão?

 

Coisas que desaparecerao

Marisa Bueloni

Circula na internet um texto referindo-se a “nove coisas que desaparecerão” em pouco tempo. É de tremer.

     Em primeiro lugar, é apontado o correio. Os correios começam a passar por problemas financeiros e as novas tecnologias, incluindo o próprio e-mail, ameaçam desintegrar esta tradicional organização. Ah, que figura romântica a do carteiro! E pensar que, um dia, ele existiu.

A seguir, o cheque. O cheque vai desaparecer. Já vemos que o cartão de plástico substitui o dinheiro em espécie e o cheque. E ganhou credibilidade.

     O jornal. Acredita-se que o jornal terá o mesmo fim que o leiteiro e o tintureiro. A geração mais nova não lê jornal e prefere dar uma olhada nos noticiários on-line. De minha parte, penso que nada substitui o prazer de tocar nas páginas de um jornal impresso. Não consigo ler um texto no monitor por muito tempo, fico com a vista muito cansada.

     Claro, depois do jornal, vem o livro. Pressinto que jamais irei desistir do livro físico, a leitura prazerosa, virando página por página. Mas os futurólogos afirmam que se poderá navegar numa livraria on-line, ler um capítulo de uma obra antes de comprá-la e o preço sairá pela metade de um livro real. Por favor, editores sobreviventes, não deixem de editar livros, livros de papel!

     O telefone fixo. Pergunta-se para que ter um telefone fixo, se hoje o celular resolve tudo? Se você não tem uma família grande e não faz muitas chamadas locais, pode abolir o telefone fixo.

     Em sexto lugar, está a música. Já se prenunciou que a indústria da música está morrendo (hoje, “baixa-se” qualquer música no computador) e que “as gravadoras e os conglomerados de rádio estão se autodestruindo”. Tudo isso se deve à ganância e à corrupção. Falta oportunidade para que a nova música chegue até as pessoas que gostariam de ouvi-la.

     A televisão também vai desaparecer? As pessoas estariam assistindo à tevê e a filmes em seus computadores. Segundo o texto, os programas de tevê degeneraram demais, deixaram de ser atrativos, o público prefere jogar ou fazer outras coisas; e as rendas das tevês estariam caindo drasticamente.

     Em oitavo lugar, as coisas que você possui. Elas vão desaparecer também, fique alerta! Já ouviu ou leu a expressão “na nuvem”? Sim, é lá, “na nuvem” que certas coisas que usamos hoje irão “residir”, existir. A internet estará presente em todo sistema operacional. E assim, no mundo virtual, você poderá ouvir música ou ler um livro a partir de qualquer dispositivo portátil. O que fazer com o álbum de fotos, com os livros da nossa biblioteca particular e nossos CDs?

     E por fim, a privacidade. Sorria, você está sendo filmado. Hoje, as câmeras estão por toda parte, nas ruas, nos edifícios, e todos estão sendo vigiados durante 24 horas. Até mesmo seus hábitos e suas compras serão monitorados e “eles” conhecerão o seu perfil. Você será levado a comprar mais. O mundo virtual não dá ponto sem nó.

     Vou colocar aqui o meu número dez. Ó Deus, que sobreviva o amor. Fiquei com medo que o amor também fosse desaparecer...

 

 

Num sábado à tarde...

 

 

Num sabado a tarde

 

 

Santa Tereza d´Avila é que sabia das coisas. Era de uma sabedoria maravilhosa. Ela costumava dizer: “Nada te perturbe. Nada te amedronte. A quem tem Deus, nada falta. A paciência tudo alcança. Tudo passa. Só Deus basta”

 

 

 

 

 

 

 

Marisa Bueloni

O sábado não é um dia inteiro, não é. Até o domingo é um dia completo, mas o sábado não. O sábado é uma destas invenções divino-humanas que ninguém sabe o que é. Até Deus descansou no sábado. Eu não descanso nunca, andarilha de mim, com a alma em febre de tanto pensar a vida.

     Quando sábado amanhece, não sei que dia é. Demora para cair a ficha, vou abrindo os olhos devagarinho, remexendo o lençol - que dia é hoje mesmo? Pode contar que é sábado. Trata-se de um dia híbrido, vivido na sensação de estarmos no limbo do tempo. Onde fica isso? Não sei. Mas que é impressionante, é.

     Nem queira saber. É algo metafísico. Não há chá de funcho que cure esta colossal ressaca de viver, assim, meio abestalhadamente, chifrando os barrancos, até com a garrafa da marvada fazendo sombra pelo vale. Vale de lágrimas, meu amigo. Vade retro, pinga dos diabos! Quero morrer sóbria. Se não tomei o fogo até agora, vai ficar na saudade.

     Sábado é dia de namorar. Para os solteiros e demais interessados que vão se encontrar à noite. Mas quem já casou pode namorar também. Meu lindo dizia: “casados, eternos namorados”. Se não namoram, não sabem o que estão perdendo. Mas parece que o namoro já ficou pra trás para boa parte da turma de aliança na mão esquerda. E eu, pra mor dos pecados, uso duas. Tô ferrada. E sem sábado.

     Sábado. Ai que aflição. Será que tem circo na cidade? Vontade de ver um número de trapézio, de malabares, de mágica. Quem sabe o mágico pede para alguém da plateia participar do quadro, lá vou eu, e me faz desaparecer? Quem sabe o sábado vira uma ilusão de ótica permanente e deixa a gente em paz? Eita! Para com isso, mulher. Não paro.

     Sábado deixa a gente dodia. Não é erro de ortografia não, bela, é “dodia” mesmo, feito falava uma empregada baiana, cujas frases e palavras eram música para meus ouvidos paulistas. “Preciso de umas tauba pra consertar a cerca lá de casa”. Ui! Não é tábua, não? Que nada, ela queria era “umas tauba”. E eu não entendi?

     Sábado é dia de fugir num raio de luz. Ai, misericórdia, agora não queira também que eu explique isso, meu anjo de asas azuis. Vem cá, vem. Tenho algo mais lindo que isso pra te contar. Sabe, tem dia que preciso escrever um texto desta natureza desregrada ou sucumbo.(Escrever é uma coisa; publicar é outra, fala sério?). Sei o que você está pensando. Quieto aí, hein? Tudo bem por aqui. Tudo limpo. É coisa santa, saudável e decente o que me pegou nesta crônica destrambelhada, desembestada, descendo a ladeira a mil, sem breque - e agora?

     E agora vamos embora pra Pirapora.

     Santa Tereza d´Avila é que sabia das coisas. Era de uma sabedoria maravilhosa. Ela costumava dizer: “Nada te perturbe. Nada te amedronte. A quem tem Deus, nada falta. A paciência tudo alcança. Tudo passa. Só Deus basta”.

     Sabe aquela vontade de saber o que há por trás de todas as coisas? Filha da mãe! Ela bate sempre no sábado. Fico louca da vida com certos mistérios e quero penetrá-los, entender de física quântica, da mecânica do universo e responder por que existimos. A que será que se destina?

     Foi quando tu me deste a rosa pequenina. Só sei que hoje é sábado, cara, dia 20 de março, e estou escrevendo minha crônica para sair no primeiroprograma amanhã, domingo, dia 21. Sábado. Saturday. Samstag. Sabato. A agenda de couro preto sabe lembrar que é sábado em várias línguas. E que é quase abril. Ah, eu amo abril! Aprile. April. O que escrever na agenda, em pleno sábado? Já sei! “When the moon is in the seventh house/ and Jupiter aligns with Mars...” - sacou?

     Que entre pela porta a temporalidade deste sábado monumental em que me encontro tão absolutamente lúcida. E tão morta de saudade do meu lindo. Por Deus do céu! Mas, rendo-me, de joelhos. Embora o sábado não mereça minha confiança. Que estranheza no peito. Pode ser que chova. Venta súbito. Hoje é sábado. Explosão de expectativas. Nada trai a exuberância deste momento.

     Não diga que não entendeu nada, por favor. Diga que viajou comigo nesta festa semanal. Diga que, às vezes, um sábado à tarde pode ser fatal. É, meu bem. Está tudo certo. Só falta acertar essa agonia que o sábado me causa, não sei por quê. E eu ainda torro a paciência do nosso bravo Alexandre - o Grande - com a história da ilustreixon. Reboleixon??? Nããããoooo!!!

     Cabô? É!... Cabô. Ahhhhhhhhhh!...

 

Gosto demais... 

 

Gosto de mais

Marisa Bueloni

Gosto demais do silêncio, da solidão, da quietude da casa, das madrugadas serenas. O tique-taque do relógio na sala, um galo cantando, a poesia emergindo, a noite vasta!... Gosto de interrogar as estrelas – o meu lindo é a mais brilhante delas. Olhos grudados no céu, pergunto: onde está você?

 Gosto de uma torta de bacalhau chamada “Dakoana”, que tem uma história. Uma amiga de uma cunhada fez uma viagem de navio e experimentou a torta. Aquilo aguçou sua curiosidade – como é feita esta maravilha? - e foi até o cozinheiro. Ele acabou lhe dando a receita em segredo. É coisa dos deuses, de comer rezando. Abrir um vinho para saboreá-la é obrigatório, por favor.

 Gosto demais de ler os e-mails todos os dias. Deles transborda uma beleza que me toca muito particularmente. Há sempre alguém enviando uma mensagem especial. É algo muito precioso e deve ser preservado como joia rara. Diria que é um carinho indispensável nos tempos de hoje, quando impera no mundo a aridez da indiferença, da falta de amor e de gentileza.

 Gosto demais da missa no domingo. É um dos mais belos momentos da minha vida. Domingo sem missa não é domingo. Minha preferida é a das 11 da manhã, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde frei Augusto celebra regularmente. Na homilia, sua voz tonitruante enche o templo de sabedoria e evangelho.

 Gosto das coisas organizadas. Ordem e limpeza são tudo numa casa. Detesto bagunça. Cada coisa no seu lugar. Aqui eu guardo a tesoura, ali uma trena, a caixa de costura dentro de um armário, tal utensílio numa prateleira da despensa e assim por diante. Gavetas do armário grande da sala de jantar guardam as toalhas de mesa, os guardanapos de cozinha, paninhos rendados diversos; outros compartimentos guardam a louça e outras peças. Roupas de uso pessoal é um capítulo à parte. Mulher que se preza tem tudo em perfeita ordem.

 Gosto de retrato em branco e preto na moldura dourada, eu com 15 anos, de braço dado com meu pai, na saída da missa de formatura do ginásio.

 Gosto de deitar numa rede e pensar na vida, ouvindo as músicas da orquestra de Ray Conniff. Besame mucho. Ou as do Simon & Garfunkel. Alguém se lembra deles? “Sound of silence”, “Scarborough fair”, “El condor pasa”. Ou um CD dos Beatles. Algo de mágico adentra meu pobre peito. Anjos desabam sobre mim, no maravilhoso embate que eleva o pensamento. E acalma o coração.

 Gosto dos poetas. É uma gente à parte nesta longa estrada da vida. Vou seguindo e não posso parar. Espera-se do poeta uma postura inovadora. Quiçá revolucionária. Um gesto de originalidade, de bravura, de entendimento superior. Quero ver no poeta o que não vejo nas outras pessoas. Nem que seja um cacoete. Poeta tem a aura daquilo que nos comove profundamente, no primeiro olhar.

 Gosto muito de rezar. De rezar sozinha, na sala da minha casa, contemplando a imagem de Nossa Senhora Campestre, pequenina, e ao mesmo tempo majestosa. Gosto de rezar o terço com minhas irmãs Rosa Maria e Antonia. Rosa Maria reza de olhos fechados, de tanto fervor. Antonia flexiona cada palavra das orações como se os fonemas se marcassem a ferro e a fogo em seus lábios. Em geral, sou eu quem “puxo o terço” meditado e ele se torna poderoso, a ponto de, às vezes, nossas contas se enrolarem, se enroscarem do nada, nos confundindo, porque o “príncipe das trevas” detesta o rosário e o combate ferozmente. São Miguel Arcanjo, rogai por nós!

 Gosto de macarrão com frango assado. Mas tem de ser aquela macarronada com molho de manjericão. Pique uns 10 tomates maduros em pedaços meio grandes. Refogue-os no azeite, com alho e cebola, deixando-os se desfazerem levemente, ficando molinhos. Tempere do seu jeito. Aí, juntar um bom punhado de folhas de manjericão fresco picadinho. Nesta altura, a sua massa preferida já está cozida. Queijo ralado. Vinho tinto. Que tal?

 Gosto do outono, das tardes de abril que me dão febre. Do céu azul de maio, das noites estreladas de junho, do frio do Campestre e do calor no coração. Ai, as avezinhas que vêm comer as frutas que pico e deixo sob o pé de lichia. Sonoro o pio das que voam o que eu sonho. Deus, por favor! Dai-me asas de pássaros, se não for pedir demais.

 Gosto muito de saber dirigir e de ter um carro. Ma-ra-vi-lha. Recuso-me a trocar meu Palio 2007, preto ônix, que foi do meu lindo. Tem o cheiro dele e isso é vida para mim. Vivo quietinha aqui no meu Campestre, estou cercada daquilo que amo e que me toca a alma. Meu celular é jurássico, tenho oupas de 20 anos atrás que vão durar outros 20. Resisto o quanto posso a trocar o velho pelo novo.

 Gosto de pinhão, de milho verde cozido na água e sal. Gosto de pipoca. Serve até a de microondas. Gosto de peixe, aliás, amo peixe! Tem uma peixadinha rápida, com pescada branca,  ai m pescada branca, ura. e preto na moldura dourada, eu de braço dado com meu pai, na saque eu faço num tapa. Vai cheiro-verde, tomate, cebola, pimentões, alcaparra, azeitona. Depois, por cima, umas batatas em rodelas meio grossas. Tapar a panela, abaixar o fogo. Cozidas as batatas, a peixada está pronta. Servir com um arrozinho branco. Eita!

 Gosto de vinho. Sobretudo do tinto suave. Mas se tem do branco, a gente seca a garrafa também. Marvada pinga! Mofia é danada de boa. Não tomei o fogo homérico ainda e não será de vinho. Uma vez, meu lindo contou que o pior fogo tomado na vida dele foi de licor, numa aposta com amigos. Quem virava mais o copinho. Não podia nem com o cheiro de licor... rsrsrsrs.

 Gosto de comedimento, elegância, classe e educação. Mas até certo ponto. Se alguém tiver uma boa razão para rodar a baiana, eu rodo junto. Sou solidária até nas baixarias. Que me importa. O legal da vida é o reconhecimento de que certas situações pedem justiça. Ainda que isso exija perder um pouco o refinamento. Que seja.

 Gosto de café. Que pode ser benéfico e prolongar a vida e também matar de repente. Vai saber. Cada hora vem uma notícia sobre o café. Eu não ligo para o que dizem. Faço bom uso, damo-nos bem, sobretudo um gole generoso ali pelas 3 e meia da tarde, e uma fatiazinha de pão com manteiga. Para mim, é o lanche dos deuses. O que seria de muitos de nós sem a rubiácea aromática?

 Gosto de você, meu anjo, que me lê aqui, neste espaço. Gosto de saber o que sente, o que pensa, o que lhe vai dentro da alma. E do que você gosta. Se você sonha junto comigo esse sonho de olhos abertos e coração pegando fogo. Sei que em vosso peito arde uma chama de dar gosto. Vejo isso, no vosso comentário que é puro fogo. Puro fogo. Puro fogo.

 

Uma poeta à procura da poesia

 

Um poeta a procura

Marisa Bueloni

Nem o computador “aceita” que poeta seja substantivo feminino (como ocorreu no título, “uma poeta”). A frase recebe aquele risquinho verde sublinhando os termos. Ah, se eu fosse ligar para o gênero, o número, o grau e a sintaxe do computador! Não escrevia uma linha.

Não existe mulher poeta. Machismo aceitável? Vá lá. O termo “poeta” é substantivo masculino. Mulher é “poetisa” e acabou. Mas parece haver o mito de que, quando a mulher é muito boa na poesia, então ela tem permissão para ser chamada de poeta. Do contrário, continua poetisa. Adélia Prado, por exemplo, já virou poeta. Assim como Florbela Espanca. E tantas outras que chamamos simplesmente de “poetas”.

Sou alguém à procura de uma poesia que mate minha fome e aplaque minha sede. E permita-me, numa divertida molecagem, escrever “poeta” no campo dos formulários onde se pede o quesito “profissão”. Com toda humildade. Perdão, Drummond! E também porque registrar-se como “poeta” sempre desperta algum tipo de espanto, causa uma curiosidade agradável.

Uma vez, era noite, eu voltava da faculdade e uma moto bateu atrás do meu carro. O rapaz vinha em alta velocidade e a namorada, na garupa, foi atirada ao chão, batendo a cabeça. Prestei socorro e levei a moça ao hospital. E tive de fazer um Boletim de Ocorrência. O escrivão perguntou: “Profissão?”. Respondi: “Poeta”. Ele digitou lá. Quando terminamos tudo, chegou para mim, todo respeitoso, e disse: “É a primeira vez na minha vida que faço um B.O. de poeta”.

De qualquer forma, preciso de uma poesia que conte coisas, as que vão além dos boletins da vida. Que me despedace por dentro, porque preciso chorar. Uma poesia na medida exata de loucura e de lucidez. Quero narrar num poema que a xícara sem o pires é de uma solidão só. Que um vasinho de violetas foi visto caindo da janela sem peitoril. Ninguém entendeu ainda que certos elementos reclamam os seus pares, seu suporte e seu apoio.

Sabe aquela poesia que pergunta assim: onde estavas quando eu crescia sem parar? Ou ainda: como terminam seus dias as pessoas que não vemos mais? E também: o canário não liga se é abril; eu ligo. E formalizar num poema um gesto consolador: assim como fazer um sacrifício, carregar o esquecimento por ofício.

Quando é o tempo da poesia? Não sei... Nem sei mesmo quando é chegado o tempo exato das coisas. Ouço dizer: tal fruta tinha sua época, agora dá o ano inteiro. Quem sabe a gente plante um pé de quadras, para colher rimas três vezes por ano?

Lá fora, o mundo é dos que riem, certamente. E é preciso deixar de ser poeta da melancolia. Mas se chegar o tempo de ser triste, paro e peço um café, tomo um cálice de vinho, puxo dois dedos de prosa, me viro, compadre. Se vai doer, se será penoso demais, deixo para pensar depois. Depois que tiver passado este pesado tempo de ser triste...

Que situação sem saída, meu Deus, é um poeta à procura da poesia. Nem com todo o dinheiro do mundo. Nem sabendo como Noé construiu a arca daquele tamanho. Existirá o prodígio que celebra todas as coisas numa só? Onde pulsa a palavra que une os céus e a terra? Em que página habita uma estrofe de salvação? Quero vos dizer, caro leitor, que estou à procura disto e gostaria de vos dar de presente algo que valesse a pena neste mundo decaído.

Ah, eu queria vos entregar um texto fatal. De rasgar a alma e sangrar o amor. Um poema, súbito e dócil - ou aquele dificílimo de achar, escrito à foice. Venha esta poesia em chagas, venha o verso que é uma rosa orvalhada e, neste amálgama de dor e alegria, brote um lenço branco para acenar na plataforma da vida. Como eu queria estar lá.

Não sei se luto para escrevê-lo, até a morte, ou desisto. Escrevê-lo, no pressentimento da beleza a minha volta. No silêncio das folhagens paradas, um astro riscando o céu noturno, acendendo a antiga profecia. Quando? Quando o retrato da parede fala comigo; quando é meia-noite; quando julgo ter encontrado todas as respostas ou quando passo perfume?

Ah, que sublime é procurar pelo momento. A que horas, meu amor, é hora de escrever um poema?

 

 

O centro da alma

 

O centro da alma

Marisa Bueloni

Peço licença ao leitor, pois gostaria de tratar um pouco de espiritualidade. Das nossas vivências. Do acervo humano que cada um possui dentro de si. Das nossas aventuras pessoais e da grandeza que é viver.

Penso num assunto fascinante. O centro da alma e a periferia da alma. As contradições vividas no dia-a-dia. Como é difícil lutar contra os fatores externos! Creio que o núcleo da nossa alma será sempre aquele que se inclina para o Criador. É ali, no cerne da nossa espiritualidade que Deus repousa.

E quando não colocamos Deus no centro de tudo, nossa vida desanda. Entendo sempre que Deus deve estar em primeiro lugar. Quando o Espírito atua em nós, é maravilhoso! Tenho feito uma experiência mística fascinante: viver com pouco. Passar com o que tenho e comprar somente o necessário. Experimentar uma vida verdadeiramente franciscana.

Busco uma espécie de "pobreza temporal" e também espiritual, pois é como melhor me adapto a este mundo. Nunca me deslumbrei com nada, nunca senti inveja dos ricos e famosos, nunca desejei mais do que tenho. Sempre me contentei com o que possuo e já enfrentei, como muitos de nós, fases difíceis na vida.

Há alguns anos, passamos (meu marido ainda era vivo) nossos apertos, e foi nessa época que mais vi o Espírito agir em mim. Assaltou-me uma força colossal. Da aparente fragilidade brotava um vigor inesperado. Eu construíra a casa sobre a rocha. Veio o vento, veio a chuva e minha casa permaneceu de fé. Meu coração foi valente.

Nos momentos mais duros, rezei com fervor. Nas noites mais fundas e dolorosas, peguei o meu terço. E era ali, no centro da minha alma, que as forças se juntavam. Podia reconhecer meu lugar no universo, no mundo contemporâneo onde tenho de circular, conviver, me relacionar e comer o meu pão diário.

O bom Deus sempre me ouviu. Tenho de reconhecer o afeto d´Ele por mim. Mas não fiquei esperando nada cair do céu... Fiz a minha parte, não tive medo nem vergonha. Trabalhei, fora e dentro de casa. E isso não mata ninguém, só nos fortalece. Olho para trás, vejo o que passei, e me espanto por ter sido tão corajosa e tão forte. Sinto orgulho de mim.

O centro da alma. Imagino que o leitor esperasse algo mais intimista. Algo a respeito da fé, da espiritualidade mais profunda. Do encontro com o divino. No meu caso, o espiritual se fundiu com o sofrimento do cotidiano, com a luta pela sobrevivência digna, o enfrentamento com o desconhecido - e o divino se revelou para mim.

Não sei de onde tirei tanta energia e entendimento. Agora, viúva, sozinha (por opção), quieta no meu canto, e com a vida razoavelmente estável, sinto os eflúvios do Espírito à minha volta. Olho para trás e Ele me diz: “Você chegou. Você chegou até aqui. Você ainda esta de pé. Eu te ponho de pé todos os dias”.

Do centro da minha alma vejo a chama divina agir em toda parte. Esta luz que age em nós, quando nos deixamos domar. "Solte os remos!", diz sempre padre Edvaldo. “Solte os remos!”, repito com ele. Deixemos Deus comandar o barco da nossa vida. Deixemos o Espírito agir e atuar em nós. A Providência Divina existe e comprovei isso com meus próprios olhos.

Fico feliz quando encontro alguém em quem presencio esta clareza espiritual que anima e eleva! Sempre digo que andar nos santos caminhos não significa renunciar à alegria, ao amor, à felicidade, às coisas lindas da vida.

A felicidade completa é uma utopia. No decorrer da existência, há perdas, doenças, luto, dor, sofrimento. Nada dura para sempre. Nós mesmos vamos envelhecendo e vem a decrepitude... Nada é fácil. Não existe uma fórmula mágica para a vida. Filhos não vêm com bula. Casamentos se desfazem.  As separações são sofridas. E é preciso aprender tudo. Uma aprendizagem que jamais termina, pois há novas lições todos os dias. Feliz de quem as aprende com a beleza bíblica da Sabedoria!

Lá, no centro da minha alma, faço conjecturas. Inferências. Busco o discernimento necessário para algumas questões relevantes. O centro da minha alma está à espera. Algo grandioso deverá vir até nós, num momento fatal. E será belo, sobretudo para os que esperam em Deus.

Os tempos são trepidantes. Vemos a glória do mundo e vemos sua decadência todos os dias.  Por vezes, somos pegos de surpresa. O santo padre renunciou e haverá um conclave para eleger um novo papa. No ar, rumores do fim dos tempos. Será?

Que o centro de nossa alma nos traga o justo equilíbrio, a lucidez necessária para atravessarmos com serenidade o que possa vir à frente. Nada nos perturbe ou nos tire a paz, nada nos assuste, como dizia Santa Tereza d´Avila. Sabemos que “a paciência tudo alcança” e que nossa alma precisa desta bela lição de amor.

 

 

Ainda somos seis

 

Ainda somos seis

Marisa Bueloni

Estou atendendo ao pedido de um amigo, que adora ler  “as coisas de antigamente”. Ia começar este título com “Éramos seis”. Ainda somos seis irmãos, todos vivos, na graça de Deus. Todos já passamos de meio século e cada um já viveu sua parte de alegria e de dor nesta vida. Somos seis irmãos e guardamos o legado lindo deixado pelos nossos pais.

Então, “éramos” seis, cinco mulheres e um homem. Minha mãe, impecável na sua função de administrar a casa, reinava como a perfeita rainha do lar, à medida que crescíamos. De manhã cedo, a mesa posta, o cheiro de pão fresco, o leite fervido, o café coado recendia pela casa. Cedinho, meu pai já havia saído para o trabalho e minha mãe começava a lidar com os afazeres domésticos.

De suas mãos brotaram as mais belas refeições de que tenho lembrança. O pernil assado com batatas; o frango com polenta; o nhoque e o bife à milanesa; o bacalhau com molho; a macarronada maravilhosa, tudo feito em casa, com carinho e capricho. E os bolos e doces? Ninguém fazia um doce de abóbora em pedaços igual ao dela.

Mamãe foi do tempo do ferro de passar com brasas e do fogão a lenha. Dignamente rachava a madeira no quintal, acendia o fogo para a comida de cada dia. Ficava com as mãos tão grossas, mas usava um pé de mamão que tínhamos num terreno ao lado de nossa casa e, com um facão, dava um talho no tronco. Dele escorria um leite branco que ela passava nas mãos, pois dizia que amaciava bem a pele.

Sabia destroncar o pescoço do frango, depois o punha numa grande caçarola com água fervendo para amolecer a pele e tirar as penas uma por uma. Aí, cortava a ave em pedaços e a temperava. Para fazer a sua famosa polenta com frango, que nunca existiu igual no mundo!

A roupa lavada e passada pelas mãos da minha mãe tinham um perfume único. Sabia fazer um pouco de tudo, costurava, bordava. Lembro da alegria dela com o primeiro fogão a gás, a geladeira, o telefone, a televisão. Eram presentes maravilhosos para ela! Acho que nunca a ouvi se queixar de nada. Parecia ser imensamente feliz, mesmo com tantos afazeres diários. E a gente só vivia brincando, estudando, passeando, indo ao cinema...

Que tempo maravilhoso foi aquele, minha mãe e minha avó italiana disputando espaço na cozinha, na pia, no fogão, uma mexendo a polenta, outra lavando a louça... Meu pai trazendo carne de porco do sítio e minha mãe lidando com ela, fervendo as tripas, usadas para encher de lingüiça caseira. Vinham as laranjas, mangas e goiabas. A goiabada era feita no tacho de cobre. Levávamos pão com goiabada de lanche durante semanas na escola e ninguém enjoava de nada.

Para mim, como já afirmei, a felicidade reside nas coisas simples. Sobretudo quando se tem estas lembranças acesas no coração! Minha avó italiana e sua tigela branca para o café com leite, onde ela molhava o miolo do pão. Meus irmãos e eu, meu pai e minha mãe. Os dois ajoelhados rezando o terço, diante dos quadros lindos dos Sagrados Corações de Jesus e Maria.

Ainda somos seis e, quando nos reunimos, vem o abraço mudo desta felicidade pequenina e as lágrimas de saudades enchem nossos olhos e nossos corações!...

 

 

Dona Vida

 

DonaVida

Marisa Bueloni

Chega-se a uma altura do bom combate em que começam os questionamentos. A pergunta que mais fazemos à Dona Vida é: por quê? Dona Vida é circunspecta, vive calada e tem cara de poucos amigos. A gente dá uns cutucões nela, provoca, acha que está sendo inteligente e ela nem tchum.

Então, começa-se a ir a velórios, a se despedir dos amigos e das pessoas amadas. Gente da nossa geração que Dona Vida vai levando embora e vem aquele nó no peito. Quem será o próximo? Dona Vida não responde, faz que não é com ela. Dissimulada que dá ódio.

Tenho uma bronca crônica de Dona Vida. Não que ela tenha sido muito má. Não foi. Mas houve vezes em que pedi uma ajudinha extra e ela não estendeu a mão. Ficou aquele travo na boca. Contudo, nenhum grande ressentimento. Hoje, conversamos numa boa, somos até amigas.

Dona Vida não me deu um tantão assim de dinheiro. Nem precisava. Ela sabe que eu não ligo. Fui logo avisando: um prato de comida e um canto para morar tá bom demais. Uma época, apaixonada por São Francisco, fiz voto de pobreza. Ela veio sorrateira e me disse: “Olha lá, hein? É sério?”. Confesso que balancei. Voltei atrás. Lá veio ela, de novo, toda sarcástica: “Acho bom. Fica na tua”.

Uma vez, Dona Vida me convidou para dar uma volta numa curva suspeita. Não fui, claro. Declinei do convite. Ela se ofendeu, cara. “E aí, sua fedelha, me ignorando?”. Não, Dona Vida, que é isso? Só achei que não era coisa para mim. No final, ela me deu os parabéns. Pode?

Dona Vida adora me ver num hospital. Esperneio, discuto, não adianta. Ela vem de mansinho, me faz vestir aquela peça verde-clara que amarra nas costas e me acompanha ao centro cirúrgico. Olho para ela, com lágrimas nos olhos. Penetra-me na veia junto com a anestesia e me sopra no ouvido: “Vai dar tudo certo”. Fechos os olhos, me entrego, confio nela.

Houve um tempo que Dona Vida me colocou numa encruzilhada. Entre a cruz e a espada, como se diz. Foram décadas de um corpo-a-corpo daqueles. Mas esta luta eu venci. Ah, venci. Tenho um baita orgulho de poder dizer: eu-ven-ci!!!

Dona Vida me ajudou. Muito. Ensinou-me a ser temente a Deus, a respeitar e amar o próximo, a ter princípios, a andar direito. Sobretudo: a me contentar com o que eu tenho. Foi a melhor lição. Ela vive me repetindo isso: “Feliz de quem aprende!”.

Bom, quem não aprende com Dona Vida, não aprende com mais ninguém. Dizem que ela é a melhor escola. Há uma porção de almas por aí que nunca pegaram num livro e enchem o peito para dizer que estudaram com ela. Dona Vida não tem propriamente um diploma para dar. Mas isso não impede ninguém de se formar.

E os amores, Dona Vida? As paixões? Por que a senhora age como age? Que é isso, santo Deus? Não pode ser menos intempestiva e mais ponderada? Até eu tenho mais juízo! Assim não há fôlego que aguente, minha cara. Tá bom, tá bom. Vá mais devagar, que tento acompanhá-la.

Vinha eu cansada pelo caminho. Você cansado pelo caminho vinha. Eu tinha a alma cheia de sonhos. Você a alma cheia de sonhos tinha. É, Dona Vida!... Você junta, depois separa, a seu bel prazer. E nós ficamos ali, à beira da tumba, olhando para o vazio, sem entender nada...

Ah, Dona Vida, por que você é assim tão misteriosa? Tire este véu da face. “Que queres tu de mim?” – sei de cor todos os boleros e sambas-canções aos quais fui apresentada pelo seu gosto musical. E até os cantei. Mas não fiz carreira. A senhora não me levou a sério. Lembra?

Dona Vida é sábia. Tem lá seus rompantes esquisitos. A gente joga com a maior disciplina e toma cartão amarelo sem parar. Às vezes, não se entra em campo e é preciso ficar no banco de reservas, quietinho. Quem não ficou? E olha, o árbitro da partida é assim com Dona Vida, tomam chopinho juntos toda sexta-feira. Não adianta passar a lábia nele. O homem é fera.

Briguei feio com ela, uma vez. Xinguei Dona Vida dos piores nomes. Acabei com ela. Arrependida, fui à igreja pedir perdão. Um Anjo loiro de longas asas veio sentar-se ao meu lado. Contei tudo a ele, que insultei Dona Vida, que perdi a cabeça. Ele alisou meus cabelos e disse, me consolando: “Todos perdem”.

Quer saber de uma coisa, Dona Vida? Chegamos juntas até aqui. Ponto pacífico. Vim chifrando os barrancos, mas sem a marvada pinga. A senhora é de uma sabedoria a toda prova. Eu sou aquela aluninha ingênua, de olhos arregalados, curiosa – ainda! – e prestes a aprender a lição final. Não embace, ensine logo, por favor! Estou louca para conhecer este segredo, descobrir o seu sentido.

Dona Vida recua, recolhe-se aos seus aposentos. Alega precisar de um tempo para se recompor. Tem seus humores. Ela é quem manda, sempre. Paciência. Dona Vida detesta e-mail, msn, essas coisas. Não tem conversa. Com ela é tudo ao vivo. Aguardo.

 

 

Não tenho medo de nada

 

Naotenhomedodenada

Marisa Bueloni

Que admiração profunda sinto por quem afirma isso: “Não tenho medo de nada”. Conheci uma pessoa assim, intrépida, corajosa, valente. Sem medo do escuro, de injeção, de mula-sem-cabeça, de dentista. Sem medo de correr riscos, sem medo da vida. Eu perguntava: nem de assombração?  - e ela respondia: “Assombração não existe”.

 A gente já viu coisa do arco da velha neste mundo. E existe aquilo que mete medo, sim. Vai dizer que não? Mas tem gente por aí que anda na montanha russa, toma avião como eu vou à cidade, salta de paraquedas, pega cobra com a mão, faz carinho na leoa, amansa burro bravo, expulsa demônios e espíritos maus das pessoas possuídas. É preciso ser santo para realizar a expulsão. Tem de jejuar e fazer muita penitência para ganhar a força espiritual necessária.

 Há um monte de medo por aí, rondando-nos o tempo todo e também atrapalhando a nossa vida. Tenho alguns medos, confesso. Medo de avião, por exemplo. Já tive alguns sonhos premonitórios e isso me soa como um aviso para não voar. Minhas viagens - já fui até Porto Alegre, numa viagem encantadora e até a Bahia, num verão inesquecível - são sempre de carro.

 Uma de minhas mais queridas amigas tem medo de elevador. Ela não entra num nem a pau. E não adianta insistir. Uma vez, fomos juntas fazer uma visita para minha filha mais velha que, na época, morava no 19º andar de um edifício bem no centro da cidade. “Mas, meu anjo, vamos de elevador, são 19 andares, você vai chegar lá tão cansada...”. Ela foi irredutível, subiu pelas escadas. Terminada a visita, cutuquei: “Mas agora, vamos descer de elevador, né?...”. Que nada, ela foi a pé novamente.

 Creio ter superado, mais ou menos, o medo de falar em público, que faz parte da chamada “fobia social”. Não apenas medo de falar para uma plateia, dar uma palestra, mas também de fazer uma pergunta na aula para o professor, emitir uma opinião num grupo, apresentar um trabalho na escola. Depois, conversando com outras pessoas e colegas, tive a confirmação de que eu não era a única a sofrer terrivelmente com isso.

 Medo de fracassar. Hummm... chato, muito chato o fracasso. Mas quando acontece, temos de tirar dele uma bela lição de vida. Sucesso e fracasso. O que será pior? Os que alcançam o sucesso dizem se sentir prisioneiros dele, precisam mantê-lo a todo custo. O fracasso é amargo, mas pode ajudar no aprendizado para passos futuros. Que o fracasso não estacione ninguém numa vaga perdida do caminho.

 Não ter medo de nada. Não ter medo de se envolver numa aventura perigosa e sair dela machucado para sempre. Não ter medo da vida. Não ter medo do amor. Há pessoas que têm medo de amar. Medo de ser ferido, de sofrer. Medo de passar por uma desilusão. E por isso, vivem solitários, nunca namoraram. Se houve alguma paixão secreta, também não revelam com medo do ridículo.

 Pois é. Medo do ridículo. Quem não tem? Ninguém quer pagar mico, ser pego de surpresa, fazer um papel feio, passar uma imagem de pessoa desastrada, grotesca, ou pouco inteligente. Todos querem brilhar de alguma forma, ter êxito, conquistar um espaço de valor e reconhecimento. Essa é uma luta que envolve o nosso ego numa batalha particular, pessoal, profundamente desgastante. Será que vale a pena?

 Medo de ser feliz. Meu Deus, como a gente lê sobre isso nas revistas. Será que existe mesmo esse medo? Se alguém sofre dele, por favor, vá se tratar urgentemente! Não tenha medo de ser feliz, meu anjo. A vida é tão curta, passa tão depressa e as doenças podem aparecer de surpresa no meio do caminho...

 Se você pode ser feliz, seja. Não tenha medo. Não precisa afirmar, cheio de coragem: não tenho medo de nada. Tenha alguns medos, sim. São salutares. É uma espécie de “defesa” natural, em determinadas situações. Medo é uma coisa, fobia é outra. Basta que não sejam medos patológicos, está tudo certo.

 Eu tenho medo de algumas coisas. De extraterrestre. De avião. De escorpião. De adoecer e ficar dependente. De perder minha fé. Tenho medo de ver algo que não quero ver. Prefiro viver as coisas deste nosso mundo real e maravilhoso, com tanta coisa linda, mas tão linda, tão linda, que é de meter medo!...

 

 

No fundo do coração

 

Nofundodocoraçao

Marisa Bueloni

É no coração, lá no fundo, que ficam as coisas mais fundas. E como é delicado e trabalhoso lidar com estas profundidades. São funduras bastante enigmáticas para o próprio dono do coração. Nem ele mesmo consegue entender o que lá se passa, sendo obrigado a admitir que, de fato, o coração tem razões que a própria razão desconhece.

Vejo a lua cheia e contemplo as estrelas - um teto admirável, pleno de belezas e luzes. Tento medir esta distância e sei que estão bem longe de nós, mas nada está tão fundo como a casa do coração. Nas alturas, habita um mistério eterno; no coração, habitam os segredos e talvez os sentimentos que não queremos, às vezes, admitir.

Estamos aqui, pés no chão, pisando o abençoado solo diário, cada um cumprindo a parte que lhe cabe na vida. Cada um sabe aonde vai, desde o momento em que acorda. Sabe? Uns vêm, outros vão. Há chegadas e partidas. Mas todos estão naquela rota necessária, a bordo de si mesmos, por vezes agindo como autômatos, sem chance de parar e escutar o coração.

O Livro do Eclesiastes, nas Sagradas Escrituras, trata deste nosso trabalho diário: “E vi que tudo era vaidade e vento que passa, e que nada havia de proveitoso debaixo do sol”. Mas diz também que: “Vale mais uma só mão cheia de tranquilidade que as duas mãos cheias de trabalho e vãos afazeres”.

São muitos os trabalhos desta vida, contudo nenhum deles é tão profundo quanto a charrua que moureja dia e noite no fundo do coração. Lá estão enterrados os segredos de cada um, aquilo que se pensa e não se diz; o que se deseja ardentemente e aquilo a que se renuncia, sabe-se Deus por quais razões. O que se sepulta para sempre, em nome da paz.

Há uma lista infindável, quando se trata dos segredos do coração, dos seus estranhos motivos. São mistérios intraduzíveis, e não há raio de sol que alcance o baú bem encerrado, o tesouro que cada um carrega dentro de si. O astro-rei está muito distante e o coração está muito fundo. Estão em distâncias diametralmente opostas, mantendo suas características inequivocamente particulares. Cabe ao sol a jactância do brilho, a luminosidade do dia, reinando absoluto; cabe ao coração recolher-se, manter-se na penumbra do silêncio e guardar sigilos.

E é lá, nas águas abissais da alma, que mergulha nosso pensamento, nossa imaginação. Mas o sonho precisa vir à tona. Creio que o homem é mesmo uma criatura especial, dotado de grande inteligência, pois não perde nunca a capacidade de sonhar. É o sonho que nos mantém vivos e apaixonados, interessados na vida, preocupados com o que se passa a nossa volta, curiosos, impacientes e eternamente pesquisadores.

É o sonho, são as fundas questões do coração, irreveláveis à luz do dia, que nos fazem fortes, ousados e precavidos. Tenho quase certeza disso. De que sem a dose diária do sonho e da fantasia, seria impossível sobreviver. É como se o homem pudesse ficar sem comer, mas não sem sonhar.  É por esta capacidade de alimentar o sonho dentro do coração que o homem se apóia nos seus dois pés e caminha. Por causa dela, ele pensa, estuda, e decifra a vida. A antropologia ainda vai se render a esta evidência.

Aqui no campo, contemplo a noite vasta e nada mais teria a escrever, não fosse pela magia do sonho. O céu de agora se apresenta sereno, no recorte das estrelas invernais.  Ergo meus olhos para a lua e me pergunto quando ela dará o primeiro sinal. Aquela palavra de que nos fala o Senhor, os sinais na lua e nas estrelas, quando as potências do céu serão abaladas.   

Também o coração guarda uma profecia. Também o coração possui o dom de prever o que nos ronda, pela ação dos pressentimentos e premonições. O coração acalenta um desejo de testemunhar estes sinais, por mais dolorosos e sangrentos eles sejam. Porque se poderão vencer os obstáculos, domar serpentes, anular o efeito dos venenos, andar sobre as águas e acalmar os ventos. Vitória sobre vitória, triunfo de gigantes na fé. Pode ser que neste dia sejam revelados os pensamentos de muitos corações, tal como profetizou o velho Simeão no templo.

E os homens de boa vontade terão contemplado a salvação.

 

 

Vária vida

 

VariaVida

Marisa Bueloni

 

* Lá de trais daquele morro tem um pé de manacá /Nóis vão casá, e vão prá lá / cê qué? / cê qué?

* Ai, meu Deus! Namorar e casar! A noiva fez um vestido e o noivo, decidido, terno branco foi comprar. Namorar e casar. O bolo encomendado, rapadura e melado pra de amor se lambuzar!...

* Venha para casa, que vem chuva forte. Ou melhor, chumbo grosso. Não posso dizer tudo o que sei. Ninguém acredita. Pegue sua capa, sua mochila, seu terno novo e traga para cá. Não posso fazer nada a não ser te abrigar em minha casa. Venha.

* Mãe, você acha que eu devo ir de preto ou de azul-marinho? O casamento é às seis da tarde. Ah! Empresta aqueles seus brincos?

* Digo-te, meu amor, que os dias passam como se não passassem, que o momento é estático e a penumbra faz sombras nas paredes. Por vezes, teu rosto aparece, límpido e claro. Noutras, é só um detalhe que vislumbro, o recorte da tua boca, teu nariz lindo, o perfil etrusco. No fundo, no fundo, é tua alma que eu busco.

* Quero te dizer que nem tudo está perdido. Apesar do planeta decadente e poluído, há uma réstia de dignidade e de esperança aqui e ali. Onde? Não sei.

* Tenho vocação para ser triste. O médico diagnosticou tipo "um brasão de família". Uma certa tendência à melancolia – contra a qual preciso lutar sempre. Meu pai andava com um lenço no bolso para enxugar o canto dos olhos, pois emocionava-se com tudo. Herdei de meu pai o gesto emotivo e lenços é uma grande ajuda diária.

* Na bolsa, além do lenço, dos tubinhos de gengibre, da escova de cabelos, da carteira e dos documentos, tenho um terço – a mais poderosa arma para os combates espirituais de hoje. Ninguém saia de casa sem essa arma essencial. Deixe uma no carro também. Ela já salvou vidas.

* Vou morar à beira-mar, ah vou. "Vai nada!" – me aconselha a amiga. "Não vá, não, o mar vai subir, é perigoso, agora devemos morar em lugares seguros e altos". Lembrei-me de uma mulher "sensitiva" que vi na tevê. Contou que morava em Peruíbe, à beira-mar. Teve a visão de um tsunami colossal. Um dia, do nada, apareceu um aviso na tela do seu computador e ela se mudou para Campos do Jordão.

* O vulcão da Islândia pôs o mundo de joelhos. Foi algo profético. Você viu?

* A vida não é um salto alto, eu sei. A vida é luta. A vida contém uma dose exata de beleza, de alegria e de sofrimento, que é para ninguém enjoar dela. Tem também uma dose intrínseca de esperança. Talvez tenha a sua parcela inevitável de horror. Há os dois lados, que é para equilibrar o ato político de viver.

* Tia, você tem o livro "Honoráveis Bandidos" para me emprestar, por favor?

* Vou fazer uma sopa deliciosa, daquelas com as raízes inhame, cenoura, batata, cará, mandioca e mandioquinha. Tenho queijo branco de Minas, pão diet e água mineral. Banana prata, maçã, mamão papaya e caqui, já comprei. Bjs.

* Ah, as nossas pernas mortais, que boas elas são. E que longe nos levam quando nos libertamos das proibições psico-resolvidas...

* A vida está ficando cada vez mais complicada. Antigamente, se dizia: PARA O MUNDO QUE EU QUERO DESCER! E agora? Qual é o grito de socorro?

* Se você disser que eu desafino, amor / Que eu dou dor de cabeça / má digestão e azia / Tem nada não / Pego o meu violão / e vou cantar em outra freguesia.

* Você não viu Avatar? Ah!... Bom... Tem coisa melhor, claro. Mas James Cameron diz a que veio.

* Em geral, acordo plena de uma certeza: de que tudo vale a pena neste mundo de Deus. Por alguma razão especial, esta geração foi escolhida para estar aqui, nesta fase de nossa história. A esta geração está reservado um conhecimento que abalará os corações.

* Ouvi o rumor das estrelas pela janela do quarto. Falavam baixo, para não acordar ninguém.

* Se são coisas de amor, perdem o pudor. Apenas te abuso. Não quero mando. Não quero uso. E faço-te, envergonhada, um apelo: manda-me, ao menos, um fio do teu cabelo.

* Há momentos em que todos os ruídos cessam e o mapa da noite expõe seu recorte mais denso. No entanto, é essa massa inexata e difusa chamada silêncio que se transforma em eloqüência absoluta, se o coração deseja falar...

* Poesia é coisa metafísica. Poeta. Para quê? – eu pergunto. Escreves a palavra, fundes o verso, marca-o em carne viva, assim, em auto-mutilação, para que outros leiam?

* Vamos lá, meu anjo. Pode contar tudo. Tenho todo o tempo do mundo para usted.

* Um Anjo apareceu por trás do pé de acerola e sofri com a visão. Anjos tristes em meio aos pés de frutas? A culpa é minha, que quero ver anjos em toda parte – eles, que nos carregarão para os refúgios quando a Hora chegar. Ninguém quer ouvir falar dela. Mas ela é bíblica e inexorável.

* Bateu uma saudade funda dele. Destas que fazem o coração ficar pequenininho... Então, era um domingo em que o tricolor ganhou. Eu fui lá, beijei a foto dele e falei, apertando o retrato contra o peito: dois a zero, lindo!

* Ninguém dava nada por aquilo. Era uma desolação só. E veja agora, como tudo floresceu e está bonito. Graças a quem teve a boa vontade de dar o primeiro passo. Às vezes, a questão é só uma: arregaçar as mangas. E crer. A fé remove montanhas.

 

 

Nem um dia sequer...

 

Nemumdiasequer

Marisa Bueloni

* Meu pai enrolava entre os dedos um cigarro de palha caprichoso. Moviam-se ali tantos segredos daquele fumo sempre bem cheiroso. Meu pai me oferecia um pedacinho do fumo preto para que eu cheirasse. “Faz espirrar!” – dizia com carinho, esperando que em seguida eu espirrasse. E num espirro, a saudade bate. Meu coração mais uma vez se abate e nas lembranças, triste, me retiro. Ó pai querido, não me queres triste. Posso senti-lo, desde que partiste, quero espirrar... e só suspiro!..

* Se o céu desabar, não haverá como sair de baixo. Feliz de quem construiu seu próprio refúgio dentro do coração. É coisa espiritual, que não se compra com dinheiro do mundo. Não é coisa física, tipo uma construção segura, senhores. Ah, morte, serás invocada em desespero e não virás!

* Ele lembra que dançamos três músicas seguidas. Eu me lembro que gostava de dançar, de valsar, de viver muitas vidas. Aos 15 anos, pode ser diferente?

* Os homens gostam de fazer a corte às mulheres. Clarice eternizou a abordagem masculina num texto onde ela conta do homem da fronteira, que a convidou para um “passeíto”. Hummm... A escritora, como sempre, espertíssima. Clarice romantizou o evento numa crônica soberba e respondeu: “Eu, hein?”.

* Ofereço-te meu ombro, meu assombro e minha amizade. Fica por conta dos velhos tempos e da saudade.

* Vá lá. Ainda estou nocauteada de sonho. Mas também indignada. As coisas dão uma volta muito longa para chegar onde desejam. Dona Vida é cheia de nove horas, reparou? Ela se adianta, se atrasa, chega no meio da festa e, às vezes, sai de fininho. Ninguém pode abrir a boca. Resta um caixão tristíssimo, flores de um perfume ruim, uma cova na terra, a conta maior que tiveste em vida.

* É de bom tamanho, nem largo nem fundo. É a parte que te cabe neste latifúndio.

* Durante a confissão, num momento inspirado, em que os santos nos altares pararam para ouvi-lo, o frei disse: “Minha filha, Deus conhece o barro de que fomos feitos”.

* As coisas da Terra são sempre muito sombrias. Devem ser mais belas e mais alegres as do Céu. Buscai as coisas do Alto. É para as alturas que dirijo meu olhar solene, à espera de solenidades.

* Vai, vai mesmo. Eu não quero você mais, nunca mais. Tenha santa paciência, ponha a mão na consciência e vê se me deixa em paz. Aí neste samba tem uma mistura pronominal. Que não tira a beleza da obra, no entanto. Os sambinhas de antigamente eram todos assim, inocentes. Você mulher, que já viveu, que já sofreu, não minta. Um triste adeus, nos olhos seus, a gente vê, mulher de trinta.

* Roberto, por gentileza, faz uma música para as acima dos 50?

* Na vertigem da vida, quero a voragem do que não acontece. Do sonho não realizado. Da sorte que nunca tivemos. Do concurso que não ganhamos. Do encontro jamais tido. Do beijo não dado. Dá para entender? Melhor o mistério eterno, que a revelação absoluta, escandalosa e cruel. Essas deixam marcas e a gente tem um medo colossal delas. Ou não?

* Declaração de amor em tempos de violência explícita: PARE COM ISSO OU EU CHAMO A POLÍCIA.

* Ah, aqui no campo, quando a usina de cana apita!... Desperta-me o senso das andorinhas. Alisa-me a rosa dos ventos. Acordo do sono dos séculos. Abraça-me a força de que todos precisamos para ir em frente.

* Dou um comando cerebral e o corpo obedece. Ele responde as minhas ordens. Não preciso mais que isso. Ordenar que tudo funcione conforme o Criador nos fez. Engrenagem perfeita. Mais ali na frente, naquela curva, haverá uma rosa orvalhada. Será que chego lá?

* Tem hora em que a gente quer desabafar com o leitor um assunto especial, e escrever umas coisas proibidas. Sabe aquela parte - a melhor, sempre - que fica nas entrelinhas?... Então. Aquilo que se pensa e não se diz?

* Sabe quando a visita já acabou, nos despedimos, e paramos um pouco no portão da rua? Aquele restinho de conversa ali não é sempre o melhor? Melhor e mais profundo do que tudo o que foi dito lá na sala?

* Minha irmã mais velha é sábia e repete sempre este ditado: “Você é escravo da sua palavra e rei do seu silêncio”. Quero ser a rainha de mim mesma, enquanto viver. A não ser que caia em desgraça. Ninguém tá livre, fala sério.

* Ocê caiu nos braços de Morfeia e eu,

que não sou besta nem nada,

de Morfeu.

Meu!

Eita deus dos bão!

Ele vem alisano a gente, fazeno uns cafuné,

começa lá pelos pé.

Né?

Aí, vai subino, subino

e quando a gente vê,

a gente tá durmino!...

 

* Olho as frutas verdes e a floração de algumas coisas imperecíveis à minha volta. Maturação, parto, sonho. Adivinho um perigoso fragor de astros caindo. O rumor do canavial ao vento, o coração da Terra pulsando. O Sol se move entre as palavras. Perdida de amor, pergunto: Deus, por que fizestes tudo isso, assim, sem ao menos nos avisar?

* Uma vez, quando a manhã se abria, me fechei. Foi a pior coisa que fiz na minha vida. O coração não pode se fechar. Nunca. Nem um dia sequer. Não é verdade, meu anjo?

 

 

Guarde no cofre

 

Guardenocofre

Marisa Bueloni

Um céu azul. Ah, meu Deus, se você consegue ver um pedaço de céu azul da sua janela, da porta da cozinha, de algum lugar do seu escritório ou do consultório, guarde no cofre. Esta visão é maravilhosa e não se pode desperdiçá-la. Há que ser fotografada, ampliada, posta num quadro, emoldurada pelo amor.

Uma sala de jantar, destas bem antigas, com o tampo da mesa meio sem brilho, em cujos veios da madeira estão gravadas as histórias de toda a família, as reuniões, os Natais, almoços e jantares, gente em volta contando causos, rindo, chorando, suspirando de saudades... Guarde a mesa no cofre.

O seu carro. Que não é novo, mas é a sua cara e raramente dá problema. Você e ele são a mesma pessoa, um é a extensão do outro. Você faz uma baliza de olhos fechados, porque conhece as dimensões do seu carro e ele entende cada manobra sua como se fosse um amigo sincero. Guarde o carro no cofre.

Um rio. Um rio de águas limpas, onde não é jogado nada in natura nele. Ao contrário, as cidades que o circundam tratam o esgoto. O rio tem peixes e você pode vê-los. A mata nativa das margens está preservada. As águas correm brilhando à luz do sol e você crê que seja mesmo o “rio de águas vivas” que espera encontrar um dia. Pegue o rio e guarde no cofre. Tranque bem, memorize o segredo.

Você – homem ou mulher - ganhou de Deus, de presente, aquela alma feminina, altiva e translúcida, das canções do Chico. Guarde esta bênção no cofre.

Uma casa. Ah, uma casa ensolarada, com um recuo salutar nas laterais, de modo que não se ouçam os humores vizinhos. Uma casa com um jardinzinho gracioso na entrada, para plantar ixoras vermelhas. Uma casa onde se dorme o sono dos justos. Onde o coração se alegra e canta. Uma casa de verdade, em cujo terraço acolhedor os anjos fazem a reunião vespertina para o Ângelus. Guarde-a no cofre, pelo amor de Deus, e não a venda por dinheiro nenhum deste mundo.

 Uma gravura de Gauguin, a Virgem de vestido estampado, numa paisagem do Taiti, com o Menino sobre os ombros. Ela está ali, no corredor, onde você começou sua coleção de arte, sem querer, garimpando pôsteres e quadros. Guarde Gauguin no cofre. E reveja quando os olhos pedirem a visão do paraíso.

Ele não fala “a nível de”, “menas”, ou “eu vou estar ligando”, tampouco “casa germinada”. É educado, inteligente, sabe usar um blazer quando é preciso, e é a bondade em pessoa. Case com ele e guarde-o no cofre.

Lembra do caderno brochura, usado lá no antigo primário, em cuja capa de trás estava impressa a letra do Hino Nacional? Se encontrou um desses numa caixa de guardados, com aquela sua letrinha primitiva, manuseie com cuidado e guarde no cofre.

 Um travesseiro. Ele é maravilhoso, não dá dor no pescoço e acorda-se flutuando em nuvens de algodão. Celebremos esta bênção, sobretudo depois de experimentar uma montanha deles, juntando pilhas no armário do quarto. Este nosso achado precioso, guardemos no cofre.

Você vive uma paixão devastadora, de ficar sem dormir e sem comer, ou, como diria um amigo fugido, de “arrastar o rabo na cerca”? Guarde esta paixão no cofre.

Os sapos dizem muito do que somos - disse a reportagem na tevê. Estamos usando produtos químicos que afetam os mananciais e causam mutações nos sapos. O brejo está silencioso e não produz mais o coaxar típico. O sapo é uma criatura pacífica e está em extinção. Vendo um destes batráquios por aí, pegue-o delicadamente, faça um carinho nele e guarde-o no cofre.

 Uma pessoa. Uma pessoa que parece ter saído de um conto de fadas. Além de tudo, ela sabe dizer “por favor”, “com licença” e “muito obrigado”. Guarde esta criatura do Avatar no cofre. Deixe uma aberturinha para ela respirar, tá?

 Um amanhecer com uma luz que você nunca viu. A sensação de plenitude na alma no final da tarde. Um pôr de sol estonteante. A contemplação de estrelas profundas no céu, com lágrimas escorrendo pela face. Guarde toda esta beleza no cofre.

Você já tem mais de 70, mas vai ao baile como se tivesse 20 e ainda sabe dançar tango. Misericórdia! Guarde esta habilidade no cofre. Seu cachorro entende tudo o que você fala para ele. Você tem uma foto de quando ela ainda não era loira, com o rostinho transbordando juventude e felicidade. Guarde bem fechado no cofre.

 Há uma pracinha arborizada perto da sua casa, onde as crianças correm, brincam e tomam sol. Guarde no cofre. Você tem a pele bonita, sem manchas, que sorri quando você sorri e conta a beleza da sua idade. Guarde no cofre. Você tem um sonho para realizar, uma viagem de navio, morar numa praia deserta, estudar Filosofia. Guarde os sonhos no cofre.

Se você tem o livro de crônicas de Clarice Lispector “A descoberta do mundo”, guarde no cofre. Se tiver o primeiro livro de poesias do Sergio Antunes, “A casa da infância”, guarde no cofre. Você tem um livro autografado por Drummond? Eu tenho (“Para Marisa, que tanto ama e dignifica os livros.”) e guardo-o no cofre!

Você é uma pessoa feliz, bem resolvida, e passa uma bela imagem de integridade. Guarde-se no cofre! Sua fé é inabalável, a ponto de dar a vida por ela. A fé está acima da sua necessidade básica de sobrevivência? Guarde a fé no cofre. Nos dias de hoje, meu anjo, isso não tem preço, você sabe.

 

 

O

 

 

Marisa Bueloni

O

 

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